Dinamara Garcia Feldens
Juliana Santos Monteiro Vieira
Lucas de Oliveira Carvalho
Organizadores
Apoio
Atribuição-NãoComercial-SemDerivações
2
2-134825 CDD-300
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Corpo, políticas e territorialidades [livro
eletrônico] : subjetividades e diferença /
organização Dinamara Garcia Feldens, Juliana
Santos Monteiro Vieira, Lucas de Oliveira
Carvalho. -- 1. ed. -- Bauru, SP : Editora
Ibero-americana de Educação, 2022. -- (Corpo,
políticas e territorialidades ; 1)
PDF.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86839-08-1
1. Diversidade cultural 2. Educação
3. Espiritualidade 4. Identidade de gênero
5. Inovação tecnológica 6. Políticas públicas
7. Subjetividade 8. Territorialidade I. Feldens,
Dinamara Garcia. II. Vieira, Juliana Santos
Monteiro. III. Carvalho, Lucas de Oliveira.
IV. Série.
Índices para catálogo sistemático:
1. Ciências sociais 300
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
DOI: 10.47519/EIAE.978-65-86839-08-1
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UEL
A presente obra intitulada “Corpo, políticas e territorialidades: subjetivi-
dades e diferença” foi organizada de modo coletivo por dois grupos de
pesquisa – sob coordenação dos professores do Programa de Pós-gradua-
ção em Educação da Universidade Federal de Sergipe (PPGED-UFS) -, o
“Grupo de Pesquisa Educação, Cultura e Subjetividades” (GPECS), coor-
denado pela professora Dinamara Garcia Feldens e o “Grupo de Pesquisa
Corpo e Política”, coordenado pelos professores Renato Izidoro da Silva e
Fabio Zoboli.
O livro é parte de uma coletânea composta por dois volumes. Deste modo,
este escrito é a primeira parte de um projeto maior, que tem como segundo
tomo o livro “Corpo, políticas e territorialidades: tecnologias e poder”. Os
dois livros da coletânea se dispõem a pensar o corpo como território atra-
vessado por políticas e dispositivos tecnológicos na sociedade contempo-
rânea. Parte-se das reexões de diferentes pesquisadores de Universidades
brasileiras importantes, que buscaram pensar o tema das subjetividades, da
diferença, dos meios comunicativos e de informação, da questão do gêne-
ro, da religiosidade, da vivência docente, entre outras pluralidades de ex-
periências. A publicação, em formato e-book que ora apresentamos, conta
com nanciamento da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG),
estabelecido através de um Doutorado Interinstitucional com a UFS (DIN-
TER).
Prof. Dr. José Anderson Santos Cruz
Editor
Alexander Vinicius Leite da Silva
Editor Assistente
Matheus Guilherme Prudente Coelho
Designer
EEditorial
SSumário
Apresentação
Subjetividades e diferença na educação:
Composições de professoras mulheres
Aldenise Cordeiro Santos
013
021
Patriarcado: (Des)valores de
uma história mal contada
Carla Jeane Helfemsteller Coelho
039
As vozes sagradas das cantautoras,
sacerdotisas e xamãs de Abya Yala
Laila Rosa
065
Deusas e diabas:
Mitos polifacéticos e forças do feminino
Paola Zordan e Martha Narvaz
099
Territorialidades da docência: Um olhar para
o arquivo do projeto objetos de pensar
Angélica Vier Munhoz, Inauã Weirich Ribeiro e Jefer-
son Cristian Zick Camargo
123
Des-costurar histórias de quem pesquisou com
tecelãs em Alvorada - RS:
Nossos processos formadores
Douglas Rosa da Silva e Edla Eggert
141
Os alunos indígenas em espaços educativos
não indígenas e a ressignificação do currículo
Maria Fernanda Cestari Saad e José Licínio Backes
157
Currículo escolar e diferença decolonial:
Perspectivas de estudantes do curso
de pedagogia
Franciele Caroline Pavão Garcia e Ruth Pavan
175
Quem precisa da identidade... para “tornar-se”
professor de educação física escolar?
Felipe Santana Criste e Ueberson Ribeiro Almeida
197
Corpos em aliança: Uma análise do coletivo
drag queen
Sisters Of Perpetual Indulgence
e
ocupações de territórios
Amanda Marques
221
Corpo-pesquisador: Duas elaborações
metodológicas em arte educação
Cláudia Madruga Cunha e Leomar Peruzzo
241
Devir-Orixá: Processos de
transformação do corpo
Evanildo F. Vasco Viana, Débora dos Reis Silva Backes
e Dinamara Garcia Feldens
259
Educação do corpo na prática corporal
do
crossfit
: Pensar novas formas de trincar os
corpos pelas rupturas da resistência
Jerlane Santos Abreu, Elder Silva Correia e
Fabio Zoboli
283
Sobre os autores305
AApresentação
A presente obra intitulada “Corpo, políticas e territorialidades: sub-
jetividades e diferença” foi organizada de modo coletivo por dois grupos
de pesquisa, coordenados por professores do Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal de Sergipe (PPGED-UFS). O “Gru-
po de Pesquisa Educação, Cultura e Subjetividades” (GPECS), coordenado
pela professora Dinamara Garcia Feldens e o “Grupo de Pesquisa Corpo
e Política”, coordenado pelos professores Renato Izidoro da Silva e Fabio
Zoboli.
O livro é parte de uma coletânea composta por dois volumes. Deste
modo, este escrito é a primeira parte de um projeto maior, que tem como
segundo tomo o livro “Corpo, políticas e territorialidades: tecnologias e
poder”. Os dois livros da coletânea se dispõem a pensar o corpo como
território atravessado por políticas e dispositivos tecnológicos na socieda-
de contemporânea. Parte-se das reexões de diferentes pesquisadores de
Universidades brasileiras importantes, que buscaram pensar o tema das
subjetividades, da diferença, dos meios comunicativos e de informação, da
questão do gênero, da religiosidade, da vivência docente, entre outras plu-
ralidades de experiências. A publicação, em formato e-book que ora apre-
sentamos, conta com nanciamento da Universidade Federal de Campina
Grande (UFCG), estabelecido através de um Doutorado Interinstitucional
com a UFS (DINTER).
Os textos selecionados para o Tomo I da série “Corpo, políticas e
territorialidades” foram subdivididos por estes organizadores em três te-
mas, buscando preservar algumas semelhanças e atravessamentos com os
conceitos partilhados. As três partes são: “subjetividades femininas”, “ter-
ritórios e docência” e “corpos e diferença”.
Este tomo busca trazer as subjetividades em seus diferentes aspec-
tos. Passeando entre currículos, gênero, docências e diferentes corpos, bus-
ca extrapolar uma psicologia do sujeito e suas estraticações. Inspirados
em pensadores como Gilles Deleuze, Friedrich Nietzsche, Baruch Spinoza,
mas ainda muitos outros, as concepções acerca de políticas, territórios e
processos de captura do desejo, reete-se sobre o regime de signos e as
013Vol I - Subjetividades & Diferenças
técnicas de produção de subjetividades. Subjetividades estas que em seus
movimentos criam linhas de fuga e de captura, trazendo assim tanto devi-
res como formas e rostidades.
Estas linhas nos xam e marcam, constituindo por inúmeras vezes
corpos estáticos, imobilizados, determinados, inalteráveis. Estes processos
criam em nós, que somos combinação de múltiplas forças, uma territoria-
lidade identitária. Desse modo, buscamos trazer ao leitor, narrativas e ex-
periências; manifestações artísticas, culturais e rituais; atributos e lingua-
gens diversas, referentes a questão das subjetividades, entendendo-as aqui
também como processos de múltiplas forças e produção de singularização.
Este tomo busca discutir a possibilidade de desfazer-se das identida-
des molares, realizando uma revisão crítica das convenções marcadas em
nossa formação tão cartesiana e moralizada. Pretende evocar a diferença
e questionar as concepções estáveis, nos tirar de nosso lugar seguro de
pensamento, oferecer um espectro de novos caos e de possíveis calmarias.
Assim, propomos pensar a diferença e suas innitas nuances. Nesta pers-
pectiva, a escrita enquanto acontecimento sempre tem algo de singular,
pois permitem a criação e os saltos intempestivos, sendo expressões do
devir, operando repetições seletivas que transmutam a potência humana
enquanto condições de possibilidades.
Seguimos a cartograa de nossos resumos e seus respectivos auto-
res.
O texto Subjetividades e diferença na educação: composições de
professoras mulheres”, de autoria de Aldenise Cordeiro Santos, tem por
objetivo compreender a produção de subjetividades de mulheres na Edu-
cação, por meio da narrativa de professoras mulheres da Educação Básica,
do povoado Triunfo, da zona rural do município de Simão Dias, Sergipe.
Trazendo narrativas de entrevistas semiestruturadas voltadas a compor ex-
periências de três professoras dos primeiros anos do Ensino Fundamental,
que se denominam como “Larissas, Raimundas e Sophias”, a autora busca
compreender a produção de subjetividades na sala de aula, demonstrando
como são reforçados enquadramentos para/na Educação, compreendendo
como diversas marcas atravessam estes caminhos, esta formação docente.
As experiências dessas professoras demonstram-se como formas de movi-
mentar nossas professoralidades, na perspectiva de criar ferramentas para
resistir às imposições e aos enquadramentos vigentes na contemporaneida-
de. A autora entende que estes encontros e desencontros podem demonstrar
014 Corpo, políticas e territorialidades
como estamos lidando com os inusitados provocados pelas interseções das
diferenças nas salas de aula.
O capítulo “Patriarcado: (des)valores de uma história mal conta-
da”, de Carla Jeane Helfemsteller Coelho, busca transitar entre narrativas
losócas, míticas e religiosas, capturando a formulação de um imaginário
que inferioriza e subordina as mulheres e produz uma episteme, a partir
de uma história mal contada, que supõe o patriarcado como um fenômeno
universal. Objetivando suscitar reexões sobre valores que são desenvol-
vidos pelo sistema patriarcal, apontando aspectos de seu desenvolvimento
epistêmico, e como estes valores, presentes inclusive nas mulheres, limi-
tam suas vidas produzindo a permanência deste imaginário de subordina-
ção, como marca deste sistema. Tratando-se de uma pesquisa bibliográca
e documental, em que se produzem conceitos e se realiza um metapensa-
mento, busca esclarecer (desmiticar) o que possibilita, produz e perpetua
as formas de opressão, contribuindo para com a superação do obscurantis-
mo, analisando sociedades que se organizaram fora dos moldes patriarcais,
deagrando o fato de que existe um sistema estrutural que forjou e mantém
uma hierarquia social. Através do conhecimento da História das Mulheres,
a autora entende ser possível enfraquecê-lo e desestruturá-lo.
No texto-poema-carta-encantaria sonora chamado As vozes sagra-
das das cantautoras, sacerdotisas e xamãs de Abya Yala”, Laila Rosa
busca trazer à consciência sua experiência ou “jornada-medicina” de 1 ano
entre EUA-México-Peru-Brasil, realizando estágio de pós-doutorado, en-
quanto professora visitante em diferentes instituições de ensino superior e
residência artística nesses países. São cartograas do corpo/corpa/corpo-
ralidades, das vozes sagradas das cantautoras, xamãs e sacerdotisas, jun-
tamente com a dela. Dentro da jornada de amplitude prossional, cultural,
política, sagrada e artística, emerge o conhecimento das gastropolíticas do
eco-feminismo, do veganismo, dos ensinamentos do Yoga e da medicina
Ayurveda, das tecnologias de gênero em perspectiva interseccional pelos
feminismos decoloniais de Abya Yala, das dissidências sexuais, dos estu-
dos Queer em música, das pedagogias feministas decoloniais anti racistas,
anti capacistas e LGBTTQIA+, do sagrado feminino amefricana, sendo
este texto fruto desse encontro de “cura”, que reverbera até hoje em todos
os seus produtos artísticos.
O texto “Deusas e diabas: mitos polifacéticos e forças do femini-
no”, de autoria de Paola Zordan e Martha Narvaz, reete acerca das gu-
015Vol I - Subjetividades & Diferenças
ras do feminino no imaginário em torno das mulheres, que se apresentam
como guerreiras, sedutoras, mães, feiticeiras e curandeiras. Os poderes as-
sociados à capacidade reprodutiva, à sexualidade e à adivinhação das mu-
lheres eram percebidos como ameaçadores, de modo a compor uma gura
endeusada e, ao mesmo tempo, execrada, como bruxas. Com múltiplas re-
ferências que tratam dos mitos enquanto ingredientes vitais da civilização
e da psique humana, as autoras apresentam guras que perpassam mitos
clássicos, destacando as yabás do panteão iorubano e as imagens da pom-
ba-gira. Tais guras, para elas, expressam forças associadas a elementos da
natureza, a papéis na divisão social e sexual do trabalho e a características
emocionais, temperamentos, tipos de volição e sexualidades variadas. As
guras femininas apresentam complexidades e paradoxos conceituais, si-
tuando as mulheres, seus corpos, suas forças e seus modos de existência
entre deusas e diabas. O intuito do texto, então, é questionar o imaginário
que historicamente aprisiona o feminino em dualismos, buscando dar visi-
bilidade à complexidade polifacética dos diversos modos de habitar corpos
e mundos.
O escrito “Territorialidades da docência: um olhar para o ar-
quivo do Projeto Objetos de Pensar”, cujos autores são Angélica Vier
Munhoz, Inauã Weirich Ribeiro e Jeferson Cristian Zick Camargo, apre-
senta a docência enquanto imagem, que tomada como territorialidade, se
expressa em um “território de arquivo”. Este capítulo trata da reunião de
materiais empíricos criados ao longo do Projeto Objetos de Pensar (desen-
volvido pelo Grupo CEM), dos quais se produziram diversos momentos:
uma arquivização de imagens da docência, um mapeamento das noções de
docência/ docente/prof(a/e)/professor(a)/professoras(es), um rastreamen-
to dos verbos que aparecem associados às palavras “docência” e “profes-
sor”, reetindo suas territorialidades como arquivo e os verbos, como suas
intensidades. Ao nal, constatou-se que as territorialidades “docência”/
“docentes” apareceram com menos frequência do que as territorialidades
“prof(a/e)”/“professor(a)”/“professoras(es)”. Também o verbo que se ex-
pressou com mais intensidade no processo de arquivização foi “(não) ser”,
ou seja, a expressão relacionada àquilo que implica “não ser professor”.
O texto Des-costurar histórias de quem pesquisou com tecelãs
em Alvorada, RS: nossos processos formadores”, de autoria de Dou-
glas Rosa da Silva e Edla Eggert, apresenta uma análise tramada entre
um egresso-bolsista de Iniciação Cientíca e sua professora/coordenadora
016 Corpo, políticas e territorialidades
de pesquisa. Juntos, buscaram des-costurar histórias para entender os seus
processos formadores. Essa análise, que resultou em um processo amplo
de aprendizagem, teve como consequência não uma reexão sobre a
função e os saberes das artesãs dentro de sua comunidade, mas também
auxiliou a reposicionar a experiência da professora e do bolsista enquanto
pesquisadores. O capítulo destaca as aprendizagens advindas deste proces-
so, aprendizagens essas que, hoje, compõem a memória afetiva dos envol-
vidos nesta experiência proporcionada pelo projeto de pesquisa.
O capítulo “Os alunos indígenas em espaços educativos não indí-
genas e a ressignicação do currículo” de Maria Fernanda Cestari Saad
e José Licínio Backes, justica a importância de escrever sobre as popula-
ções indígenas no contexto atual, constituindo-se como uma forma de con-
tribuir para que suas culturas e identidades sejam reconhecidas, sobretudo,
quando se trata de mostrar sua resistência e luta em defesa de seus direitos.
Resultado de um projeto de pesquisa com apoio do CNPq, o escrito situa-se
nesse contexto, tendo como objetivo salientar como a presença dos alunos
indígenas trazem novas reexões para o currículo e para a educação, no
que diz respeito à necessidade de pensá-los a partir da diferença cultural.
O texto Currículo escolar e diferença decolonial: perspectivas
de estudantes do curso de Pedagogia”, de autoria de Franciele Caroline
Pavão Garcia e Ruth Pavan, recorda que durante séculos, a escola e seu
currículo lidaram com a diferença sob uma perspectiva colonial, isto é,
desqualicando, subalternizando e inferiorizando todos os sujeitos que es-
tavam fora da lógica da cultura ocidental. Nas últimas décadas, movimen-
tos sociais, teóricos do campo do currículo e docentes têm defendido um
currículo multi/intercultural, vendo a diferença na perspectiva decolonial e
questionando os processos de inferiorização, subalternização e desquali-
cação. O presente capítulo então, é resultado de uma dissertação que con-
tou com apoio da CAPES, está articulado com o projeto de pesquisa “Cur-
rículo e (de)colonialidade: relações étnico-raciais, gênero e desigualdade
social”, e teve por objetivo analisar a fala de estudantes de Pedagogia sobre
as diferenças culturais, identicando se veem nessas diferenças uma forma
de qualicar o processo pedagógico. Analisando falas de seis estudantes de
Pedagogia, obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas, realizam-se
apontamentos e reexões acerca da importância de um currículo multi/
intercultural em tempos desaadores.
O capítulo “Quem Precisa da Identidade para ‘tornar-se’ profes-
017Vol I - Subjetividades & Diferenças
sor de Educação Física Escolar?”, de autoria de Felipe Santana Criste e
Ueberson Ribeiro Almeida, é parte da dissertação denominada “Identidade
docente na Educação Física Escolar: análises e diálogos com o conceito
de subjetividade de Félix Guattari”, cujo objetivo foi compreender a for-
mulação e produção da identidade docente durante a Formação Inicial dos
professores nos cursos de graduação em Educação Física. Do ponto de
vista metodológico, faz-se uma revisão bibliográca de artigos publicados
relacionados à temática da identidade docente em revistas eletrônicas da
área da EF, constatando que os estudos sobre a identidade docente no âm-
bito da Educação Física Escolar, em grande medida, armam um modelo
da aprendizagem e formação de sujeito baseada na recognição, reprodução
de “ideais” de docente e de escola. Desse modo, sustentado pelo conceito
de subjetividade de Guattari, convocamos a entrada deste autor no debate
sobre a formação das subjetividades no campo da EFE e as suas reexões
para pensarmos em outras possibilidades de formação do sujeito docente.
O capítulo “Corpos em aliança: uma análise do coletivo drag
queen Sisters of Perpetual Indulgence e ocupações de territórios” de
Amanda Marques, pretende analisar a aliança dos corpos em manifesta-
ções artísticas que ocupam a esfera pública, em consonância com os mo-
vimentos sociais e de gênero. Para a autora, o movimento Queer tem cada
vez mais ressignicado seus próprios corpos e apontado temas importantes
ao movimento feminista, de forma a colocar em pauta os corpos não-nor-
mativos. Foi preciso recorrer a teoria de Gago (2020) sobre corpo-terri-
tório, para elucidar como o corpo é um campo de batalhas, que sempre
se dispõe a transformar o território. Nesta mesma direção, utiliza das te-
orias de performatividade e subversão de Judith Butler (1997/2003) e a
Teoria Queer inuenciada por Michel Foucault (1978), que apontam para
o gênero e sexualidade como formas construídas socialmente, rejeitando
as categorias binárias e compulsórias. Desta forma, analisa as performan-
ces-manifestos do grupo estadunidense Sister of the Perpetual Indugence
formado por Drag Queens em São Francisco (EUA), que ocupam as ruas
vestidas de freira, inquirindo não somente a intolerância sexual, a imagem
religiosa, mas também satirizam as questões de gênero e a moral. Busca
então, mapear as ações que ocupam a esfera pública de modo que os cor-
pos-território sejam a possibilidade de potência para subverter as lógicas
masculinistas, afetar outros sujeitos e assim apontar para mudança.
O texto “Corpo-pesquisador: duas elaborações metodológicas
018 Corpo, políticas e territorialidades
em arte-educação” dos autores Cláudia Madruga Cunha e Leomar Pe-
ruzzo, analisa a A/R/Tograa e a cartograa enquanto abordagens meto-
dológicas capazes de dialogar com o corpo do próprio pesquisador, e suas
potencialidades no estudo e compreensão de questões ligadas à educação
e arte. Para isso, investigam, inicialmente, uma experiência, concluída,
que se deu através da sensibilização de professores junto à obra de Elke
Hering, por meio de uma série de práticas relacionadas à A/R/Tograa.
Em seguida, abordam uma segunda experiência, que se encontra em an-
damento, a qual propõe práticas sensíveis, a partir da pesquisa rizomática,
que movimentem o corpo-pesquisador. Utilizando-se de conceitos e outras
concepções e procedimentos estéticos, vindos de autores como Gilles De-
leuze e Félix Guattari, Sandra Corazza e Renato Cohen, buscam operar
na conexão de possibilidades outras para uma prática docente em devir
- performance arte, capazes de exibilizar modos investigativos que não
ignorem as manobras intuitivas e criativas de um corpo-pesquisador.
O escrito “Devir-orixá: processos de transformação do corpo”,
cujos autores são Evanildo F. Vasco Viana, Débora dos Reis Silva Backes
e Dinamara Garcia Feldens, é fruto de um tecer coletivo, co-criado em um
ambiente de pesquisa colaborativa, seguindo padrões acadêmicos replicá-
veis, cujo objetivo primário é desmisticar as relações simbólicas, mate-
riais e imateriais de uma das manifestações culturais afrodescendentes mais
inuentes em nossa realidade. O candomblé e suas posições culturais, cor-
porais e políticas é, neste texto, destacado especialmente em suas relações
com os processos de aprendizagem que se impõem aos corpos, baseado na
losoa da diferença de Gilles Deleuze, fazendo tessituras entre o devir, as
linhas de fuga e as territorializações possíveis na perspectiva religiosa de
matriz africana. O material disponibilizado é construído pelos três pesqui-
sadores, com a intenção de trazer ao público as inquietações amalgamadas
entre religião, cultura, educação e corpos, reportando conceitos e fazendo
contribuições relevantes na esfera da educação e das transformações cole-
tivas que harmonizam os saberes humanos.
O capítulo “Educação do corpo na prática corporal do crosst:
pensar novas formas de trincar os corpos pelas rupturas da resistên-
cia” de Jerlane Santos Abreu, Elder Silva Correia e Fabio Zoboli, tem como
objetivo reexionar e interpelar a educação do corpo tendo como recorte
a prática corporal do CrossFit, analisada sob a temática da cultura tness
na Academia CrossFit AJU”. O CrossFit é trazido ao texto na expectativa
019Vol I - Subjetividades & Diferenças
de se pensar questões políticas e estéticas por meio desta prática corporal,
tendo como meta tensionar e reetir interpretações sobre possíveis formas
de trincar os corpos pelas rupturas da resistência, enquanto fruto dos dis-
cursos produzidos no exercício de pensar a educação do corpo neste tipo de
prática. Os autores concluem que pensar a resistência como possibilidade
na educação do corpo via prática do CrossFit é também reconhecer que
sempre existem outros modos de reetir sobre as condições pelas quais os
indivíduos estão sendo assujeitados.
Dinamara Garcia Feldens
Juliana Santos Monteiro Vieira
Lucas de Oliveira Carvalho
020 Corpo, políticas e territorialidades
SSubjetividades e diferença
na educação: Composição de
professoras mulheres
Aldenise Cordeiro Santos
021
O que a gente tem que fazer é resistir, porque é o que a
gente faz todo dia é resistir (01min).
Meu namorado não estava apoiando muito. Aí, ele disse:
“você escolhe a ocupação ou eu”. Eu escolhi a ocupação.
Porque um homem que não apoia uma mulher de luta,
não serve para namorar uma mulher de luta”. (29min38s)
(LUTE COMO UMA MENINA!, 2016).
Resistência tem sido uma palavra ainda necessária na educação bra-
sileira. É preciso saber resistir à onda de conservadorismo e enquadramen-
tos que fortemente chega às salas de aula ou às reuniões de professores e
que submete a educação escolar no Brasil a uma série de limitações.
“Lute como uma menina!” é um documentário sobre a participação
das meninas do movimento secundarista na luta contra o plano de reorga-
nização escolar, proposta pelo governo de São Paulo em 2015. Este projeto
visava fechar cerca de cem escolas estaduais e não foi discutido com a co-
munidade escolar, mas sim, imposto sem consultas democráticas. Dentro
desse contexto, as meninas tomam parte na luta contra o fechamento de
escolas atuando na liderança do movimento, demonstrando um forte em-
poderamento feminino.
O documentário demonstra como os alunos conseguiram ocupar as
escolas e promover, durante cerca de 60 dias, uma autogestão, com divisão
de tarefas de forma a quebrar com os papéis de gênero. Em suas falas, os
estudantes defendem que tanto meninos como meninas podem cozinhar,
trabalhar na segurança, na limpeza ou serem porta-vozes do movimento.
É perceptível, nas falas e cenas do documentário, como há uma pre-
carização da educação pública com um propósito bem denido. Os alu-
nos mostram diversas salas, antes trancadas, com apostilas, instrumentos
musicais, materiais escolares, esportivos, documentários, e diversos outros
recursos pedagógicos novos, mas que não estavam sendo utilizados pelos
discentes. Assim como parte da estrutura física das escolas, como auditó-
rios, teatros e laboratórios, com equipamentos inutilizados, sem a destina-
ção correta.
Só por esse contexto o documentário, que lmou a atuação da polí-
cia e do Estado contra as manifestações, já seria muito relevante, mas ele
vai além ao demonstrar a importância de dar voz a essas meninas lutando
O corpo sob a mirada da ciência moderna
022 Corpo, políticas e territorialidades
por uma educação melhor. Durante os 60 dias de ocupação, os alunos re-
alizaram aulas antes ignoradas, como as que tratam de sexualidade, femi-
nismo, expressão corporal, o papel do jovem na sociedade, música, teatro
e diversas outras demandas desta autogestão da ocupação.
As meninas de luta do documentário são estudantes secundaristas
que avaliam como é importante o debate sobre gênero na escola. Elas en-
tendem o feminismo como igualdade, buscando demonstrar que as mu-
lheres podem fazer parte dos movimentos de luta pelos direitos e que para
ocupar esses espaços precisam mostrar o que chamam de “lado da mulher”
para os meninos. Sendo assim a educação escolar precisa trabalhar com
temas que são aprendizados para a vida, como o empoderamento feminino.
Dessa forma é possível contribuir com a formação de jovens engajados e
comprometidos com as demandas sociais.
O que me chamou atenção para este documentário foi a conferência
do Professor Fernando Sener da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS), intitulada: Antes sonhava. Hoje não durmo! A docência na
escola básica em tempos de pânico moral: gênero, sexualidade e educa-
ção . Para ele, este é o melhor tempo para discutir questões de gênero e
sexualidade na escola, pois esta ainda é uma temática marginal e é preciso
potencializar a diversidade de pensar, fazer e agir na educação.
Fernando Sener indica que os temas gênero e sexualidade volta-
ram às discussões por conta de alguns acontecimentos, como a abertura
do processo de impeachment da presidenta Dilma, durante o qual houve
uma série de declarações de cunho misógino da mídia, dos parlamentares
e partidos de oposição. Outro fator foi a presença recorrente da mesma te-
mática nas rotinas e demandas dos alunos das escolas ocupadas no Brasil
entre 2015 e 2016. O documentário “Lute como uma menina!” expressa
esta temática muito bem ao apresentar um forte protagonismo feminino
nos processos de ocupação. Também estão reforçados pelas discussões da
temática com a polêmica acerca de ideologia de gênero e a retirada do con-
ceito gênero da Base Nacional Comum Curricular.
Para o pesquisador, há o que ele chama de pânico moral, quando
se promovem ações para não se tratar, na educação ou em áreas como a
saúde, das questões da sexualidade e de gênero. Demonstrando não haver
argumentos de quem defende a retirada da temática da educação, o que
1
1 - Conferência realizada na Universidade Federal de Sergipe (UFS), no dia 17 abr. 2018, dentro das ações do projeto:
Educação e Interculturalidade: Descolonizando o olhar investigativo.
023Vol I - Subjetividades & Diferenças
existe é a manutenção das desigualdades que não são apenas de gênero,
mas de raça, social, cultural e diversas outras. O projeto Escola sem Parti-
do , defensor do m daquilo que chama “ideologia de gênero” nas escolas,
também demonstra que seu objetivo não é uma escola livre de partidos,
ela é bem partidária a uma perspectiva de colonizar a escola. Então, há um
pânico moral quando se trata de temas de pluralismo democrático.
Existe uma tentativa de colonizar a escola com o objetivo de enqua-
drar ainda mais as diferenças. Fala-se mal da escola, principalmente a pú-
blica, mas ela cresceu como espaço de mudanças para as culturas juvenis,
como é demonstrado no documentário “Lute como uma menina!”.
Dessa forma, como ca a liberdade de ensinar? Como as Larissas,
Raimundas e Sophias irão ter a autonomia em suas salas de aula, para dis-
cutir temáticas urgentes na educação escolar? No seguimento deste capítu-
lo irei percorrer as narrativas de professoras, do povoado Triunfo, na região
rural de Simão Dias. Tais relatos tratam da produção de subjetividades na
sala de aula, que reforçam enquadramentos para meninas e meninos.
Esses desdobramentos na educação atual do Brasil demonstram um
processo de retirada da autonomia da escola e da liberdade de ensinar dos
professores. Não é possível formar professoras determinando que elas min-
tam na sala de aula, quando precisarem responder a uma questão de gênero
ou sexualidade levantada por seus alunos. Professoras e professores preci-
sam ser formados com a compreensão da liberdade de ensinar. Precisamos
permitir que a educação seja permeada pelo pluralismo democrático.
2 - O projeto Escola sem Partido é um movimento que tem como fundador o advogado e procurador do Estado de São
Paulo Miguel Nagib, que objetiva fomentar leis contra o que chamam de abuso da liberdade de ensinar, em que a temática
das questões de gênero é a mais combatida e alvo das críticas. Como se pode visualizar no site do movimento, disponível
em: https://www.programaescolasempartido.org/projeto. Acesso em: 26 abr. 2018.
2
As mulheres tinham, “por natureza”, uma inclinação para o
trato com as crianças, que elas eram as primeiras e “naturais
educadoras”, portanto nada mais adequado do que lhes
conar a educação escolar dos pequenos. Se o destino
primordial da mulher era a maternidade, bastaria pensar
que o magistério representava, de certa forma, “a extensão
da maternidade”, cada aluno ou aluna vistos como um lho
ou uma lha “espiritual” (LOURO, 2009, p. 450).
Composições de professoras mulheres
024 Corpo, políticas e territorialidades
Anal, o que é ser professora/mulher? Como e quando nos tornar-
mos professoras/mulheres? Esta é uma questão que me ocorreu quando
comecei a pesquisar fazendo interseções entre educação e gênero. Ela per-
corre a genealogia da composição do conceito mulher na educação. Nas
entrevistas e deslocamentos pelo campo de pesquisa, pude entrar em con-
tato com as marcas, experiências, devires, narrativas de si, produtoras das
linhas desta pesquisa, atuantes na composição de professoras mulheres. A
composição é um movimento com múltiplas velocidades, com múltiplas
partes que se misturam e formam outras, numa ação de mudança contínua
e ilimitada.
Nestes movimentos, me deparei com uma história narrada pela pro-
fessora Raimunda. Sua fala me chamou atenção para a quebra de conceitos
construídos e reiterados ainda na contemporaneidade. Alguns conceitos
não têm comportado diferenças nas demarcações propostas e demandam
à educação diversas questões que a escola não tem conseguido lidar. Rai-
munda é permeada pelas experiências e tocada pelas marcas dessa trajetó-
ria de vida e me contou uma das histórias da sala de aula que tem lhe tirado
o chão.
Eu lembrei agora na minha sala de aula, no terceiro ano.
Nós temos, assim, hoje o progressivo ele vai do primeiro,
para o segundo e para o terceiro. Ai, eu pego aquele
que não conhece o alfabeto ainda com um que conhece.
Quando foi no meio do ano, a mãe se separou do esposo e
estava convivendo com uma mulher. Então, já um baque.
Ele saiu da capital e foi morar no interior. A mãe cobradora,
de ônibus. Ela passava o tempo todo indo e vindo. E só
voltava no nal de semana (2) e ele terminava sem a
presença da mãe. Essa outra mulher, por ele ser muito
danado, o que ela fazia, ela colocava na banca. Ela tirou
toda vivência em relação às outras crianças. Ele novinho,
mas tinha certa estatura e terminava impondo medo nos
outros. Ele tinha outro irmão doente, que terminou cando
com o pai, porque lá se precisasse de urgência cava mais
fácil. Sem a presença do pai e da mãe, porque ela só estava
em casa nal de semana. (3) Muito atrito em sala de aula.
Ele sempre brigava, porque os outros diziam que ele é
lho da sapatona. Ele veio de escola particular, mas ele
era copista, com uma caligraa ruim. (2) A princípio ele
chegou numa semana de avaliação e mesmo ele não tendo
025Vol I - Subjetividades & Diferenças
estudado comigo eu disse que não ia considerar a nota dele,
mas era uma questão diagnóstica. (2) Ai, eu tava lendo a
prova, quando ele disse “a sua não está respondida não?
Porque na outra escola era assim”. Assim, a constituição
familiar que hoje temos que procurar trabalhar isso e não
somente para quem trabalha no campo. Isso aí: (2) gerou
intriga entre famílias, porque um menino... Eles moravam
no conjunto e iam brigando na rua. Daqui a pouco estavam
as mães na escola. E tinha coisas que não tinha ocorrido
dentro da sala de aula. Então, eu pedia para cada mãe vir
buscar seu lho, mas isso a gente sentia muito -. Quando
chegou o nal do ano a mãe terminou se separando. Ele era
muito levado, mas porque não tinha espaço dele brincar. Ai
começou a perguntar uma coisa e ele cava com mentira,
mas terminava vindo. Ele dizia que a mãe estava em Aracaju
com outra, e, trazia isso para a escola, e, a outra vinha para
saber se ela tava ligando (rindo. Mas a mãe dizia que se ele
estivesse danado passasse o telefone para ela. Ele também
foi para Aracaju e terminamos perdendo o contato.
3 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
3
Quantas histórias como a de Raimunda estão em nossas salas de
aula? As diferenças estão sendo produzidas a cada micro instante. Neste
movimento, vão quebrando e tornando as produções discursivas sobre as
diferenças desconexas com a contemporaneidade. Não podemos olhar para
a sala de aula partindo dos padrões pelos quais fomos criados; ser profes-
sora é abrir-se para as diferenças que podem permear nossas classes. Em
meio às mudanças que estamos vivenciando, a educação escolar deve ser
o lugar de desenvolvimento de crianças e jovens frente aos movimentos de
transformação.
Em meio a estes processos, Raimunda me diz que: “a educação era
uma coisa mais feminina na sala de aula, hoje mais nem tanto”. Ela já pos-
sui a experiência de ter um colega homem sendo professor pedagogo, outra
relação construída com o processo de feminização do magistério. No se-
guinte trecho, ela compartilha como é a relação com um professor homem:
Em termos de educação, a gente vê mais as mulheres à
frente. Vai abrir um concurso na educação infantil, como
se um homem não pudesse trabalhar na educação infantil.
Porque na educação infantil o homem além de dá aula
026 Corpo, políticas e territorialidades
ele também tem que levar ao banheiro. Nós vemos na
educação que quem predomina mais são as mulheres. (3)
Eu acho que é um campo que deve ser para todos, mas na
educação infantil ainda existe esta resistência. Aos poucos,
vem mudando esse quadro. Como Romualdo que trabalha
conosco: e essa troca de experiência é muito boa.4
4 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
5 - Sophia. Entrevista III. [02 set. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
Quanto mais plural a educação, maior é a capacidade de lançar e-
chas para atingir uma maior possibilidade de diferenças. Não me rero
somente aos professores homens. Recentemente participei de uma mesa de
discussão sobre as diferenças na educação com uma professora transexual
que, embora realizasse um bom trabalho, sofria com a discriminação e pro-
cessos violentos atuantes para afastá-la da sala de aula.
A própria mulher é uma dessas diferenças produzidas na educação.
São muitos os saberes que a palavra mulher carrega. As professoras do
Triunfo narram muitas das produções discursivas que temos acerca da mu-
lher e a carga da docência. Como Sophia indica,
Mulher e professora: (2) é o que lhe disse antes, difícil
(porém). Tudo o que faço e z até hoje faço porque
gosto. Eu sou apaixonada por educação. Na última greve
chorei, me decepcionei. Disse que não queria ser mais
professora. Fiquei revoltadíssima com tudo, porque eu
vi um descaso. Porque, principalmente, quando você não
faz com compromisso, mas quando você pensa que você
perde noite. Não posso chegar em sala de aula sem uma
atividade planejada. E, mesmo sendo professora e mulher,
eu não deixo. Ao máximo, eu me dedico, para não deixar
faltar. Para não pensar, assim, hoje não deu certo, hoje eu
vou fazer qualquer coisa, porque eu tinha que passear, ou ir
para o salão. Eu deixo de ir pra planejar ou para qualquer
outra coisa. Meu lado mulher é mais meu lado família. E,
como não co muito em casa, então eu dou tudo para car
em casa (risos).
5
A mulher e professora estão bombardeadas por princípios de desi-
gualdade, são tantas obrigações! Nas triplas jornadas por um salário mais
digno, na pressa de cuidar da cria, muitas vezes ignora as intervenções
027Vol I - Subjetividades & Diferenças
Porque, assim, a gente leva, quando eu digo assim, que
leva um pouco mais pra casa do que na sala, eu acho que
é porque na sala que por ser mais dinâmico e a gente não
sente tanto, né? Por mais que trabalhe aqui à tarde, à tarde
tem muitas atribuições? Tem! Não sei, a gente não para.
E quando tá em casa, que você vê que tem as questões de
casa, aí cê tem atividades para corrigir, os apontamentos
que você fez ali desorganizado pra colocar porque se você
deixar para depois você não sabe mais do que se trata, né?
Isso diariamente. Isso porque os meus planos semanais eu
ainda consigo fazer no nal de semana. Porque se eu deixar
para a semana, aí que: a coisa pega (risos, cansaço).
ricas de experiência e movimentos de criação de seus alunos. É preciso
deixar de lado os momentos de ócio criativo para dar conta da carga de
trabalho que transcende a escola e a intensa preparação das aulas.
Na segunda entrevista de Sophia, o tema ainda é recorrente. Ela se
recente da falta de tempo para tantas atribuições por ser mãe, esposa e pro-
fessora. Em seu cotidiano escolar, acaba ensinando as meninas por meio
de seu exemplo pessoal de mulher batalhadora, com muitas rotinas para
sobreviver.
6 - Sophia. Entrevista V. [04 jan. 2018]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2018.
6
Os preceitos morais também incidem no destino mulher/professora,
como Larissa que tem discursos de independência, de uma mulher que saiu
de sua cidade, teve outras vivências e, depois de um tempo, retorna ao inte-
rior. Ela sente o peso do destino mulher, quando pensa sobre sua condição
de professora e o fato de a sociedade esperar algo dela.
Larissa questiona o modelo de sociedade imposto em sua cidade
natal, por sua família, defensora da ideia de mulher dependente, dócil, sen-
timental, destinada a preparar-se para o casamento. Estabeleceu para si
outras possibilidades de existência seguindo um caminho de estudo, fa-
zendo Mestrado e Doutorado, compondo ainda mais sua professoralidade
para levar à sala de aula seus estudos e análises. Vejo o quanto essa relação
de professora-pesquisadora é fundamental para movimentar nosso pensa-
mento na sala de aula. Quanto a estas questões de ser mulher e professora,
Larissa indica que,
028 Corpo, políticas e territorialidades
(3) Pra mim é bem tranquilo. Primeiro porque: eu na
condição de mulher (2) eu não tenho grandes dependências.
Eu não sou casada. Eu não tenho lhos. Eu não tenho
pessoas que dependem de mim enquanto mulher. Então,
assim em relação à diculdade que eu tenha de vivência,
acredito que não tenho muita. O que tenho diculdade em
ser mulher é a visão da sociedade sobre mim. Eu sinto,
por exemplo, eu moro em Simão Dias hoje, e, por ser uma
cidade pequena, todo mundo me conhece. Todo mundo
sabe que eu sou professora e, por ser mulher, é o foco
de mulher. Porque os homens que têm na cidade fazem
física, química. E a sociedade espera alguma coisa de mim,
enquanto professora. Enquanto mulher, não me falam, mas
eu vejo. Outra coisa que a sociedade espera, principalmente
a comunidade escolar, é que nós professoras a gente vá ser
quase uma professora de etiqueta, justamente porque não
estou preocupada com estas questões. Vou trabalhar com
eles mesmos a questão de trabalhar o sexo biológico, mas
não o convívio social ou os papéis da sociedade. Homens
e mulheres são capazes e podem fazer o que quiserem,
mas muitas vezes vejo a comunidade escolar incomodada,
porque eu deixo meninas jogar bola com meninos. Que vem
reclamar que tem um trabalho de grupo que um menino
tem de fazer trabalho na casa de uma menina.7
Quando ela se nega a ser professora de etiqueta, determina como
verbo que não pode colocar sua professoralidade em prol de algo tão pe-
queno e repressivo, indicando que a mulher pode muito mais do que lhe
foi determinado. Com o decorrer das duas entrevistas, percebo o quanto
Larissa movimentou sua docência, o quanto cou diferente da primeira vez
que nos falamos para a segunda, como os seus estudos estavam adentrando
sua sala de aula.
Para Larissa, há um incômodo quando contrapõe diariamente o pen-
samento machista nas suas aulas. Não ca quieta quando lhe é dito que
menina é para casar e ter marido e menino para trabalhar, principalmente
na roça, coisa que não demanda muito estudo para ambos. Empoderar me-
ninas é um trabalho contínuo, demanda muito esforço e sempre estamos
retornando para o começo, fazendo novos contrapontos, ganhando e per-
dendo terreno. Por conta disso, pesquisas como esta são necessárias para a
7 - Joana. Entrevista II. [31 ago. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
029Vol I - Subjetividades & Diferenças
educação, pois a luta é diária e sempre há enquadramentos a romper.
Há uma construção de regime de verdades para legitimar enquadra-
mentos à mulher. As professoras atuam nesse processo e muitas vezes os
rearmam. Não podem ir de encontro aos preceitos morais da comunidade,
devem ser exemplos. Precisam compor modelos de homens e mulheres de-
terminados por relações de poder que atuam para o estabelecimento destes
modelos.
Ser mulher já é uma tarefa com intensas implicações, que demanda
outras ainda maiores para a professora. Raimunda, Larissa e Sophia apre-
sentam, em suas narrativas, como é difícil romper com processos de desi-
gualdade culturalmente legitimadores deste lugar menor para as mulheres.
A formação da docência para a diferença
É imediatamente perceptível a presença do professor que
habita plenamente a sala de aula. Os alunos percebem
desde o primeiro minuto do ano, nós todos temos essa
experiência: o professor acaba de entrar, ele está totalmente
lá, e isso se vê pela sua maneira de olhar, de cumprimentar
os alunos, de se sentar, de tomar posse da mesa. Ele não se
dispersou por medo das reações deles, ele não está fechado
em si mesmo, não, ele está por dentro do que faz, logo no
começo ele está presente, distingue cada rosto, a turma
existe sob o seu olhar (PENNAC, 2008, p. 105).
Mais uma vez os caminhos da formação de Daniel Pennac me lem-
bram a composição permeadora deste tornar-se professora. As composi-
ções se dão em interseções e entre elas estão discussões e estudos que
empreendemos nesta longa e innita jornada da formação. Algo que me
motivou a pesquisar foi querer saber se, no processo de formação docente,
temas como coeducação são discutidos. Raimunda, quando narrava sua
formação, disse que: “Não. (3) Não, não me recordo. Assim, só trabalhan-
do como era a formação da educação. Algo bem sucinto, antes como era a
escola e tudo. Mas sobre coeducação não” . Como no turno oposto ela tra-
balha com Educação Especial sempre aparecem em sua fala as marcas de
educar para a diferença; seu olhar atento demonstra como as diculdades
8
8 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
030 Corpo, políticas e territorialidades
O que me marcou foi um aluno que, durante as aulas, tinha
suas diculdades. Eu trabalhava com ciências, com química
e física. Ai, todas as fórmulas dava um bloqueio. Ai, ele
disse: “professora em casa eu não estudo, eu trabalho numa
padaria durante a noite e tudo”. Ai, eu disse o que é que eu
faço. Eu tentava avaliar de outras formas, porque na prova
ele tinha um bloqueio, porque ele não parava. O que ele
aprendia era o momento em que estava na sala de aula. (4)
Nas turmas aqui as experiências ainda são pequenas em
termos de agricultura, porque eu pego crianças de oito aos
dez anos. Os professores que pegam mais adolescentes é
que vivenciam o tempo inteiro.
com os processos educativos podem ser sutis:
9
9 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
10 - Raimunda. Entrevista VI. [16 jan. 2018]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2018.
O modelo de educação vigente prioritariamente em nossas escolas
vem desde a modernidade e tem o objetivo de buscar generalizações. Os
alunos passam pelos mesmos processos e precisamos chegar aos mesmos
objetivos. Quando há um problema, precisamos voltar e pensar o aluno de
forma individual. Contudo, a organização do ensino não nos permite ter
esse trabalho com as diferenças.
Em Diferença e repetição, Gilles Deleuze (2006) em suas argumen-
tações, arma que a aprendizagem não se dá com a reprodução do mesmo,
e sim no encontro com o outro, com o diferente. Ele arma: “Aprender é
constituir este espaço do encontro com os signos, espaço em que os pontos
notáveis se articulam uns nos outros e em que a repetição se forma ao mes-
mo tempo que disfarça” (DELEUZE, 2006, p. 48-49). Na segunda entre-
vista, Raimunda se aprofunda um pouco mais nas lacunas de sua formação,
quando diz:
De certa parte sim. Porque assim, querendo ou não a: a
formação ela nunca é completa. E a gente sente falta de,
por exemplo, a questão de trabalhar alunos com deciência,
a gente vê um modulo ou outro que quando se está na
faculdade. E é a vivência que nos ensina. Hoje em dia a
formação, a constituição familiar que não é mais aquele,
pai: mãe: lhos: que já temos várias formas de constituição
familiar e isso repercute dentro da sala de aula. Então, tudo
isso o professor tem que tá se inovando a todo instante, e
não parar as leituras, não parar os cursos (risos).10
031Vol I - Subjetividades & Diferenças
Coeducar na contemporaneidade vai muito além de se ter meninos
e meninas em sala de aula. São múltiplas as diferenças, e o cotidiano es-
colar nos apresenta novas diferenças diariamente. Joan Scott (1998), com
a invisibilidade da experiência, demonstra que estudos voltados a pensar
essas temáticas dão visibilidade às diferenças e nos ajudam a compreender
como as disparidades são estabelecidas e quais as produções discursivas
que compõem saberes sobre elas.
É preciso professoralizar para contrapor os movimentos de nivela-
ção da subjetividade. As singularidades precisam resistir a este processo.
Para Guatarri e Rolnik, “todos os devires singulares, todas as maneiras de
existir de modo autêntico chocam-se contra o muro da subjetividade capi-
talística” (2010, p. 59). As subjetividades não podem ser centradas em um
indivíduo, em um modelo.
Na primeira entrevista com Larissa, quando perguntei sobre sua for-
mação e em quais momentos havia estudado sobre coeducação, ela revelou
ter estudado muito pouco sobre o assunto:
Pouco. Bastante pouco. Eu tinha uma disciplina que
chamava História Social e a professora focava muito
essa questão, mas não: foram levantados grandes debates
durante o processo formativo. No mestrado, por exemplo,
na escolha de um tema para se aprofundar na educação
e não levantaram essa discussão. Durante meu processo
formativo eu pouco trabalhei [...] (3) Esse tipo de discussão
necessário é, mas minha turma é de quinto ano, mas eu
trabalho muito mais com a perspectiva de fortalecimento
da identidade do discurso delas, mas não assim uma
discussão especíca sobre, ou que existem atividades que
são separadas, mas é importante. Agora assim, nos dias de
hoje eu peço para os alunos reetirem sobre seus discursos
e suas ações. Acho que empoderá-los nessa sociedade
é uma discussão que procuro fazer. Então, acho que já
esteja esgotada essa discussão. Eu sei que não está, mas
sei que é uma discussão que não consigo fazer tão bem,
em meio às atribuições que tenho da escola, e, somado a
isso eu também não me especializei nessa área. Eu gosto
de discutir e trabalhar o que tenho competência para isso.
11 - Larissa. Entrevista II. [31 ago. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
11
032 Corpo, políticas e territorialidades
No segundo bloco de entrevista, Larissa continua a sentir a falta de
ter trabalhado a temática em seu processo formativo. Contudo, compre-
ende que a formação na graduação não dá conta de todas as necessidades
da sala de aula, armando que a formação na Universidade precisa ser
ressignicada, pois o modelo de formação docente não está dando conta
das demandas sociais existentes. Percebe que houve, ao longo de sua for-
mação, uma concentração da temática da mulher na História da Educação,
não tendo, para além, nenhum suporte para aprofundar o estudo e construir
argumentações para contrapor enquadramentos. Larissa faz uma análise
das diferenças na educação e na sua atuação docente no seguinte ponto,
[...] depois que eu entrei no doutorado, ainda, de uma
forma mais intensicada, tanto porque agora eu tenho
um conhecimento teórico maior sobre o campo, eu tenho
estudado mais, e: eu tenho visto, nos últimos tempos
principalmente depois desse um ano e meio, o quanto esses
comportamentos machistas, conservadores, NÃO SÓ
EM RELAÇÃO À MULHER, mas a vários grupos, às
minorias em geral, tem emergido assim, como tem voltado
com força total dentro do cenário político que a gente tem
vivido atualmente. Então esse ano de 2017, que encerrei
agora, foi um ano que os meus discursos foram ainda mais
marcados nessa questão, é, e também agora assim, eu
comecei a chamar muita atenção também para a questão
do negro. Porque antes eu já trabalhava um pouco menos,
porque eu acreditava que a gente já tava num caminho
de superação, e quando eu vejo o ódio, a intolerância, e
tudo voltando à tona, aí eu senti a necessidade de começar
a trabalhar isso de uma forma mais forte aqui dentro da
escola.
12
12 - Larissa. Entrevista IV. [03 jan. 2018]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2018.
Na entrevista de Sophia, também há uma indicação próxima à de
Larissa, quando ela sinaliza ter estudado pouco na graduação temáticas
ligadas às questões de gênero. No seguinte trecho ela diz:
Eu acho o tempo importante, porque muita coisa que
estudei de história da educação foi porque estudei sozinha.
Eu comprei um livro de História da Educação para ler em
casa, porque quando comecei a estudar (2) eu gostava e
033Vol I - Subjetividades & Diferenças
cava estudando muitas coisas. Eu vejo que é importante,
porque é impossível a gente entender. (3) Muitas coisas,
que a gente vive, para você entender porque, o que
aconteceu para que hoje estivesse desse jeito. Até muita
discriminação, que a mulher sofreu. E porque tem o dia
da mulher? (risos) E, para você explicar toda essa questão,
que haja entendimento.13
13 - Sophia. Entrevista III. [02 set. 2016]. Entrevistadora: Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
Em nossa formação passamos por diversos temas que iremos tratar
em nossas salas de aula, mas é preciso haver momentos para entrarmos em
contato com diversas outras experiências e pensarmos as questões das sa-
las de aula na contemporaneidade. O modelo educacional contemporâneo
tem sido questionado, muito em razão de não sabermos como atuar com
a diferença; e é difícil trabalhar algo que sequer pronunciamos. Naturali-
zamos conceitos e estamos a defendê-los mesmo que estejam desconexos
com nossas vivências cotidianas.
Mas como movimentar nossas formações? Temos uma Filosoa da
Educação, por exemplo, que se tornou apenas uma reexão da educação,
sendo que, para Deleuze e Guattari, “a losoa é a arte de formar, de in-
ventar, de fabricar conceitos” (1992, p. 10). O professor de Filosoa da
Educação, segundo este lósofo, precisa instrumentalizar seus alunos com
os conceitos acerca das questões relativas à educação para que possa, no
desconhecido e imprevisível que é sala de aula, acioná-los quando neces-
sário e promover naquele espaço relações com aprender que provoquem os
alunos a movimentar o pensamento.
Deleuze e Guattari (1992) nos propõem pensar a Filosoa como
criação de conceitos. Para Silvio Gallo, dentro deste entendimento, “nada
faremos pela Educação, se nos limitarmos a repetir velhos conceitos, a
raspar esses ossos como cães famintos... Assim losoa da educação tor-
na-se algo totalmente desinteressante, cada vez mais despontecializada”
(GALLO, 2008, p. 56). Nós, enquanto professores, não aprendemos a uti-
lizar os conceitos como instrumentos para pensar a educação, nossa sala de
aula e nossas ações.
O Aprender, este que está sempre em construção, é a vontade e o
desejo que nos levam a produzir e a criar, e não desconsidera as marcas que
nos cortam. Deleuze entende o conceito de aprender, nesse seguimento, co-
034 Corpo, políticas e territorialidades
locando que o “aprender vem a ser tão-somente o intermediário entre não-
-saber e saber, a passagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que apren-
der, anal de contas, é uma tarefa innita” (DELEUZE, 2006, p. 271).
Assim, aprender não é apenas aquisição de conteúdos como nossa escola
contemporânea tem nos levado a pensar. Esse aprender habita a criação, o
demorar-se, o perder tempo e encontrar-se com o desconhecido.
No nosso mundo educacional, o conhecimento tem se colocado fren-
te a uma excessiva disciplinarização, em uma estrutura arbórea de divisão
do conhecimento. Essa hierarquização do saber tem sido uma das grandes
discussões no campo educacional, em que se propõe uma educação trans-
disciplinar, sendo o maior problema a própria disciplina, que delimita o
conhecimento, o enquadra e rearma um regime de verdades.
Para isso, Deleuze vai pensar no conceito de rizoma que “remete-
-nos para a multiplicidade” (GALLO, 2008, p. 76). Ou seja, uma produção
de conhecimento sem início e m, para fazer proliferar pensamentos que
se conectam com este ou aquele sem hierarquias. É sempre múltipla e não
a forma una da árvore, que nos obriga a hierarquizar o pensar e nos propõe
a repetição do mesmo ao invés da criação.
São intensos os movimentos para a formação de um rizoma e pode-
mos acessá-los por diversos pontos. É um pensamento que pode ser afe-
tado por uma nova fala dos alunos, que fez com que se modicassem as
compreensões sobre determinado assunto. Não compartilha essa ideia de
que um pensador disse algo e você, em sua classe, precisa enquadrar as
situações a essa teoria.
A educação escolar contemporânea tem se utilizado de muitos me-
canismos de controle. São tantos que é como se o aluno tivesse de encon-
trar seu lugar como peça em um relógio nessa escola vigilante, controlado-
ra da falta, do conceito, da nota, da prova.
Há também uma intensa disciplinarização do conhecimento, subdi-
vido para controlar o acesso a ele. Anal, “a escola é o lugar da disciplina,
de seu aprendizado e do seu exercício” (GALLO, 2008, p. 82). Uma escola
cunhada na modernidade tem de rearmar seus conceitos, entre eles, a hie-
rarquização do conhecimento.
Nesse exercício de poder, há sempre uma ordem implícita presente
nas avaliações. A avaliação para dominar, para exercer poder sobre o alu-
no. Na velha ameaça da caderneta, em que o aprender é confundido com
adquirir conteúdos. O aprender, nessa escola, não dá tempo para pensar e
035Vol I - Subjetividades & Diferenças
criar, é compartimentado, porque precisamos ter unidade, provas, revisões.
O importante é apenas reconhecer e dar opinião sobre tudo. Esse controle
é contínuo e está em todos os níveis da escolaridade.
Sendo assim, depois de tantos movimentos no campo de pensamen-
to da professora/mulher tenho compreendido sua formação como algo em
construção, que se desvela nas experimentações vividas em sala e na vida,
a cada provocação e construção de saberes. Estamos sempre lidando com
o porvir e os múltiplos que passam em nossas salas. Enquanto professoras,
temos de estar abertas às formas distintas de lidar com o mundo em que
vivemos.
A escola precisa nos tocar para que haja aprendizagem. Este tem
sido um lugar onde poucas vezes podemos acionar nossas experiências. O
válido é opinar, ter sempre as respostas desejadas prontas. Nesse mundo da
velocidade, a escola tem nos deixando cada vez mais um tanto mecânicos,
não podemos sair da engrenagem porque assim estamos em contraconduta.
Em busca da grade, do currículo, do planejamento, do padrão, nosso
sistema de ensino exclui a diferença e produz diversas outras nesse trabalho
insano de tentar encaixá-las dentro do molde. Todos os que não conseguem
passar pelo seu crivo, são desconsiderados nesse processo tão desigual.
Considerações nais
Axiomas
Sempre é melhor
saber
que não saber.
Sempre é melhor
sofrer
que não sofrer.
Sempre é melhor
desfazer
que tecer. (Orides Fontela)
É preciso desfazer o conceito de mulher, construído cultural e his-
toricamente. Precisamos problematizar a condição da mulher que vive em
enquadramentos ensinados cotidianamente na educação escolar e para além
036 Corpo, políticas e territorialidades
dela. As mulheres precisam romper os cativeiros aos quais foram subme-
tidas, não podem ser privadas do governo de si, da liberdade do seu corpo
ou da educação com princípios de igualdade.
Pensar a mulher sob outras perspectivas é necessário não para virar
o jogo, mas para propor um novo jogo baseado em princípios de igualdade.
Desde a educação ao mercado de trabalho, precisam ser repensados; não
podemos tolerar a existência de produções discursivas que legitimam a in-
ferioridade do trabalho realizado pelas mulheres, ou até mesmo a condição
desigual de concorrência. Sabemos que a condição da mulher professora
já começou numa perspectiva de desigualdade com relação aos homens,
porque mesmo com as mesmas ocupações recebiam, no início da pros-
sionalização docente, salários distintos, fato ainda presente na contempo-
raneidade.
As pesquisas no campo da educação precisam ter um olhar mais
sensível às diferenças, entre elas as mulheres, objetivando a desconstru-
ção da identidade feminina patriarcal dominante. O conceito mulher pre-
cisa ocupar espaços sociais, culturais e políticos, de forma a atuar por uma
igualdade de gênero, direito à educação, trabalho e demais demandas so-
ciais dentro dos princípios de equidade.
Com as narrativas das professoras Sophia, Larissa e Raimunda, po-
demos compreender alguns aspectos que demonstram como a mulher se
tornou o que é hoje. Como as produções discursivas habitam os corpos e
reiteram a repressão ao feminino.
Na trajetória dessas mulheres podemos compreender como diversas
marcas atravessam o nosso caminho, a nossa formação docente. São mui-
tos encontros e desencontros, entre as aulas que são preparadas e atingem
seus objetivos, e outras que não, mas que nos demonstram que estamos
lidando com os inusitados provocados pelas intercessões das diferenças
nas salas de aula.
São múltiplas as experiências compartilhadas pelas professoras do
Triunfo. Foi no decorrer de suas narrativas que acabaram por olhar para
suas marcas e reetir sobre suas atuações docentes. O desenvolvimento de
dois blocos de entrevistas demonstrou que as professoras movimentaram
as suas professoralidades. Foi acertada a ação de voltar ao campo de pes-
quisa e apresentar às professoras a transcrição da primeira entrevista para
que pudessem modicar o texto de acordo com o que não compreendiam
ter sido dito daquela forma. Elas não solicitaram correção ou exclusão de
037Vol I - Subjetividades & Diferenças
Referências
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ZI, C. (org.). História das mulheres no Brasil. 2. ed. São Paulo: Con-
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revph/article/view/11183. Acesso em: 18 abr. 2020.
pontos críticos, que poderiam tirar algumas possibilidades de desenvolvi-
mento da pesquisa. Corrigiram apenas o necessário, pequenas alterações
na forma de compreender o áudio. Isto provocou uma mudança na com-
preensão delas sobre a pesquisa; passaram a colocar em xeque sua atua-
ção, observando como agem em determinadas situações; questionaram-se,
o que me instrumentalizou acerca da pesquisa com o humano, com aquilo
que está sempre em movimento.
As narrativas das professoras demonstram como suas salas de aula
estão carregadas por práticas discursivas que determinam verdades para
suas alunas. Seja na prática, nos livros didáticos, nas normas, na arquite-
tura, nas brincadeiras, em todos os cantos da escola há enquadramentos.
038 Corpo, políticas e territorialidades
PPatriarcado:
(Des)valores de uma
história mal contada
Carla Jeane Helfemsteller Coelho
039
As opressões estruturais contra as mulheres, existentes historica-
mente no mundo inteiro, representam muito mais do que o ataque à dig-
nidade somente das mulheres, mas indicam o comprometimento do que
almejamos quando queremos ser humanos. Somente nas últimas décadas,
com o avanço das pautas feministas, que estes mecanismos opressores
têm sido questionados e deagrados enquanto opressões de gênero. Es-
tas opressões de gênero são antigas e estruturais e são desencadeadas e
perpetuadas em função de um fenômeno que é o sistema patriarcal, ou, o
patriarcado: sistema social/cultural, político e econômico no qual se encon-
tra a origem e a manutenção da opressão das mulheres perpetradas pelos
homens (LERNER, 2019).
Este sistema, no entanto, não é universal e nem sempre orientou
todas as organizações sociais. A perscrutação das imagens arquetípicas,
que representam as mulheres em períodos em que elas são protagonistas e
valorizadas, desestabilizam as crenças que naturalizam a suposta inferiori-
dade das mulheres produzidas pelo patriarcado. Por isso a importância de
conhecer outras narrativas desta história, para que seja alterado o imaginá-
rio da suposta inferioridade e subalternidade das mulheres, que tem produ-
zido o desenvolvimento de crenças e valores com os quais se produzem e
justicam diferentes formas de violência. A subordinação das mulheres é
possível a partir da ideia de inferiorização delas. Tanto a ideia de subordi-
nação quanto a de inferiorização das mulheres geram opressões e violên-
cias estruturais, o que torna os valores que fazem pessoas acreditarem nes-
ta subordinação, justicando esta inferiorização e toda sorte de violências
decorrentes, algo que precisa ser discutido, desnaturalizado e ultrapassado.
O ensaio que ora se apresenta oferece recortes provenientes de pes-
quisas atuais da autora com o objetivo de suscitar reexões sobre valores
que são desenvolvidos pelo sistema patriarcal apontando aspectos do de-
senvolvimento epistêmico deles, e como estes valores, presentes tacita-
mente, inclusive nas mulheres, limitam suas vidas produzindo a permanên-
cia da subordinação das mulheres – marca deste sistema.
Apresentamos aqui, a partir de elaborações de dois projetos de
pesquisa da autora que estão em curso nos quais, perscrutando narrativas
losócas, míticas e religiosas, a construção epistêmica e axiológica do
sistema patriarcal e suas consequências. Identicando sociedades que se
organizaram, ou se organizam, fora dos moldes patriarcais, desmitica-se
a ideia de uma universalidade patriarcal, desnaturalizando seus efeitos por
040 Corpo, políticas e territorialidades
meio do conhecimento da História das Mulheres por elas contada. Tais
pesquisas foram iniciadas por entendermos ser fundamental atentar para o
fato de que existe um sistema estrutural que ainda mantém a hierarquia da
sociedade, excluindo mais da metade da população formada por mulheres.
As reexões aqui apresentadas reetem a trajetória de uma mulher
que cursou Licenciatura em Filosoa enfrentando muitos obstáculos para
dar continuidade aos estudos no campo da Filosoa, em seus programas de
pós-graduação frequentados majoritariamente por homens. Considerando
as estatísticas em torno do número de mulheres presentes nos cursos de
Filosoa, a ocupação deste espaço somente através de esforços que se tra-
duzem em resistência, não representa um episódio particular isolado, e sim
constitui mais uma amostra de uma realidade na qual, às mulheres, o espa-
ço da losoa (e da vida pública/política) ainda é muitas vezes inacessível.
Neste sentido, estas reexões consideram a ausência das mulheres
na Filosoa, ausência esta constatada também na dimensão da vida públi-
ca/política. Parte do entendimento de que se faz necessário ampliar o leque
de investigações sobre fatores que perpetuam a exclusão das mulheres no
debate losóco, bem como sobre a inferiorização que as mulheres ain-
da sofrem reetida nos desaos enfrentados na inserção na vida pública/
política, considerando que os fatores que têm justicado historicamente a
inferiorização e subordinação das mulheres, são os mesmos que legitimam
a exclusão e a violência contra nós.
Partimos do pressuposto que o sistema patriarcal produziu uma
episteme geradora de valores que inferiorizam e subalternizam as mulhe-
res, fazendo com que elas próprias tornarem-se reféns da crença de infe-
rioridade e subalternidade reetidas em diversas formas de dependência; e
que para que tais valores sejam alterados, mudando mentalidades, e assim
produzindo uma mudança epistêmica, é necessário perscrutar sua gênese e
os fatores que os fortalecem, desnaturalizando-os.
Em termos de metodologia, trata-se de uma pesquisa qualitativa, -
sica, bibliográca e documental. Compreende ser este o papel da losoa
enquanto área que produz conceitos e que se ocupa da reexão por meio do
exercício de um metapensamento (TIBURI, 2018), assim como – e princi-
palmente precisa investigar e esclarecer (desmiticar) o que possibilita,
produz e perpetua formas de opressão, contribuindo para com a superação
do obscurantismo.
Espera-se, como resultados destas pesquisas, contribuir para a des-
041Vol I - Subjetividades & Diferenças
miticação e esclarecimentos do que seja o patriarcado e suas consequên-
cias, visando o avanço das pautas feministas e de todo movimento que se
opõem as opressões e violência de gênero, visto que pensar, escrever, ler
e falar sobre, que valores tem se perpetuado com o patriarcado, é emanci-
pador às mulheres e aos homens, pois nos leva a desnaturalização de um
sistema que instituiu, por séculos, que metade da população humana seria
inferior.
[...] toda vida humana nasceu de uma mulher e é isso que
nos une como espécie: todos nós passamos um período em
torno de quarenta luas nos desenvolvendo dentro do útero
de uma mulher (RICH, apud CLÍMACO, 2020).
A Estória da nossa história não contada pelos homens
Os achados das investigações sobre o patriarcado e suas consequ-
ências demonstram que não estamos diante de um fenômeno universal. E
para responder à pergunta, se sempre foi assim? As investigações são mul-
tidisciplinares. Vamos encontrar em diferentes áreas, tais como na Arte, na
Poesia, na Filosoa e, principalmente, na Antropologia e na Arqueologia,
indícios de que houve grupos sociais que se organizaram de forma não pa-
triarcal, nos quais pode ser captado o protagonismo das mulheres, seja em
organização matrilinear , matricêntricas ou matrifocais.
Estudos revelam a existência destes grupos sociais em períodos que
antecedem o que é considerado em nossa cultura como a história da civili-
zação, e correspondem ao que é geralmente considerado como pré-história.
Mas a arqueóloga Marija Gimbutas , que dedicou parte da sua vida inves-
14
14 - A matrilinearidade é aqui compreendida como o sistema de parentesco, de liação através do qual somente a as-
cendência (família) da mãe é tida em consideração para a transmissão do nome, dos benefícios ou do status de se fazer
parte de um clã ou classe, enquanto na patrilinearidade a ascendência considerada é a paterna (OLIVEIRA, 2018, p. 319).
15 - Matricentricidade- Forma de organização que tem como base fundamental a unidade matricêntrica, que se congura
como a menor unidade de parentesco e como uma menor unidade autônoma de produção, cujos laços são denidos a partir
da maternidade. Esta maternidade não se caracteriza apenas como a de caráter biológico, mas como parte da estrutura de
uma organização social que tem como base a ideologia que todos aqueles que estão inseridos em uma unidade matricên-
trica estão ligados por laços maternos (OLIVEIRA, 2018, p. 323).
16 - Matrifocalidade é aqui compreendido como um conceito que designa um grupo doméstico centrado na mãe, sendo o
papel assumido pelo pai secundário (OLIVEIRA, 2018, p. 326).
17 - Ver Documentário: Voice of the Goddess: Marija Gimbutas. Documentário sobre a estreia mundial do livro de Marija
Gimbutas, Civilization of the Goddess. Produzido e dirigido por Lollie Ragana para a Santa Monica City TV. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=-k34hXty4iw. Acess em: 17 abr. 2021.
15 16
17
042 Corpo, políticas e territorialidades
tigando e estudando organizações sociais nas quais, através de registros ar-
queológicos, foi possível identicar formas de organização não patriarcais,
não rearma a noção de pré-história, no sentido de um anacronismo.
Diferentemente do que encontramos na literatura convencional
hegemônica, Gimbutas denominou este período como “A civilização da
Deusa”, e não como pré-história: ideia correspondente a um tempo que
antecede aquele consagrado enquanto o legítimo representante do início da
“civilização”.
Os estudiosos costumam situar as origens do culto da Deusa
no período Paleolítico (por volta de 100.000 a 10.000 a.C.),
também chamado “período dos caçadores/coletores”. As
estátuas da Deusa representada como uma mulher com
seios e nádegas pronunciadas – as chamadas “Vênus
Paleolíticas” estão entre as primeiras representações
do divino que a humanidade elaborou. Algumas dessas
imagens datam de 30.000 anos atrás. Tradicionalmente
vistas como ligadas a algum culto antigo de fertilidade,
elas foram reinterpretadas por Marija Gimbutas como
representações dos poderes do mundo geradores da vida,
precursoras muito antigas da Grande-Mãe que ainda será
reverenciada em épocas históricas (
OLIVEIRA, 2005, p. 3)
.
A leitura das considerações apresentadas por Marija Gimbutas,
quando discute a noção de civilização imposta por uma organização que se
pauta por valores destrutivos, já que subordinação e exclusão são consequ-
ências de valores destrutivos, nos faz estabelecer relações com as noções
que colocam a mulher como alter, em relação ao homem. Como apontou
Simone de Beauvoir (2009), a mulher é o outro em relação ao homem.
O que nos convida a repensar certezas que nos foram condicionadas, tais
como a universalidade do patriarcado e a subordinação da mulher. Pode-
mos pensar sobre como, e por que, organizações sociais que existiram por
muito mais tempo do que o tempo demarcado enquanto a “História ocial
patriarcal”, são ignoradas ou desconsideradas? Como questiona Myara
(2021, n.p.) “[...] se a história do patriarcado tem 5000 anos, temos notícias
de culturas pré-histórias possivelmente matriarcais que datam de até 40000
a.e.c (antes de era comum). Se o patriarcado tem 5000, a civilização da
deusa tem 40000”.
Rosalira Oliveira (2005) destaca que o protagonismo da mulher e a
043Vol I - Subjetividades & Diferenças
reverência à “grande mãe”, presente no Paleolítico, estará presente no
que é conhecido como a “revolução agrícola”, consolidando-se no perío-
do seguinte. As pesquisadoras Gimbutas (1998) e Oliveira (2005), diante
do impressionante número de artefatos (esculturas, gravuras e outras ima-
gens) simbolizando o feminino, interpretam que há um grande prestígio do
feminino no Neolítico, associando poder e natureza divinas. Para Gimbu-
tas (1998, p. 67, apud OLIVEIRA, 2005, p. 3), “[...] uma única linha
de desenvolvimento de um sistema religioso, desde o Paleolítico Superior,
passando pelo Neolítico, pelo Calcolítico e pela Idade do Cobre baseado
em uma organização matrifocal”.
As pesquisas que apontam ter havido formas de organizações so-
ciais não patriarcais detectaram, através do que indicam seus vestígios, que
estes grupos estabeleciam uma relação com a natureza mais sustentável,
pois concebiam o mundo natural e o mundo humano como interligados na
grande teia da vida, representado nada menos do que com o próprio corpo
da mulher: a mãe terra (OLIVEIRA, 2005).
Na área da arqueologia, é possível observarmos artefatos e
vestígios que sobreviveram dezenas de milhares de anos,
e que nos levam a especular acerca de uma constituição
social e comunitária entre homens e mulheres diferente da
que se congurou na civilização patriarcal, da qual somos
herdeiros involuntários. As antigas sociedades matrifocais
não estavam, ao que tudo indica, posicionadas sobre
práticas de dominação, acumulação e guerra (MYARA,
2021, n.p.).
A associação da mulher com a criação, a fecundidade, a abundância
e os ciclos da natureza parece se dá pela percepção imediata dos ciclos da
mulher (juventude, maturidade e envelhecimento), pela sexualidade, e pelo
processo de fecundar, gerar e parir a vida. Parte dos vestígios encontrados
e estudados se constitui em esculturas, estatuetas, desenhos, e estes são
frequentemente simbolizados através do corpo da mulher, demonstrando
reverência aos seus ciclos, reverenciando e valorizando tanto a vida como
a morte; e ao poder da sexualidade e da fecundação (seios fartos, ancas lar-
gas, vulvas salientes, corpos robustos e fartos) que, para Gimbutas (1998,
54, apud OLIVEIRA, 2005, p. 3), constituem uma
[...] representação religiosa - a reicação da Geradora
044 Corpo, políticas e territorialidades
da Vida. Aquelas partes do corpo que, aos nossos olhos,
parecem exageradas ou grotescas são as suas partes mais
importantes, mágicas e sagradas; a fonte visível e produtiva
da continuidade da vida em seus diversos aspectos e
funções.
Vericam-se incontáveis registros que possibilitam interpretar a
existência de cultos e reverências às mulheres, reverenciando-as enquanto
portadoras do poder da fecundação e da geração da vida; razão, provavel-
mente, para o estabelecimento de uma relação entre a adoração da Deusa e
a matrifocalidade. É neste sentido que muitos estudos se reportam a adora-
ção, a religião ou, a civilização - da Deusa, ao reportarem-se às explicações
destas sociedades não patriarcais, como é o caso de Gimbutas. Trata-se de
um precioso estudo arqueológico, antropológico, artístico, losóco, que
é multidisciplinar.
O culto do divino feminino é um dos mais antigos que se
tem notícia. O primeiro elemento cultuado pelo homem
foi a Terra. E a Terra, dizem os mitos, foi gerada por
ela mesma. A vida surgia da sua carne rasgada e jorrava
das suas profundezas. Era ela que produzia os frutos, os
animais e o próprio homem. Ela era a mãe de todas as
coisas vivas e também a responsável pela morte. Anal,
se a vida era percebida como um “ab uterum”, um emergir
do ventre da Terra, a morte representava uma volta, um
regresso “ad uterum”, para que um novo nascimento
pudesse acontecer. Assim ocorria com a semente, assim
também com o homem. Os ciclos de morte e renascimento;
criação e destruição; observados na natureza, eram sentidos
como igualmente válidos para a trajetória do homem no
mundo. Para a humanidade do início dos tempos, não
havia separação entre o mundo humano e o mundo natural
e todos compartilhavam o mesmo destino como lhos da
Terra (OLIVEIRA, 2005, p. 1).
Oliveira (2018, p. 318) estudando a obra “The cultural unity of
Black Africa – the domains of patriarchy and of matriarchy in classical an-
tiquity” (1989) de Cheik Anta Diop, identica no continente africano uma
organização matriarcal que antecedeu o patriarcado que fora introduzido
apenas com a penetração do islamismo no continente e sem, no entanto,
penetrar tão profundamente na base do sistema matriarcal daquele lugar.
045Vol I - Subjetividades & Diferenças
A pesquisadora, analisando o posicionamento de diversos autores
em relação ao estudo das formas de organização social em diferentes cul-
turas, percebe (e identica tal percepção por parte dos autores estudados)
uma tendência à valorização das sociedades patriarcais e uma desquali-
cação das formas de organização matriarcais, escrevendo que “[...] os
mesmos defendem o processo que leva da organização matriarcal à patriar-
cal como um progresso universal vivido pelas sociedades, como uma evo-
lução, considerando as estruturas sociais matrilineares como retrógradas”
(OLIVEIRA, 2018, p. 322).
Mas Oliveira (2018, p. 322) explica que, para Dio existiram orga-
nizações sociais nas quais havia a presença tanto do matriarcado quanto
do patriarcado, o que demonstra que o patriarcado não é universal, mas
constitui características importantes de ser aprofundadas em função de seu
caráter de dominação, opressão e exclusão. O autor estudado pela pesqui-
sadora aqui citada sugere a existência de:
[...] dois “berços” de desenvolvimento humano, que seriam
o do norte, berço setentrional, e o do sul, berço meridional,
tendo como ponto de divisão a bacia do Mediterrâneo.
O berço setentrional, por apresentar um caráter nômade
devido ao ambiente árido, estando ligado aos povos indo-
europeus, englobando a Europa mediterrânea e o Oriente
Médio semita, foi favorável à organização patriarcal,
pois a mulher era vista como um fardo que o homem
carregava, tendo sua função reduzida à procriação. Devido
ao clima bastante rigoroso e ao solo gelado, a vida estava
em constante perigo e prolongou-se a dependência da
caça, pois a agricultura não pode se desenvolver. Isso fez
também que o homem necessitasse usar muitas vestimentas
e habitar lugares fechados. Estas características teriam
sido responsáveis pelo desenvolvimento de hábitos de
competição, de conquista, práticas materialistas, um culto à
propriedade privada e uma visão intolerante em relação ao
outro. Fundaram-se sociedades patricêntricas, falocráticas,
tendo o lugar central ocupado pelo homem, que tiveram
uma agressividade herdada pelo modo de vida nômade,
que desencadeou os ideais de guerra, conquista e violência.
O homem assim desenvolve um sentimento de solidão
moral e material e uma posição individualista. Já o berço
meridional, que engloba a África, tendo como base de
046 Corpo, políticas e territorialidades
Esta mudança de mentalidade, crenças e valores pode ser identica-
da, por exemplo, na formação do panteão grego . Como escreve Oliveira
(2005, p. 2),
desenvolvimento sociedades agrárias, devido à vegetação
existente, possibilitou o processo de sedentarização, tinha
a mulher como base de uma função central, pois era ela que
trabalhava na agricultura enquanto os homens caçavam,
sendo assim sociedades favoráveis à organização matriarcal.
As propriedades eram coletivas e a organização social
baseava-se em uma vida comunitária. Caracterizava-se por
ser uma sociedade uterocêntrica, pela policonjugalidade,
pela matricentricidade e por uma concepção solidária de
vida em comunidade, o que tornava possível a xenolia e a
percepção positiva da alteridade, pois o outro não era visto
como inimigo.
A transformação dos valores que protagonizavam as mulheres, mui-
tas vezes em relação de igualdade com os homens, e a valorização da ci-
clicidade que levava a uma relação de respeito com a natureza, onde são
cultivados princípios como colaboração e solidariedade, passa a ocorrer
com o início do advento das organizações patriarcais.
Em algum momento da história humana, de acordo com
as circunstâncias de produção, clima, relação entre tribos,
localização geográca, entre outras, iniciaram-se processos
por meio dos quais o homem se estabeleceu como agente
social dominante dos corpos das crianças, das mulheres,
dos não brancos e não europeus, dos corpos dos animais e
do corpo da terra. O fetiche da dominação que se expressa
em todas as esferas da vida pública e privada é resultado
de uma cultura que se forjou sobre essas bases ideológicas,
marcadas pelas ações violentas e brutalizantes (MYARA,
2021, n.p.).
18
18 - E estudar como esta transformação ocorre na Grécia é importante, posto a inuência desta cultura na cultura ociden-
tal de forma mais ampla, decorrente das marcas coloniais.
[...] bem antes dos mitos clássicos tomarem forma e serem
escritos por Homero e Hesíodo – no século VII a.C. – já
havia uma rica tradição oral de formação de mitos. Muito
provavelmente, estes mitos reetiam o resultado do
processo de conquista da região da Anatólia pelos indo-
europeus.
047Vol I - Subjetividades & Diferenças
Com advento do patriarcado teremos a decadência da mulher que
irá impregnar o imaginário (produzindo valores), através das transforma-
ções ocorridas nas representações das mulheres nas diferentes narrativas:
de Deusas, livres (não monogâmicas), responsáveis pela fertilidade, gera-
doras de vida, donas de seu corpo e de sua sexualidade, heroínas, escrito-
ras/poetas, passam a ser consideradas mulheres possessivas, invejosas e
ciumentas (retratada no mito de Hera ou de Medeia), submissas, depen-
dentes dos homens, histéricas, perigosas, demoníacas. Considera Myara
(2021, n.p.) que:
Inanna, entre outras, não são meramente criações idealizadas
de beleza, maldade, loucura etc. Essas mulheres, deusas
e demônios, encarnam imagens socialmente construídas
do feminino, e expressam o psiquismo da cultura que
as forjou ou interpretou. Ainda em nossa cultura essas
guras estão presentes. Uma mulher que se desfaz de uma
relação e expressa sua ira acerca das injustiças sofridas é
comparada a Medeia, “vingativa, louca, com olhar de leoa
que pariu”. Uma mulher sexualmente emancipada, que
toma vários amantes, não só é bela como a “bela Helena de
Tróia”, mas também compartilha com a rainha espartana
a fama de “prostituta, rameira desavergonhada, cadela”.
Mulheres sedutoras frequentemente são chamadas de
sereias, monstruosidade feminina que permeia diversas
culturas, ora na forma de peixe, ora na de pássaro, e que
desmembram e devoram os homens. Mulheres que tentam
fazer ouvir suas vozes, que se apresentam rmemente na
esfera pública, comportam-se, dizem, como “Cassandra,
a louca!”, alucinando um protagonismo social que nunca
poderiam ter, sonhando “o sonho de Cassandra”. A titulação
honrosa de “estrela da manhã e da noite”, de antigas deusas
como Inanna, Ishtar, Ashterah, Afrodite e Vênus, tornou-
se a titulação do anjo caído na narrativa cristã, Lúcifer, o
demônio.
Torna-se fundamental investigar, estudar e perscrutar essas narrati-
vas, porque elas exercerão grande inuência na construção de um imaginá-
rio que produzirá e aceitará a inferiorização e subordinação das mulheres
como algo natural e necessário.
De acordo com Lerner (2019), dados históricos, literários, arqueo-
lógicos, artísticos e losócos demonstram que a mentalidade patriarcal é
048 Corpo, políticas e territorialidades
desenvolvida através de ideias, símbolos, metáforas e valores, através dos
quais é incorporada e tem sido sustentada, na civilização ocidental, a ideia
de que a dominação da mulher pelo homem é algo natural e necessário.
Rose Muraro (2000, p. 35-36) apresenta um exemplo categórico de uma
destas metáforas que exerce grande inuência no desenvolvimento deste
imaginário e destes valores.
O capítulo 2 do Gênesis é o texto fundante do patriarcado.
No Gênesis, Deus tira o homem da lama, e a mulher da
costela de Adão. Mas desde que Freud existe, já podemos
fazer uma outra leitura desse texto. Por um mecanismo
de defesa – o deslocamento -, pode-se ver que não é da
costela, mas do ventre de Adão que Deus tira a mulher.
Pelo mecanismo de deslocamento, descreve-se uma
sociedade violenta por uma mais fraca, mais eufemística.
O inconsciente capta, mas o consciente rejeita. Quer dizer,
o homem pare a primeira mulher e o parto primordial é do
homem. [...] e agora o parto, que era aquilo que imprimia
o caráter misterioso, sagrado à mulher, é desqualicado. A
mulher, por ter ouvido a serpente, que era no matricentrismo
a sabedoria, o animal primordial, o animal do conhecimento,
é agora, no patriarcado, a sexualidade, o demônio; induz o
homem a comer o fruto da árvore do conhecimento. E, com
isso, ela se torna culpada pelo pecado original, que afaste
o homem de Deus, e por isso o homem só recebe de Deus,
duas maldições [...] Além da morte e do trabalho, a mulher
tem outras duas maldições, a primeira é o parto com dor
(nas sociedades primitivas, o parto era um trabalho pesado
do corpo em estado gasoso, mas não era doloroso). E
também esta: “E tu te apaixonarás por teu marido, e por
ele te dominará”. Aqui o javista é absolutamente diabólico
e absolutamente um gênio, [...] porque nos revela como a
mulher ama e o homem domina (MURARO, 2000, pgs.
35-36).
19
19 - Esse fenômeno psicológico de descolamento é um mecanismo de defesa conhecido por todos aqueles que lidam com
a psique humana e serve para revelar escondendo. Tirar da costela é menos violento que tirar do próprio ventre, mas, em
outras palavras, aponta para a mesma direção. O inconsciente entende, mas o consciente rejeita. Agora, parir é ato que não
está mais ligado ao sagrado e é, antes, uma vulnerabilidade do que uma força. A mulher se inferioriza pelo próprio fato
de parir, que outrora lhe assegurava grandeza. A grandeza agora pertence ao homem, que trabalha e domina a natureza. Já
não é mais o homem que inveja a mulher. Agora é a mulher que inveja o homem e é dependente dele. Carente, vulnerável,
seu desejo é o centro de sua punição. Ela passa a se ver com os olhos do homem, isto é, sua identidade não está mais nela
mesma, e sim em outro. O homem é autônomo e a mulher é reexa. Daqui em diante, como o pobre se vê com os olhos
do rico, a mulher se vê através do homem. Ela ama e por isso ele a domina, já que o amor lhe é interdito, porque o afastou
de Deus e do Pai. A ele só restou o poder, a dominação (MURARO, 2000, p. 68).
049Vol I - Subjetividades & Diferenças
[...] a maior parte do trabalho teórico do feminismo moderno,
desde Simone de Beauvoir até o presente, é a-histórica
e negligente em termos de conhecimento feminista. Isso
era compreensível no início da nova onda feminista,
quando o conhecimento sobre o passado das mulheres era
escasso, mas, na década de 1980, mesmo com a abundante
disponibilidade de excelentes trabalhos acadêmicos sobre
História das Mulheres, a distância entre conhecimento
histórico e critica feminista em outros campos persiste.
O que é uma episteme patriarcal
e por que precisa ser superada?
É necessário um retorno ao passado, conhecer a história das mulhe-
res e compreender que sua condição atual tem sido forjada, e que pode ser
modicada. Neste sentido, a desnaturalização do patriarcado será propor-
cional à apropriação da história das mulheres.
Para Lerner (2019), o silenciamento das mulheres pode ser eviden-
ciado quando não é encontrada a história das mulheres nas pautas das dis-
cussões que colocaram o questionamento em relação aos mecanismos de
opressão de gênero, marcado pelo feminismo. Escreve Lerner (2019, p. 27)
que:
A referida obra de Gerda Lerner, “A criação do patriarcado: his-
tória da opressão das mulheres pelos homens”, publicada em inglês em
1986, “[...] leitura obrigatória para se compreender a história de dominação
masculina e de exclusão das mulheres” (como escreve Lola Aronovich,
no prefácio da obra), vem a ser traduzida para o português 33 anos de-
pois. As obras de Marija Gimbutas, arqueóloga aqui citada, e que apresenta
constatações imprescindíveis para a fundamentação de que houve socieda-
des matricêntricas, não patriarcais, ainda não contam com tradução para a
língua portuguesa.
Daí a importância da investigação, da leitura e da conversação sobre
este sistema que tem legitimado a exclusão das mulheres, a saber: o patriar-
cado, como forma de desnaturalizar sua existência e propiciar a consciência
da existência de um sistema estrutural que ainda mantém uma hierarquia
excludente na sociedade, porque mesmo diante de muitos avanços decor-
rentes das conquistas feministas, ainda vivemos sob a égide do sistema
patriarcal que exclui e provoca a morte, simbólica e concreta das mulheres.
050 Corpo, políticas e territorialidades
De acordo com Tiburi (2018, p. 59), “[...] patriarcado é um nome
estranho para muitas pessoas que consideram natural a ordem existente.
Ele representa a estrutura que organiza a sociedade, favorecendo uns e
obrigando outros a se submeterem ao grande favorecido que ele é, sob pena
de violência e morte”. Trata-se de uma estrutura que foi criada para forjar
e manter valores que colocam os homens enquanto seres superiores em
relação às mulheres. Para a lósofa, “da mesma maneira que o capitalismo
e o racismo, o machismo é uma ideologia cujo único objetivo é a opressão
e a permanência do atual cenário de submissão”.
O patriarcado se estabelece enquanto episteme, quando se pode ve-
ricar que ele se constitui e constitui na/a ideia de que as mulheres sejam
inferiores. Ideia esta que desencadeia valores com os quais justicam-se,
para quem assim pensa, que as mulheres recebam salários inferiores; que
o trabalho doméstico seja naturalmente tarefa das mulheres e que não seja
considerado trabalho; que as mulheres não sejam autônomas em relação
aos seus corpos (que seus corpos sejam sistematicamente invadidos e vio-
lentados), entre outras ideias misóginas, excludentes e justicadoras de
toda sorte de opressões.
Isto se revela na prática quando vemos que a desigualdade salarial
entre homens e mulheres persiste; quando ainda podem se vericar de-
sigualdades promovidas no interior dos núcleos familiares, mantendo as
hierarquias de papéis; ou quando vemos a reincidência nos crimes de femi-
nicídio que desaam leis e políticas públicas criadas para o enfrentamento
destas violências. Trata-se de ideias que produzem valores e crenças arrai-
gadas há tanto tempo, produzindo um imaginário coletivo, que acabam por
naturalizar e legitimar algo como “verdade”. E quando coletivos produzem
“verdades”, segundo Brandão e Crema (1991), estamos diante de paradig-
mas os quais dialeticamente se formam e formulam epistemes.
A episteme patriarcal, construída historicamente, desaa as atuais
iniciativas de enfrentamento aos mecanismos de opressões e violências de
gênero. É neste sentido que tratamos, neste ensaio, de valores patriarcais
nos referindo a crenças e ideias, que valorizam e por isso legitimam a no-
ção de que as mulheres são inferiores aos homens e por isso subordinadas
e dependentes. É tão arraigado este imaginário que as próprias mulheres
muitas vezes acreditam nesta inferioridade, subordinação e dependência,
20
20 - Disponível em: http://www.aescotilha.com.br/literatura/contracapa/entrevista-marcia-tiburi/. Acesso em: 15 abr.
2021.
051Vol I - Subjetividades & Diferenças
o que as fazem reféns, pois valores são inscritos no psiquismo, sendo ne-
cessário um grande trabalho de esclarecimento (e por vezes psicanalítico)
para que sejam dissolvidos e modicados. Aronovich prefaciando o livro
de Lerner (2019, p. 21) escreve:
O patriarcado mantém e sustenta a dominação masculina,
baseando-se em instituições como a família, as religiões,
a escola e as leis. São ideologias que nos ensinam que as
mulheres são naturalmente inferiores. Foi, por exemplo,
por meio do patriarcado que se estabeleceu que o trabalho
doméstico deve ser exercido por mulheres e que não deve
ser remunerado, sequer reconhecido como trabalho. Trata-
se de algo visto de modo tão natural e instintivo, que muitas
e muitos de nós sequer nos damos conta. Portanto, ler e
falar sobre o patriarcado é desnaturalizar nossa existência.
Construindo imaginário
Este imaginário de inferioridade que gera dependência nas mulheres
e provoca a sensação de superioridade justicadora de violência por parte
dos homens, tem possibilitado e legitimado uma história de opressão que é
prejudicial a todas as pessoas, comprometendo os valores de uma cultura.
As opressões estruturais contra as mulheres tem sido um tema cada vez
mais pesquisado e debatido em diversas áreas do conhecimento, por se
tratar de uma questão de extrema necessidade face aos números cada vez
mais alarmantes de violência contra as mulheres e violência de gênero, que
se constituem, por sua vez, violação da dignidade humana.
A violência contra as mulheres se mostra imediatamente em sua
face mais marcadamente brutal quando relevada por meio da violência fí-
sica e do feminicídio. Mas a violência contra as mulheres que ocorre de
forma silenciosa, cujas marcas são psicológicas e simbólicas, é igualmente
perversa e perigosa; por ser invisível, ou seja, por necessitar de mediação
para ser deagrada, é merecedora de uma atenção especial; principalmente
por quê: as violências simbólica e psicológica operam a partir das crenças
e valores que a justicam, e que aprisionam e subordinam a própria vítima.
Escreve Aronovich, ainda no prefácio da obra de Lerner (2019, p. 21):
052 Corpo, políticas e territorialidades
Lerner nos ensina que o sistema patriarcal só funciona
com a cooperação das mulheres, adquirida por intermédio
da doutrinação, privação da educação, da negação das
mulheres sobre sua história, da divisão das mulheres
entre respeitáveis e não respeitáveis, da coerção, da
discriminação no acesso a recursos econômicos e poder
político, e da recompensa de privilégios de classe dada às
mulheres que se conformam. As mulheres participam no
processo de sua subordinação porque internalizam a ideia
de sua inferioridade.
Por mais que pareça paradoxal o fato de as pesquisas e as discussões
sobre o preconceito, a exclusão, a violência e os diversos mecanismos de
opressões contra as mulheres aumentarem, de termos avançado em rela-
ção a formulação de um aparato legal e de políticas públicas de proteção
e enfrentamento à violência contra as mulheres, sem que os dados des-
ta violência diminuam, tal ideia de paradoxo pode ser equivocada; o que
evidencia-se é o aumento da visibilidade de um fato que fora acobertado
por séculos, visto que o preconceito, a exclusão, a violência e os diversos
mecanismos de opressões contra as mulheres tem sido legitimados histo-
ricamente, ainda que os valores patriarcais, que legitimam tais opressões
não sejam universais.
Somente nas últimas décadas, com o avanço das pautas feministas,
que estes mecanismos opressores têm sido deagrados e questionados, co-
locando este fenômeno, que é político-epistemológico e ético, como foco
da discussão de gênero, tratando-os enquanto opressões de gênero (MU-
RARO, 2000). E é com base nos avanços conquistados, por meio da in-
formação e de mecanismos que visam conscientização e transformação a
nível psicológico, que armamos ser a perscrutação deste próprio material
que revelará tratar-se – suas formulações- do produto de um desenvolvi-
mento histórico e não natural ou biológico. Faz-se necessário esclarecer
que a inferiorização e subordinação das mulheres e a demonização do fe-
minino, não são fenômenos imutáveis. Se nós construímos tal mentalidade,
podemos desconstrui-la, como arma Muraro (2000, p. 126):
[...] é de dentro da cultura ocidental que, dois séculos mais
tarde, emerge um movimento de resistência. Nas culturas
orientais, em que não existiram textos com a violência
de O martelo, as mulheres ainda são torturadas em seu
053Vol I - Subjetividades & Diferenças
corpo, maciçamente no Islã, na Índia e até na China, onde
a Revolução Comunista não foi suciente para erradicar o
trabalho escravo de homens e mulheres. Foi no Ocidente
que, no século XIX, as primeiras sufragistas começam
a reivindicar os primeiros direitos de cidadania para as
mulheres e, na segunda metade do século XX, fabrica-se
uma Revolução das Mentalidades que questiona não
a sexualidade reprimida como também a própria base do
sistema dominante.
A permanência destes valores, ainda atualmente, demonstra que es-
tamos diante da urgente necessidade de mudanças de mentalidades, visto
que estes valores patriarcais se cristalizaram de forma estrutural; o que sig-
nica dizer que perpassa diferentes âmbitos da vida, que têm sido perpetu-
ados historicamente e, principalmente, trata-se de crenças, ideias e valores
que são desenvolvidos, aprendidos, ensinados e disseminados.
Como podemos ver, esta mentalidade tem sido construída historica-
mente através das religiões, dos mitos e inclusive por lósofos, com suas
losoas que inuenciam modos de pensar quando apresentam argumen-
tos “racionais” (na losoa), ou apelam às crenças (nas religiões), ou ainda
produzem imaginários (no caso da mitologia), defendendo a inferioridade
das mulheres, e com isso construído – estruturalmente – mentalidades que
aceitam, legitimam e perpetuam a ideia de que mulheres sejam inferiores,
como analisa Carvalho, no livro Mulheres e a Filosoa (2002), referindo-
-se à losoa de Immanuel Kant, lósofo que exerce grande inuência no
pensamento ocidental:
[...] a posição discriminatória de Kant em relação às
mulheres não é apenas implícita ou deduzida a partir da sua
preocupação em suprimir os aspectos tidos como contrários
à razão – que são aqueles culturalmente vinculados ao
feminino do âmbito da moral. Kant se ocupa do tema
da mulher e, ao manifestar seu ponto de vista a respeito
das características do sexo feminino, posiciona-se como
defensor explicito da tese da inferioridade essencial
feminina, especialmente revelada em uma suposta
inaptidão natural para tornar-se agente moral. Assim,
perfeitamente coerente com sua concepção da moralidade
como reino da razão pura – mas incoerente com sua
perspectiva universalista -, Kant excluirá a metade feminina
054 Corpo, políticas e territorialidades
da humanidade do domínio da moral por não reconhecer
que as mulheres possuem os atributos necessários para
serem reconhecidas como sujeitos morais: a natureza das
mulheres seria inadequada para efetuar a devida supressão
dos aspectos (inferiores) sensíveis que, segundo Kant,
comprometem o agir moral autêntico (CARVALHO, 2002,
p. 51).
A misoginia extraída de um pensamento como este, assim como
também representada em passagens apresentadas anteriormente, constitui-
-se a gênese e a perpetuação desta mentalidade e destes valores, ou seja, a
origem e a manutenção da opressão das mulheres perpetrada pelos homens.
Ao buscar nestas narrativas religiosas, mitológicas e losócas, in-
dícios da gênese e perpetuação destes valores patriarcais, podemos iden-
ticar que uma cisão que caracteriza o pensamento ocidental de forma
predominante, que separa razão de sentimentos, emoções e sensibilidade,
produzindo uma dicotomia entre corpo e pensamento e rebaixando sensu-
alidade e sexualidade como percebido, por exemplo, na losoa de Platão
para quem, a sensualidade mora em um lugar inferior em relação ao lugar
em que mora a razão. Curioso perceber que estas mesmas narrativas des-
crevem, sistematicamente, as mulheres enquanto seres emocionais, sen-
síveis, e perigosamente sensuais. Para não poucos lósofos, incapazes de
pensamentos racionais.
O estudo destas narrativas descortina pistas de como são desenvol-
vidos os valores patriarcais, quando nos deparamos diante de um modelo
epistêmico que suporta, contém e contempla mecanismos de hegemonia
e dominação produtores de inferioridade e subordinação. Apresentamos a
seguir alguns fragmentos das elaborações destes estudos que demonstram
como esta cisão inuenciará valores e produzirá uma episteme patriarcal.
Conforme Muraro (2000, p. 14), com a articulação da categoria “gê-
nero” para mostrar a discriminação das mulheres em todos os níveis, no
econômico, no político, no social etc., passou-se a elaborar uma epistemo-
logia questionando as bases da Filosoa platônica, cartesiana, kantiana, ou
pode-se dizer, as bases da Filosoa ocidental predominantemente baseada
na objetividade, na abstração e nas generalizações.
055Vol I - Subjetividades & Diferenças
As investigações da lósofa australiana Robin Schott (1996), con-
guram-se importante base para o questionamento de um modelo epis-
têmico que contém mecanismos de hegemonia e dominação produtores
de exclusões, assim como lança luzes para a formulação de uma crítica
consistente ao patriarcado enquanto episteme. A lósofa, estudando a obra
de Immanuel Kant, evidencia que a objetividade kantiana tem origens no
ascetismo losóco e religioso que opera a partir da negação do corpo e
da sensualidade, assim como demais aspectos tais como emoções, senti-
mentos e sexualidade (sintetizados na Filosoa da autora enquanto “eros”)
evidenciando que “[...] a rejeição dos aspectos de eros resulta na rejeição
às mulheres” (SCHOTT, 1996, p. 8). Com Schott temos uma Filosoa que
se ocupa em aprofundar analiticamente as bases de um modelo de conheci-
mento que se pretende exclusivamente racional e objetivo, para extrairmos
de tais análises, os prejuízos advindos deste modelo que se torna hegemô-
nico e totalizante.
Segundo Schott (1996) a losoa de Kant pode constituir um estudo
representativo das bases sobre o que é considerado fundamento para o co-
nhecimento na visão da losoa ocidental, porque este lósofo exerce uma
grande inuência no que tem sido considerado ser a losoa ocidental. E
a losoa kantiana promove uma cisão entre eros e cognição, por isso o
recorte a partir das ideias deste lósofo.
Resulta que Kant, herdeiro da tradição losóca e religiosa ascéti-
ca, marca sua losoa com a supressão da dimensão erótica da existência,
negando ou negligenciando seus aspectos (emoção, desejo, sexualidade,
sensibilidade) que são vistos como ameaças à busca de pureza racional
e espiritual exigindo, consequentemente, o controle racional. (SCHOTT,
1996, p. 10). Daí a oposição entre eros e cognição que ocasiona a negação
e hostilidade para com a sensualidade e os outros aspectos de eros na Fi-
losoa kantiana (na formulação do seu conceito de objetividade) que, na
perspectiva de Schott (1996, p. 8), vinculou-se enquanto produto produtora
do repúdio às mulheres vistas enquanto seres sensuais, emotivas, e por
isso, incapazes de pensamento racional (puro), com o argumento de que as
mulheres, sendo criaturas sensuais não seriam capazes de losofar; razão
pela qual as mulheres não podiam ocupar lugares na Filosoa, visto que o
conhecimento necessário para o losofar precisaria ser isento de interferên-
21
21 - Analisamos neste estudo o livro “Eros de os processos cognitivos: uma crítica da objetividade em losoa” da ló-
sofa Robin Schott.
056 Corpo, políticas e territorialidades
cias sensuais e sentimentais, típicas das mulheres. Consequentemente, as
mulheres não estariam aptas a participarem da vida pública/política, como
se pode extrair desta lamentável passagem escrita por Kant (1993, p. 48):
O estudo laborioso ou a especulação penosa, mesmo que
uma mulher nisso se destaque, sufocam os traços não
obstante dela façam, por sua singularidade, objeto de uma
fria admiração, ao mesmo tempo enfraquecem os estímulos
por meio dos quais exerce seu grande poder sobre o outro
sexo. A uma mulher que tenha a cabeça entulhada de grego,
como a senhora Dacier, ou que trave disputas profundas
sobre mecânica como a marquesa de Châtelet só pode
mesmo faltar uma barba, pois com esta talvez consigam
exprimir melhor o ar de profundidade a que aspiram.
Entretanto, como identicou Schott (1996), esta cisão entre cog-
nição e aspectos ligados a eros não é condição natural e necessária para
o conhecimento, mas sim acarretou uma supressão da dimensão erótica
da existência, com consequências importantes, uma vez que a Filosoa
kantiana se tornou paradigmática para os modos de ver da modernidade
relativos ao conhecimento, assim como inuencia o pensamento ocidental
de forma mais ampla.
As marcas de uma história mal contada
Em pesquisa realizada anteriormente (COELHO, 2011) concluiu-
-se, de forma análoga, que o modelo epistemológico que temos privile-
giado no ocidente caracterizado por uma dicotomia entre razão, por um
lado, e todos os aspectos que Schott (1996) atribui a eros, de outro lado,
se constitui obstáculo à ética da alteridade por produzir dissociações que
resultam, consequentemente, na dominação do homem em relação à na-
tureza, exacerbando o antropocentrismo; do homem em relação à mulher,
congurando o machismo lho do patriarcado; do homem branco em
relação a população negra e indígena, resultando no racismo e na domina-
ção religiosa que extermina pessoas face a um “eu dominante” e “outros
oprimidos”.
Como aponta Schott (1996), há no ocidente um modelo de objetivi-
dade no qual a teoria de eros, ou os aspectos relacionados a eros, aparecem
057Vol I - Subjetividades & Diferenças
como losocamente insignicantes ou prejudiciais por serem suposta-
mente poluentes, ou seja, prejudiciais, à busca de uma pureza racional e
espiritual idealizada pelas tradições losóca e religiosa ascéticas. E este
modelo de objetividade que opera a partir desta cisão, inuencia a cultura
ocidental a partir das epistemes que legitimam esta cultura . Daí a busca de
um controle racional que irá demarcar o paradigma moderno, atribuindo
às mulheres a incapacidade deste controle racional, justicando e natura-
lizando uma suposta inferioridade. Tal interpretação será decisiva para a
construção de uma racionalidade e, consequentemente, o desenvolvimento
de valores, com base na pureza; noção que será presente em boa parte da
losoa até a modernidade conferindo inuências mais amplas, e que se-
rão fundamentais para a construção e consolidação de uma episteme e dos
valores patriarcais.
É, portanto, no patriarcado – enquanto sistema social/cultural, polí-
tico e econômico – que se encontra a gênese e a perpetuação destes valores
e desta mentalidade: a origem e a manutenção da opressão das mulheres
perpetrada pelos homens. E estes valores, esta mentalidade, ou seja, esta
episteme tem desaado os mecanismos que têm sido criados para o enfren-
tamento das diversas formas de exclusão das mulheres que é, juntamente
com outras, uma forma de violência.
A criação de leis e de políticas públicas de enfrentamento à vio-
lência de gênero é fundamental; mas serão sempre mais formais do que
materializadas, enquanto persistir os valores e a mentalidade patriarcal que
move política, economia e estrutura social. Para que estas leis e políticas
sejam efetivadas é necessário, portanto, que haja a mudança de valores que
somente será possível a partir da superação do patriarcado que é, em si, a
mentalidade que gera o problema, conforme aponta o relatório da ONU
Mulheres quando inclui, enquanto mecanismo de superação das opressões
de gênero, a necessidade de conscientização. A mudança de mentalidade
patriarcal, consiste na possibilidade desta conscientização sobre o arbítrio
e a irracionalidade que encerra a inferiorização das mulheres, assim como
evidencia a contradição de base presente, quando lósofos tentam funda-
mentar esta inferiorização.
A superação do patriarcado signica a desnaturalização da inferio-
ridade de um ser humano que constitui mais da metade da população hu-
22
22 - Importante destacar que esta inferência não arma uma única inuência à cultura ocidental.
23 - Relatório ONU Mulheres. Disponível em: https://www.onumulheres.org.br/. Acesso em: 12 abr. 2021
23
058 Corpo, políticas e territorialidades
mana, assim como a superação de um sistema estrutural que mantem uma
hierarquia hegemônica produtora de desigualdade, exclusão e a morte das
mulheres, como revelaram novos dados da Organização Mundial da Saúde
(OMS) e parceiros, em relação à sistemática violência contra as mulheres.
Este último relatório citado apresenta que
[...] ao longo da vida, uma em cada três mulheres, cerca de
736 milhões, é submetida à violência física ou sexual por
parte de seu parceiro ou violência sexual por parte de um
não parceiro - um número que permaneceu praticamente
inalterado na última década.
24 - Fonte: Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/9-3-2021-devasta-
doramente-generalizada-1-em-cada-3-mulheres-em-todo-mundo-sofre-violencia. Acesso em: 12 abr. 2021.
25 - Vejam que a viuvez passa a identicar a mulher. Ela não é uma mulher; ela é uma viúva.
24
Associada a esta informação, importante destaque faz Lerner quan-
do ressalta que “[...] existem mulheres que vivem em países nos quais o
estupro no casamento não é crime” (LERNER, 2019, p. 21). E como lemos
nesta mesma obra, na mesma página, apesar de que os maiores índices de
violência contra as mulheres ocorrem dentro de suas próprias casas, vio-
lência praticada por parte daqueles a quem se deveria conar, “[...] ainda
enfatiza-se a ideia que o ambiente doméstico é onde a mulher está prote-
gida”, justamente para perpetuar as bases mais referenciais do sistema pa-
triarcal que são o casamento e um modelo especíco de família, já que tais
bases se constituem, por excelência, o mecanismo de opressão que opera a
partir da dominação da sexualidade das mulheres.
É possível identicar a presença de valores patriarcais de depen-
dência, inferioridade e subordinação em mulheres de diferentes classes so-
ciais, manifestando-se através de práticas que se distinguem em cada uma
destas condições socioeconômicas. Quando mulheres que, face ao sofri-
mento da violência doméstica, e a vulnerabilidade socioeconômica, encon-
tram diculdades de afastarem-se do agressor por medo de não terem como
se sustentar ou sustentar seus lhos e suas lhas; quando mulheres que,
mesmo empoderadas nanceira e intelectualmente se mantém reféns de
relacionamentos abusivos em função de uma dependência emocional; ca-
sos de mulheres que jamais tiveram coragem de terminar um casamento de
30, 40, 50 anos que as oprimiam, e ao se tornarem viúvas , se tornam, nas
palavras de Clarissa Pinkola Estés (1994) “esfomeadas”, não conseguindo
25
059Vol I - Subjetividades & Diferenças
imaginar suas vidas sem a presença de um homem, razão porque acabam
por tornarem-se reféns de toda sorte de abusos em diversas tentativas de
relacionamento, demonstrando o aprisionamento à estes valores que lhes
ensinou que o valor de uma mulher é medido na relação com um homem.
Estes valores de inferioridade, dependência, subordinação tornam-
-se verdades para muitas mulheres e passam a pautar suas vidas. Como diz
Aronovich (2019) “[...] trata-se de algo visto de modo tão natural e instin-
tivo, que muitas e muitos de nós sequer nos damos conta”.
Diante da constatação destes mecanismos de inferiorização que re-
sultam em exclusão e opressão, iniciam-se movimentos de contestação a
eles. Todavia, a pressão para a manutenção da alienação é tão grande, que
se erguem vozes em defesa da manutenção do patriarcado, por parte dos
homens, mas também por parte de mulheres que, encontrando-se reféns
deste modelo, gritam que a luta pela emancipação das mulheres e pelo
enfrentamento das opressões e violência representa uma tentativa de aca-
bar com a família e com um modelo social supostamente benéco para as
mulheres. A busca pela superação deste modelo opressor e violento é des-
qualicado pejorativamente quando atribuído a mulheres “mal-amadas”:
argumento estruturado justamente na desqualicação da mulher. Apelo que
toca um sistema emocional afetado justamente pelos valores desta lógica
patriarcal, promovendo sua manutenção, o que reete estarmos diante de
uma episteme que precisa ser alterada.
Como salienta Lola Aronovich, “[...] faz sentido que o sistema de-
monize quem luta contra ele”. E acrescento: assim como é demonizada e
desqualicada a losoa. Diz a prefaciadora do livro de Lerner, “[...] tal-
vez, quando um sistema como o patriarcado for superado, o feminismo não
será mais necessário”. Até lá, o patriarcado insistirá em fazer da palavra
“feminismo” um palavrão. E as mulheres continuarão a pagar o preço das
decisões tomadas quase que exclusivamente por homens em nossa socie-
dade (ARONOVICH, 2019).
Considerações nais
Considerando o que foi apresentado, armamos a relevância da in-
vestigação sobre a episteme e os valores patriarcais, na medida em que
estudar o patriarcado enquanto episteme geradora de opressões contra as
mulheres, leva ao estudo da História das Mulheres, deagrando uma his-
060 Corpo, políticas e territorialidades
tória de exclusão, de apagamentos, de sabotagens, de desvalorizações, que
prejudica a todos, todas e todes, comprometendo a dimensão de humani-
dade em nós.
Nem sempre, e nem em todas as culturas a organização social fora
regida pelo sistema patriarcal, como esclarecemos. O que nos possibilita
compreender que as opressões de gênero, embora sejam antigas e estru-
turais, são desencadeadas e perpetuadas em função deste fenômeno que é
social, econômico e cultural, que é o sistema patriarcal, ou, o patriarcado,
e que assim como foi colocado em curso consolidando-se, pode se modi-
car. Trata-se de um esforço multidisciplinar; envolve os campos losóco,
artístico, político, jurídico, psicológico, sociológico, econômico, antropo-
lógico, mitológico e, como não poderia deixar de ser, o campo da educação
também, posto que ideias, valores, e imaginários são construídos e apren-
didos. O que os tornam passíveis de serem desconstruídos e modicados.
A manutenção de uma mentalidade que aceita e sustenta opressões
só é possível, a partir do apagamento das mulheres e de suas lutas e con-
quistas. A manutenção desta mentalidade patriarcal é a negação do prota-
gonismo das mulheres. Por esta razão, é de extrema relevância conhecer
a História das Mulheres e com ela, a história do patriarcado. Conhecer a
história para saber que nem sempre as sociedades foram dominadas pelos
homens. Entender como o patriarcado opera, a partir de uma episteme que
gera valores, e que valores são estes. Entender que este sistema tem um
início e por isto pode ter um m.
Este ensaio visa contribuir para que esta história seja revelada com
a intenção de provocar a consciência em relação a este contexto, visando
mudanças de mentalidades e consequentemente de valores. São as análises
destas narrativas que desvelam o caráter histórico e não natural ou bioló-
gico da suposta inferioridade das mulheres. Daí a importância de que seja
repetidamente esclarecido que este fenômeno não é imutável. Se nós cons-
truímos tal mentalidade, podemos desconstrui-la.
A superação do patriarcado é importante não só para as mulheres,
pois uma sociedade que vive à base de opressões, é uma sociedade adoeci-
da, prejudicial a toda a humanidade. Desmisticar esta ideia e esclarecer o
que seja o patriarcado e suas consequências torna-se, portanto, fundamen-
tal para o avanço das pautas feministas e de todo movimento que se opõem
às opressões e violência. Como escreve Lerner (2019, p. 21), “[...] ler e
falar sobre o patriarcado é desnaturalizar nossa existência”.
061Vol I - Subjetividades & Diferenças
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063Vol I - Subjetividades & Diferenças
AAs vozes sagradas das
cantautoras, sacerdotisas e
xamãs de Abya Yala
Laila Rosa
065
26
26 - Adriana Gabriela Santos Teixeira (2016) defende um sagrado feminino nos termos amefricanos de Lélia Gonzalez
(1988).
Una payasa revolucionaria.
Hace lo que le da ganas.
Una payasa de la brujería,
De la guianza.
Que sube la montaña en la madrugada.
Que canta,
Que piensa,
Que siente.
Que duerme y sueña.
Que no lo sabe,
Pero que lo intuye.
Y quando despierta,
Quema los papeles para el sol.
Es La Loba.
La que sabe,
La que sangra.
Y sigue.
Dando pasos
Por el filo de su memoria.
“Los pasos que vienen de lejos”.
Pueden pasar cerca del precipicio.
Alice Alves, Deise Lucy, Laila Rosa e Vero-
nica Zamudio. Dedicado ao Dia da “Culminación
de la Revolución Mexicana” e o Dia da Consci-
ência Negra. San Cristóbal de Las Casas, Chiapas,
México (20/11/2016).
066 Corpo, políticas e territorialidades
*Respiro*
Abrindo os trabalhos:
salve o sagrado feminino amefricana de
Abya Yala em poesia!
“Se le trepó la payasa”
La mujer de las aguas
Y de los vientos.
Que le llama siempre
A su nahual.
La árbol sagrada
Y la belleza secreta.
Que es ella misma.
De los misterios femeninos
De los misterios de la Tierra Madre.
Feminista,
Abya Yala,
Chamula,
Tsotsil,
Tseltal,
Y tojolabal.
Comandanta Ramona,
Maria Sabina,
Sor Juana Inés de La Cruz,
Tonatzin
Nuestra Señora de Guadalupe,
Diadorim,
Dandara,
Zeferina,
Anastácia,
Icamiaba.
Feminino Transgressor.
Colores de Frida Khalo.
La falda se serpientes de Coatlicue.
Um (en)canto para curar a minha alma-corpa-voz
A água tem poder de cura na cultura indígena. Muitos
rituais acontecem perto do rio. Quando a criança nasce, as
mulheres mais velhas trazem echas e essas so medidas
conforme o tamanho da perna da criança, cortam e em
seguida vo at o rio e soltam na gua corrente. Acredita-
se que esse ritual é para que a criança tenha agilidade nas
067Vol I - Subjetividades & Diferenças
pernas para correr e tambm para que as pernas no quem
tortas, assim contou-me minha me Assunta. Segundo ela
passei por esse ritual na aldeia Tikuna Belém do Solimões
nos primeiros dias de vida. Outro ritual usado na época que
nasci era a defumao com ervas, breus, cascas de rvores
para espantar espíritos ruins de perto da criança. Banhos
serenados com várias folhas de plantas eram utilizados
para afugentar doenças (KAMBEBA, 2020, p. 13).
Desde quando iniciei os estudos do Yoga, meditao e xamanismo
mais profundamente há alguns anos, bem como, retomando a prática da
dança como algo imprescindível a minha existência, compreendo que fa-
lar/viver cartograas do corpo  se comprometer ocupar este corpo-templo
ou “corpo-território-espírito” como nos convocam Lorena Cabnal (2010)
e a Marcha das Mulheres Indígenas (2019). Ento, a minha alma trouxe
poesia para além da dor. Uma consciência prânica que elevou meu ser em
estado de plenitude cósmica, espiritual, política – uma sabedoria conectada
à minha essência de luz que me sussurrou no meio das matas verdes rodea-
das por rios de guas transbordantes, ser das guas como lha de Yemanj
abençoada por Oxum e Ewá que sou:
Alma: você sabia que tudo isso que eu te trago e que sei que te toca,
sobre o que você quer realmente falar, rezar, cantar, danar e tocar e que no
é considerado propriamente como “ciência”, “acadêmico” ou “artístico” é,
na realidade, sabedoria ancestral de muitas que vieram abrindo caminhos
antes de você. A ciência que você aprendeu na e com a Jurema Sagrada
(ROSA, 2009 e 2019): segundo as madrinhas e padrinhos, sacerdotisas
e sacerdotes, a ciência da jurema est em sua bebida mgica de encanta-
ria, no reino encantado do Juremá, na cabocla Jurema, na prática sagrada
da Jurema como um todo. Assim como você tambm j tinha recebido a
permisso de aprender com os orixs, sua Me Yemanj, seu pai Ogum,
sua avó Yans (ROSA, 2005). É a cosmopercepo que nos fala Oyeronk
Oyewumí (2004). A verdadeira revoluo que no separa as coisas, muito
menos o seu ser. Sua divina presena. Ento você comeou a “voltar” e
“reencontrar” antigos caminhos: tarot, oráculos, pedras, poemas, danças,
movimentos livres, cantos secretos e tradicionais, medicinas da oresta,
pinturas com teu sangue sagrado…
Laila: nem tenho o que argumentar, Alma. Faz todo o sentido. A
minha mente andou to reativa por tanto tempo que agora, mesmo que me
068 Corpo, políticas e territorialidades
desae, acolho, medito, processo e, como diria o Mestre Irineu “embora
que no aprenda muito, aprenda sempre um bocadinho…” Enquanto isso,
o meu corpo, ou melhor, a minha corpa, me gritou: movimento! Equilí-
brio... alegria :) saúde e prazer. Sim, vamos tantrar, Alma…
Corpa: você precisa se movimentar. Estar muito no mental adoece.
A academia adoece. A militância política adoece. O ego adoece. As estrutu-
ras das matrizes de desigualdades (racismo, sexismo, LGBTTQIA+fobias,
etarismo, capacitismo, especismo etc.) adoecem. Se mova para se curar.
Pois tudo isso pode ser tambm cura. E essa cura no sua. A cura a
gente compartilha.
Laila: gratido, corpa. Agora eu sei. Somos uma. Me perdoe por
todos excessos de pensamentos, sentimentos tóxicos, palavras “mal-ditas”,
noites mal dormidas, falta de rotina de sono e alimentao...falta de um
corpo feliz e leve. Relações desequilibradas e adoecidas. Dor e sofrimento
com a minha “lua”, desconexo com meu sangue sagrado, e tantas outras
ausências de mim mesma. Mas te digo: “antes tarde que mais tarde”. No
dia da cirurgia de retirada do tumor ovariano maligno, em 13 de janeiro de
2021, eu escrevi uma carta pedindo perdo ao meu ovrio direito, prestes a
ser extirpado, juntamente com a trompa direita e o apêndice. Você j tinha
avisado tantas vezes e eu ignorei como se fôssemos separadas. Embora
eu tenha me dedicado tantos anos a cantar e a tocar instrumentos, princi-
palmente o violino e a rabeca, esqueci do meu maior e mais importante
instrumento que é você e dentro de você/com você/em mim/comigo, a mi-
nha voz, ferramenta de poder e de cura. No a tcnica pela esttica, mas a
manifestao do meu ícaro, meu canto de alma. Sonorizar a cura pela voz/
som tem sido a minha maior revoluo compartilhada. Mais ainda, dentro
desta consciência, materializar essa cura pelo movimento contigo - seja
dançando, caminhando pelas trilhas diversas da vida, me banhando nas
guas sagradas doces de Mame Oxum e Ew ou nas guas salgadas da mi-
nha me Yemanj, ou (me) amando e gozando, me permitindo a um prazer
pleno e sem culpa abençoado pela Shakti, Lilith ou Pombagira, tem sido
um portal transcendental mágico sem volta.
Voz: agora que você entendeu, vou te apresentar mulheres medicina
que so mestras de si a partir dos seus caminhos de cura pela voz. Ale-
xandra Ostos (Voces Curanderas, Venezuela/Peru), Ilein Kuymin (Chile,
Sendero Kuymin) e tantas abuelas que vieram antes delas. A sua voinha
que te ensinou a ser voz que reza. As Iyalorixs, as pajs, as rezadeiras, as
069Vol I - Subjetividades & Diferenças
Nessas linhas que seguem, peo licena a Conceio Evaristo
(2020), Gloria Anzaldúa (2005 e 2000), Marcia Kambeba (2020) e Xan
Marall (2021) como uma mulher preta por ser lha e neta de pai e avós
pretes, mas lida como branca num país racista, bissexual, bípede, vegana,
yogini, dentre outras subalternizações e privilégios, para seguir tecendo es-
crevivências de Abya Yala, sagrado território de derramamento de sangue
xams, as bruxas, as pastoras, as ciganas, as reverendas e tantas mulheres
medicina que (se) curam pela voz, pela reza/orao/magia, encantaria...
Vou te fazer relembrar como a voz cura. Como o som cura. E como você j
sabia disso desde sempre, quando sua voinha Elza e eu voinho Pedro can-
tavam noite adentro nas serestas ou pra fazer você e suas irms dormirem.
Quando você cantava com suas irms.
Laila: voz querida, gratido. Que lembrana linda ouvir voinha e
voinho cantarem. Cantar com as minhas irms. Te digo, escrever esse tex-
to-poema pode me adoecer ou me curar. Tudo depende da maneira como
me alinho à minha essência e ao meu propósito, que se conecta ao propósi-
to maior que é a vida, o Bem Viver, como nos ensina a Marcha das Mulhe-
res Negras (2015). E nesse caminho eu escolho a cura por essa consciência
corpo-voz-templo-instrumento-escrita...conto com vocês.
Rezo
Que cada linha desse escrito seja tântrica, plena e sonora.
E que toque os corações como sementes delicadas de cura.
Assim como toca o meu.
Amém.
Axé.
Saravá.
Optchá.
Bruxastê- a bruxa que habita em mim saúda a bruxa que
habita em você.
27
27 - Sobre o termo “escrevivência”, Conceio Evaristo compartilha: “Se eu for pensar bem a genealogia do termo, vou
para 1994, quando estava ainda fazendo a minha pesquisa de mestrado na PUC. Era um jogo que eu fazia entre a palavra
“escrever” e “viver”, “se ver” e culmina com a palavra “escrevivência”. Fica bem um termo histórico. Na verdade, quando
eu penso em escrevivência, penso também em um histórico que está fundamentado na fala de mulheres negras escraviza-
das que tinham de contar suas histórias para a casa-grande. E a escrevivência, no, a escrevivência  um caminho inverso,
 um caminho que borra essa imagem do passado, porque  um caminho j trilhado por uma autoria negra, de mulheres
principalmente. Isso no impede que outras pessoas tambm, de outras realidades, de outros grupos sociais e de outros
campos para além da literatura experimentem a escrevivência. Mas ele é muito fundamentado nessa autoria de mulheres
negras, que j so donas da escrita, borrando essa imagem do passado, das africanas que tinham de contar a história para
ninar os da casa-grande” (EVARISTO, 2020, n.p.).
070 Corpo, políticas e territorialidades
e epistemicídio dos saberes ancestrais dos povos originários e afrodiaspó-
ricos. Os (trans)feminicídios e racismo epistêmicos e sonoros que me for-
maram dentro de uma lógica eurocentrada e androcêntrica, cisteheteropa-
triacal de pensamento e ignorância do próprio corpo, no âmbito das escolas
de música e conservatório...a lógica da separao, da tcnica, da repetio,
da suposta neutralidade (há quem ainda acredite na música instrumental
de concerto ou no como absoluta ou “neutra”...acreditem...) ou da própria
etno-musicologia, que insiste em manter o prexo etno de origem colonial,
europeia, branca e heterocispatriarcal que, sobretudo no Brasil, produz ou-
tredades desiguais. Quem fala de quem? E como se fala? De quem é o
corpo que fala? Onde está o corpo? Que autoridade é essa?
Dentro de tudo isso, chegam a mim as territorialidades sonoras de
Abya Yala, as minhas próprias sonoridades e escritas como legítimas e
possíveis. Que beno que outras vieram abrindo caminho antes de mim.
Gratido. E nessa minha escrevivência corpo-território-espírito, comparti-
lho a jornada de Abya Yala que teve início nos EUA e no Mxico em 2018,
com a realizao de um sonho materializado pelo pós-doutorado e residên-
cia artística nesses países e tambm no Peru, e que reverberam at hoje.
Convocada pelo convite da querida Dinamara Feldens, me permito
partilhar caminhos de pesquisa, poemas, sonhos, sonoridades e processos
de cura do que viria a se tornar um câncer, pelas medicinas da oresta, do
santo daime, do xamanismo, do yoga, da meditao, do veganismo, da
corpa que dana e, ao m da cirurgia que me conduziu a um novo portal de
vida-morte-vida pelos corredores do Hospital Aristides Maltez, referência
do Estado da Bahia (SUS), em tratamento do câncer.
So tantos os atravessamentos para falar de tudo isso! Dialogo
aqui com os convites das cartograas do corpo/corpa/corporalidades e das
vozes sagradas das cantautoras, xams e sacerdotisas, juntamente com a
minha própria voz, para a superao da enfermidade-mestra como mani-
festao de saúde e da consciência de si, das gastropolíticas do eco-femi-
nismo (SHIVA, 2020), do veganismo (CARMO; BONETTI, 2018), dos
ensinamentos do Yoga e da medicina Ayuverda, das tecnologias de gênero
em perspectiva interseccional (sempre!) pelos feminismos decoloniais de
Abya Yala, das dissidências sexuais, estudos Queer em música (BARZ;
CHENG, 2020; CUSICK, 1994; SILVA, 2019; WHITELEY; RYCENGA,
2006), das pedagogias feministas decoloniais antirracistas, anticapacista e
LGBTTQIAP+….do sagrado feminino amefricana... E sim, algumas per-
071Vol I - Subjetividades & Diferenças
guntas: como tudo isso soa em mim voz-corpa bissexual lida como bran-
ca e com as mulheres-medicina negras, indígenas e brancas que encontrei
pelo caminho? De que maneira minha alma, voz, corpa-território-espírito
atravessada sonoramente por tudo isso e junto com tantas outras almas,
vozes, corpas-território-espíritos…? Como foi esse encontro que reverbera
at hoje e est em processo de “parto” do meu 2o disco autoral chamado
“Desde outro lugar”, que esse lugar at ento desconhecido. O que cura
pelo e com o sonoro ao lado de mulheres medicina. Convido-nos a apreciar
esta jornada sonoro-musical de cura.
Os abrigos e caminhos de alma: Eua e México
Movida pela corpa que dança e anseia por movimento, o Estágio
Sênior/Professora Visitante e Residência Artística que realizei aconteceu
em diferentes instituições ou “abrigos” e parcerias fundamentais. Inicial-
mente as ações seriam realizadas no: 1. Diplomado en Estudios Feministas
desde America Latina (Universidad Autónoma de la Ciudad de Mexico
– UACM); 2. Red Napiniaca de Etnomusicologia e Programa de Estudios
e Intervención Feministas (Centro de Estudios Superiores de México y
Centroamérica - CESMECA /Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas
- Chiapas, México); 3. Flotar (Cidade do México), e; 4. Departamento de
Música e Centro de Estudos Latino-Americanos e Centro de Estudos Afri-
canos (William and Mary University - Virgínia, EUA).
Ao nal fui acolhida pelas seguintes instituiões: 1. Departamento
de Música e Centro de Estudos Latino-Americanos e Centro de Estudos
Africanos (William & Mary University - Virgínia, EUA); 2. Diplomado
en Estudios Feministas desde America Latina (Universidad Autónoma de
la Ciudad de Mexico UACM), sob superviso de Mariana Berlanga; 3.
Red Napiniaca de Etnomusicologia e Programa de Estudios e Intervención
Feministas (Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica -
CESMECA /Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas - Chiapas, Méxi-
co), sob a superviso de Maria Luisa de La Garza Chavez e apoio de Carlos
Bonm; 4. Produo e curadoria para residência artística da Flotar (Cidade
do Mxico); 5. Residência artística na Casa de Voz, com Alexandra Ostos
(Vale Sagrado, Peru), e; 6. Residência artística no Brasil, temporada do es-
petculo Cassandra, de Dinah Pereira e direo de Luis Alonso, com trilha
072 Corpo, políticas e territorialidades
sonora original de minha autoria.
Inicialmente foram propostas duas principais ações: 1. Realizar um
período de aprofundamento teórico, intercâmbio acadêmico e atualizao
sobre estudos de gênero, epistemologias feministas decolonias em Abya
Yala/América Latina, bem como, das pesquisas (etno)musicológicas deste
contexto, considerando tanto os estudos sobre as práticas musicais tradi-
cionais como aquelas da música popular autoral, com foco na atuao e
obras de cantautoras , e; 2. Realizar residência artística enquanto composi-
tora e artista, fortalecendo a interlocuo musical com outras compositoras
da cena mexicana, através da parceria com a Flotar, importante produtora
de ampla atuao no Mxico e Estados Unidos, bem como, na William and
Mary University (Virgínia, EUA). Ao nal, a jornada se estendeu ao Peru
e me trouxe de volta ao Brasil.
No decorrer do processo e como desdobramento do próprio projeto,
ao nal, o cronograma teve algumas alteraões, incluindo novas parcerias,
alm daquelas previstas e ampliando a rea de atuao para Peru (Vale Sa-
grado), Brasil (Salvador e Manaus), EUA (Chicago) e incluindo também
as cidades mexicanas de Xalapa (Vera Cruz), onde tive ensaios e gravaões
com a cantautora Yolótzin Cervantes, em San Andrés Cholula, Puebla, com
entrevista coletiva com Clán de las Libélulas, em Oaxaca (Oaxaca) onde
foram realizadas vivências de corpo, voz e experimentações sonoras com
mulheres e comunidade LGBTT+na Escuela para la Libertad de las Mu-
jeres, no Espao de Medicina Tradicional de Enriqueta Contreras, parteira
indígena de etnia zapoteca e Casa Garita, espaço de residência artística, e
por m, em San Cristóbal das las Casas, onde foram realizadas entrevistas,
gravações de campo, vivências de corpo, voz e experimentações sonoras
com mulheres e comunidade LGBTT+.
As protagonistas e interlocutoras, cujos trabalhos procurei me apro-
ximar enquanto pesquisadora-cantauTora, so compositoras de diferentes
gêneros musicais com atuao na cena musical do contexto mexicano e
tambm mulheres que atuam como sacerdotisas e xams, que cantam e
tocam músicas para celebrar e curar o sagrado feminino. Estas possuem
28
28 - Por agora me detenho apenas às jornadas vivenciadas nos EUA e Mxico.
29 - Termo designado para compositoras nos países latino-americanos de língua hispânica. Militantes feministas latino-
-americanas também o utilizam no sentido de fortalecer suas identidades de a(r)tivistas feministas escritoras e também
compositoras, caso da pensadora e cantautora dominicana Ochy Curiel, importante referência dos estudos de gênero,
feminismo negro, lésbico e decolonial (CURIEL, 2010). Isabel Nogueira e eu utilizamos estes termos para falar de nossos
próprios trabalhos enquanto artivistas feministas e compositoras (ROSA; NOGUEIRA, 2015).
29
073Vol I - Subjetividades & Diferenças
uma relao particular com o ato composicional e a gerao de seus am-
plos repertórios musicais destinado à cura do corpo e da alma, por no se
considerarem autoras de várias de suas canções, mas que, assim como no
contexto do candomblé de caboclo narrado por Sonia Chada (2006) e nas
minhas próprias pesquisas sobre o sagrado no contexto das religiões de
matrizes africanas e afro-indígena da Jurema sagrada (ROSA, 2009, 2005),
consideram “receber” seus cantos sagrados das divindades que as acompa-
nham e/ou que acreditam.
Coleção asè – William & Mary University
(Richmond, Virgínia, EUA)
A primeira ao do estgio de pós-doutorado e residência artística
foi realizada nos Estados Unidos numa imerso de uma semana no De-
partamento de Música e Centro de Estudos Latino-Americanos e Centro
de Estudos Africanos da William and Mary University (Virgínia, EUA)
- sob a superviso do Prof. Dr. Michael Iyanaga, docente da instituio e
ex-aluno de intercâmbio do PPGMUS/UFBA, co-fundador da Feminaria
Musical, tendo colaborado no nosso primeiro capítulo de livro publicado
(ROSA et al., 2013). Neste momento, Carol Barreto e eu tivemos a oportu-
nidade de realizar intercâmbios com pesquisadoras/es, estudantes e artistas
da instituio, com performances da Coleo Asè de Carol Barreto, ao qual
assino a sua trilha sonora em parceria com Iuri Passos e trio feminino de
atabaques do Projeto Rum Alagbè: Brenda Silva, Adeline Seixas e Daniela
Penna (ROSA et al., 2019). Ao nal da jornada, houve rodas de conver-
sas sobre nossos trabalhos de pesquisa e processos criativos em moda e
música numa perspectiva de artivismo feminista antirracista no Brasil, em
que realizamos a performance de encerramento no formato de desle per-
formtico com a trilha sonora ao vivo, que contou com a participao de
professoras/es e estudantes majoritariamente negras da William & Mary
University, tanto deslando com as peas da Coleo Asè, como tambm
tocando juntamente comigo sua trilha original, uma importante oportuni-
dade de fortalecimento de aões de intercâmbio e internacionalizao da
universidade pública brasileira, no caso a UFBA.
074 Corpo, políticas e territorialidades
Imagem 1 - Performance Coleo Asè, William & Mary University
(Virgínia, 2019).
Fonte - Acervo pessoal da autora. Com Carol Barreto (1 à esquerda) e estudan-
tes de diferentes cursos.
a
México: El frio y las colores de los muertos
Viajei de Nova York para a Cidade do Mxico no dia 31 de outubro,
em pleno Halloween para, nalmente, vivenciar a tradicional Fiesta de los
muertos mexicana. Um rito de passagem. Ali estava pedindo as bênos
e honrando a ancestralidade daquela terra e dos meus e minhas ancestrais
para estar ali e desenvolver o trabalho e a jornada de cura que me propunha
ali em diante.
Participar de atividades na UACM, do seu Programa Diplomado en
Estudios Feministas desde America Latina (Universidad Autónoma de la
Ciudad de Mexico – UACM) foi uma grande oportunidade para a atuali-
zao das perspectivas teórico-metodológica fundamentadas pelos femi-
nismos decoloniais, bem como, do Programa de Estudios e Intervención
Feministas (Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica -
CESMECA /Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas - Chiapas, Méxi-
co). Ambos os programas so de referência no assunto no país.
075Vol I - Subjetividades & Diferenças
Em ambos os programas tive a oportunidade de aprofundar parcerias
com as pesquisadoras e discentes destes importantes centros de referência
sobre o tema, participando ativamente das suas atividades acadêmicas e
sociais, tais quais, eventos, reuniões de pesquisa, aulas e rodas de conversa
em comunidade, pois ambos têm parcerias com estudantes e grupos de mu-
lheres indígenas do país. Vale ressaltar que j participei de eventos em am-
bas as universidades. Estive na UACM em duas oportunidades, em 2009
e 2016, nas quais tive oportunidade de participar de atividades do grupo
de pesquisa coordenadora Pela Profa Dra Norma Mogrovejo. Nesta últi-
ma, fui convidada como palestrante na Seminária Feminismos desde Abya
Ayala, conduzida pela mesma. Conheci a Profa Mariana Berlanga Gayón,
que aceitou ser umas de minhas supervisoras de Estágio do presente pro-
jeto, na parte a ser realizada na UACM, em 2009, durante uma atividade
do mesmo grupo de pesquisa sobre estudos de gênero e sexualidade, grupo
ao qual ela integrava à poca, juntamente com a Profa Norma Mogrovejo
(MOGROVEJO, 2019, 2016), que também me supervisionou na Escuelita
Feminista. A Profa Mariana vem trabalhando com o tema do feminicídio
(BERLANGA GAYÓN, 2018) com o qual também venho trabalhando há
algum tempo no contexto musical da Jurema Sagrada e da perspectiva dos
(trans)feminicídios e racismos epistêmicos (ROSA, 2018a).
Imagem 2 - Conferência magistral no Diplomado de Estudios
Feministas (UACM), Cidade do Mxico, janeiro de 2019.
Fonte - Acervo pessoal da autora. ‘
076 Corpo, políticas e territorialidades
Dando continuidade à parte do cronograma realizado no âmbito
acadêmico, acompanhar as atividades do Programa de Estudios e Interven-
ción Feministas e do grupo de pesquisa Red Napiniaca de Etnomusicolo-
gia, ambos do Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica
- CESMECA /Universidad de Ciencias y Artes de Chiapas (Chiapas, Mé-
xico), possibilitou fortalecer a parceria que foi iniciada em 2016, durante o
4o Encuentro de Etnomusicología, realizado pela Red Napiniaca de Etno-
musicología, ao qual fui convidada como uma de suas conferencistas. De
acordo com a Profa. Dra Maria Luisa de la Garza Chavez, que aceitou ser
uma das supervisoras deste plano de estudos, o grupo tem como um dos
seus propósitos de:
“[...]”potenciar el trabajo de indivíduos y grupos que
hacen investigación etnomusicológica, y de ampliar el
conocimiento sobre las culturas musicales, principalmente
e Chiapas y de Guatemala, pero no restringios a estas
regiones (GARZA; AGUILAR, 2013).
Tive a oportunidade de conhecê-la na ocasio do encontro da Inter-
national Association for Popular Music - IASPM, que aconteceu na Casa
de las Americas (HAVANA, CUBA), em 2016. Já em Chiapas, durante o
4o Encuentro de Etnomusicología, conversei com a Profa. a respeito de
atividades de estudos feministas, que estava em recesso, à época e de uma
futura interlocuo acadêmica tal qual esta que apresento no momento.
Durante a estadia de 10 dias em San Cristóbal de las Casas, cidade
de populao majoritariamente indígena das etnias Tsotsìl e Tsetsil, tive a
oportunidade de conhecer a loja da cooperativa de comunidades zapatistas,
com diversos materiais, cartazes, roupas, livros e CDs produzidos por estas
comunidades. Em especial, me chamou ateno àqueles diversos materiais
produzidos por grupo de mulheres sobre educao e comunicao popula-
res e feministas. Experiência que trouxe importantes inspirações para tro-
cas pedagógicas e trabalho voluntário a ser desenvolvido no âmbito da mú-
sica com jovens e adultas/os, experiência que venho realizando na Escola
Nossa Senhora de Ftima desde 2015, ao acompanhar estgios docentes
em turmas de EJA – Educao de Jovens e Adultos eo o Grupo de Mulhe-
res do Alto das Pombas – GRUMAP, grupo parceiro da Feminária Musical.
O 4o Encuentro de Etnomusicología, teve como tema principal
“Amúsica e os mitos”, sendo um momento de experiências muito posi-
tivas, desde uma produo acadêmica engajada, em parcerias com as co-
077Vol I - Subjetividades & Diferenças
munidades interlocutoras, pois contava também com palestrantes e perfor-
mances de músicos e grupos indígenas locais, um caminho j defendido
pela etnomusicologia latino-americana (OCHOA, 2002, 2003a, 2003b)
e, especicamente, a brasileira (ARAUJO, 2017; LUHNING; TUGNY,
2017; LUHNING, 2006) pelos feminismos decoloniais (ALVAREZ, 2009;
ANZALDÚA, 2000, 2005), numa perspectiva de saberes compartilhados,
que acredito ser fundamental para o contexto de uma pedagogia feminista
antirracista, que procuro ter como referência na Feminária Musical e nas
minhas práticas enquanto docente e orientadora.
Desde uma perspectiva de produo de conhecimento em interlo-
cuo e iniciativa de internacionalizao, a Profa. Maria Luisa que orga-
nizou o livro “La Música y los mitos” como produto do referido encontro,
com artigos apresentados onde tive capítulo publicado sobre os “mitos de
invisibilizao à produo de conhecimento sobre o sagrado feminino em
música” (ROSA, 2018b), tema de minha conferência durante o encontro, e
que me inspirou para o projeto de pós-doutorado e residência artística. Na
realidade, foi a partir desta oportunidade de retornar ao sagrado e aos mi-
tos que, ao falar sobre “os mitos das invisibilizações”, pude aprofundar as
conexões entre minhas pesquisas e vivências sobre o sagrado feminino no
contexto das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas e as pesquisas
e engajamentos atuais desde as epistemologias feministas decoloniais, ar-
tivismo feminista e pedagogia feminista (HOOKS, 2013).
Incorporar atividades de Residência Artística no plano de trabalho
seguiu tambm a linha de integrao e consolidao das minhas produões
acadêmicas e artísticas, que, na realidade, sempre estiveram conectadas
(ROSA; NOGUEIRA, 2015). Nesta parte, foram realizadas performances,
ocinas sobre artivismo feministas, corpo e improvisao experimental
e “intuitiva”, inspirada pela dançarina e mulher medicina Inaê Moreira
(2020) na Cidade do México, produzidas pela Flotar, produtora cultural de
atuao no Mxico, Brasil e EUA.
30
30 - Tive a abençoada oportunidade de participar de vivências conduzidas pela mesma, tanto na Cidade do México, em
2018, como em Salvador, em 2019. Ainda em 2019, participamos como artistas do evento Close to There – Perto de Lá,
em Chicago, com curadoria da Flotar e Harmonipan.
31 - A Flotar vem produzindo o trabalho de Carol Barreto, com quem venho realizando parceria enquanto compositora
das trilhas sonoras de suas coleções, que ganharam as passarelas de Paris, Luanda, Nova York, Chicago etc. (REIS,
2017). Desde 2012, venho tocando nos desles performticos de suas coleões e, juntas, realizamos residência artística
em Nova York, atravs do Edital de Mobilidade Artística da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia – SECULT, ao
que foi produzida pela Flotar com quem venho trabalhando desde 2015, atravs das obras de Carol Barreto e agora, a
partir deste plano de trabalho, do meu próprio trabalho enquanto artista, compositora-cantautora, docente, pesquisadora
e artivista feminista.
31
078 Corpo, políticas e territorialidades
Imagem 3 - Gravao com a cantautora de canto mecidina
Yolótzin Cervantes (Vera Cruz, México).
Fonte - Acervo pessoal da autora.
Uma das experiências mais especiais da jornada mexicana foi reen-
contrar com Yolótzin Cervantes, que havia conhecido na Cidade do Mé-
xico em 2016, na casa de Norma Mogrovejo, quando tocamos juntas pela
primeira vez. Em 2019 fui ao seu encontro, em Xalapa, Vera Cruz, para
gravar duas canões: Mujer Sabia , de autoria de Yolótzin e Ixchel , de
minha autoria. Ali cantamos e tocamos juntas nossa ancestralidade pela
sonoridade da Jarana, instrumento de corda dedilhada tradicional veracru-
zano e tambor xamânico, maracas e pau de chuva. Mujer Sabia canta “la
mujer que sabe”, sabedoria antiga de feminino sagrado indígena que reve-
rencia a Me Terra e tambm o seu ventre. J Ixchel, deusa das guas, da
lua e da fertilidade, nasce das guas sagradas de Isla Mujeres, onde ca o
seu templo. Ixchel chega para celebrar a abundância e a beleza da vida no
feminino. O milagre da vida que se manifesta pelo ventre.
32 - Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TiADY15kKeg. Acesso em: 17 out. 2021.
33 - Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4IYhK_ChxMQ. Acesso em: 7 out. 2021.
32 33
079Vol I - Subjetividades & Diferenças
O sagrado feminino amefricano de Abya Yala
Considero sacerdotisas e xams as mulheres que so lideranas re-
ligiosas e/ou que trabalham com música e cura através de suas práticas te-
rapêuticas diversas. Nesta jornada de cura e conhecimento sonoro-musical
de mulheres de Abya Yala, propus tambm uma aproximao com o tra-
balho daquelas tanto oriundas dos contextos tradicionais afro-mexicanos
ou indígenas, sobretudo no Estado de Chiapas, cuja populao indígena
majoritria, e tambm de mulheres de origem urbana que no necessaria-
mente possuem origem tradicional ou étnica de povos e ou/famílias que
trabalham com cura, como comumente se dá nos contextos tradicionais
de matrizes africanas e indígenas (LUHNING, 1992; MELLO, 2005; SE-
GATO, 1984; THEODORO, 1996), mas que se descobrem curandeiras
ao longo de suas jornadas de vida e de cura como o caso da antropó-
loga estadunidense Barbara Tedlock (2008) que, realizando sua pesquisa
de campo sobre xamanismo na Guatemala, acabou sendo submetida a um
processo de iniciao xamânica, iniciando a partir daí, sua jornada de cura
como xam.
Este interesse nasceu da minha própria jornada enquanto pesquisa-
dora, pois, ao adentrar o universo sagrado das religiões de matrizes afri-
canas e afro-indígenas em Pernambuco, há quase 20 anos atrás, migrei do
ateísmo para uma identidade de alguém que passa a se reconhecer como
conduzida por seus guias espirituais diversos em sua jornada. J enquanto
artista, com mais de 20 anos de estudos e ininterrupta atuao nas cenas
musicais pernambucanas e baianas enquanto violinista e rabequeira, canto-
ra e compositora, passo a fazer uma conexo sagrada tambm com a minha
produo musical autoral que culminou no meu primeiro CD “Água viva:
um disco líquido” (2013) , todo dedicado à obra homônima de Clarice Lis-
pector e tambm aos orixs femininos das guas: Yemanj e Oxum. Desde
ento, tendo escrito tambm sobre processos criativos em música numa
perspectiva feminista e decolonial (ROSA; NOGUEIRA, 2015). Uma de
suas faixas recebeu o Prêmio Caymmi de Música na categoria Música Ins-
trumental , pelo voto popular e, o disco como um todo, tornou-se trilha
34 - Contemplado pelo edital da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia – SECULT (2013). Disponível em: www.
soundcloud.com/laila-rosa. Acesso em: 12 out. 2021.
35 - Ressaltando o dado de que fui a única compositora dentre os 14 indicados que compuseram o CD do Prêmio. Dispo-
nível em: https://programa.radioca.com.br/tag/premio-caymmi. Acesso em: 12 out. 2021.
34
35
080 Corpo, políticas e territorialidades
sonora de premiados espetáculos de dança e circo, abrindo os caminhos
para composiões de trilhas sonoras para teatro e desles performticos
(Angola, Paris, EUA, Canad etc.) e realizao de ocina sobre sagrado
feminino com mulheres, que se tornou tema de dissertao de mestrado
(TEIXEIRA, 2016). Alm disso, venho realizando diversos shows e al-
gumas curadorias de festivais feministas de música e compositoras, com
destaque para o Sonora – Festival Internacional de Compositoras (2016
e 2017), que acontece em mais de 20 cidades do mundo e que considero
como uma ao coletiva revolucionria e de cura de mulheres organizadas
enquanto sociedade civil no campo da música como estratégia de enfrenta-
mento do sexismo e dos (trans)feminicídios musicais.
Importante destacar colaborações com coletivo de compositores, ar-
tistas e pesquisadoras como a Sonora: Música(s) e Feminismo(s) (USP),
como a idealizao coletiva do Simpósio Temtico “A produo sonora de
mulheres: processos, práticas e poéticas em situações de deslocamentos,
atravessamentos e interseccionalidades,” coordenado pela Profa Dra Isabel
Nogueira (UFRGS), compositora, cantora e pianista e por mim, durante o
13o Mundo de Mulheres e Seminário Internacional Fazendo Gênero 11
(2017). Em2018, juntamente com a Profa Dra Harue Tanaka (UFPB), tam-
bm pianista e sanfoneira, idealizamos juntas e coordenaremos o simpósio
“A produo musical e sonora de mulheres”, durante o 28º Congresso da
Associao Nacional de Pesquisa e Pós-Graduao em Música, ANNPOM,
realizado na UFAM, sendo o primeiro sobre estudos de gênero e música da
história da associao (NOGUEIRA; ROSA; TANAKA, 2018).
Outra importante referência empírica relacionada ao tema deste
plano de trabalho o contexto do Vale do Capo, Chapada Diamantina
(Bahia), onde frequentei há vários anos e resido desde 2020, quando foi
deagrada a pandemia por conta da COVID-19. O mesmo conhecido
internacionalmente como “Vale da Cura”, justamente por ter forte um mo-
vimento de xamanismo e parteria natural, desde a populao nativa, ma-
joritariamente afro-indígena, com histórico de parteiras, rezadeiras, etc. e
também, de mulheres de várias partes do mundo que têm o México como
36
36 - Disponível em: https://soundcloud.com/laila-rosa-1/trilha-da-colecao-ase-de-carol-barreto. Acesso em: 12 out. 2021.
37 - Tive oportunidade de participar como convidada das duas edições realizadas em Salvador (2016 e 2017) como artista
convidada e curadora. Na 1a edio, concedi entrevista em que falo um pouco sobre o conceito de feminicídio musical.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dkqQxOf2tls. Acesso em: 12 out. 2021.
38 - Disponível em: http://www.sonora.me/sonora/. Acesso em: 12 out. 2021.
39 - Disponível em: http://www.wwc2017.eventos.dype.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=118. Acesso em: 12 out.
2021.
37
38
39
081Vol I - Subjetividades & Diferenças
importante referência de xamanismo, cura e espiritualidade, através dos
seus cantos de cura.
Foi no Vale do Capo, onde em 2017, tive a oportunidade de partici-
par do retiro/curso “Vozes Curandeiras” com a Alexandra Ostos, venezue-
lana residente do vale sagrado peruano (Machu Picchu), ela é psicóloga e
terapeuta sonora. Esta experiência fortaleceu o tema da música como cura
em mim enquanto pessoa, pesquisadora e compositora. Segundo Alexan-
dra:
40 - Foi lanado um documentrio intitulado “Mulheres Viajantes, entrevistando 12 mulheres que vivem no Vale do
Capo. A maioria delas chegou l com um propósito de cura, sendo algumas terapeutas/xams, como  o caso da italiana
Federica Ilai, que conheo e que possui exatamente o perl que estou falando, Federica recebe vrios cantos de cura e de
louvor ao Divino e ao sagrado feminino. Disponível em: http://gshow.globo.com/Rede-Bahia/Aprovado/noticia/2017/02/
veja-todos-os-episodios-da-serie-mulheres-viajantes.htmldocumentrio. Acesso em: 12 out. 2021.
41 - Vozes Curandeiras no Brasil. Disponível em: https://www.facebook.com/events/275572306225131/; https://www.
facebook.com/vocescuranderas/. Acesso em: 12 out. 2021.
42 - Realizado no Espaço Akash (Salvador). “Workshop Voces Curanderas in Bahia 2017”. Disponível em: https://www.
youtube.com/watch?v=AarqUMYfytc. Acesso em: 12 out. 2021.
43 - Compartilhei um pouco a respeito de uma entrevista concedida durante a vivência do Capo. Voces Curanderas:
testimonios y experiencias. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RurdJJRlOG8. Acesso em: 12 out. 2021.
40
A voz conectada com a música é a ferramenta mais
poderosa que temos. Ela pode transformar e curar
sicamente, emocionalmente e espiritualmente. Ela tem
sido usada como ferramenta de cura em todas as tradições
xamânicas ao redor do mundo e como um meio para se
conectar com o invisível. Cantamos para a terra para a boa
colheita, para aceitar a morte e para facilitar o parto, entre
outros usos tradicionais. A música torna-se sagrada quando
em conjunto nosso corpo e a inteno de nossas mentes,
permite a expresso do nosso espírito (OSTOS, 2017).
41
Antes desta vivência no Vale do Capo, participei tambm do
“Workshop Voces Curanderas in Bahia 2017” com Alexandra Ostos, -
cando profundamente surpresa e, ao mesmo tempo, inspirada por ambas
as experiências que considero igualmente transformadoras, por alinharem
conhecimento técnico e musical sobre extenso repertório de cantos tra-
dicionais venezuelanos e peruanos, técnicas de canto vibracional, alinha-
mento de chakras com a voz e outras, empregadas pela terapeuta, como
ferramenta de cura que vivenciamos e compartilhamos coletivamente em
ambos os momentos.
Ainda sobre esta vivência, vale ressaltar que o encontro com Ale-
xandra Ostos (Venezuela) e Ula Techari (Espanha), terapeuta e cantora que
42
43
082 Corpo, políticas e territorialidades
estava produzindo a vivência Vozes Curandeiras do Brasil, resultou num
encontro musical cujo produto foram pequenos videoclipes que gravamos
ali mesmo no local do retiro, sendo um deles, a gravao de “Tempo, vento
que avoa”, música instrumental de minha autoria que originalmente foi
gravado como baio e, pela primeira vez, ganhou sua verso “xamânica”
com a presença do tambor xamânico, efeitos sonoros de penas, texturas vo-
cais contemplativas e etéreas representando o conceito tempo-vento-tempo
presente em toda a atmosfera sonora, sobretudo rítmica, da composio.
Amplio, portanto, o conceito de “vozes curandeiras”, utilizado por
Alexandra Ostos para nomear suas vivências pelo mundo, para falar sobre
as vozes de mulheres em sua diversidade tanto na produo de conheci-
mento teórico quanto musical – e me incluo entre elas, me situando na
perspectiva dos saberes localizados enquanto mulher lida como branca, cis
e bissexual (HARAWAY, 1995). É atravs da produo de conhecimento
sobre estudos de gênero e Queer em música e da musicologia feminista,
epistemologias feministas decoloniais, sagrado feminino, matrilinearidade
ancestral das cosmologias africanas e indígenas (CUSICK, 1994; GAR-
GALLO CELENTANI, 2012; MELLO, 2005; NOGUEIRA; CAMPOS,
2013; PALOMBINI, 2003; ROSA; NOGUEIRA, 2015; TEIXEIRA, 2016;
THEODORO, 1996; WERNECK, 2007; WHITELEY; RYCENGA, 2006)
que rompemos com invisibilizações históricas do androcentrismo acadê-
mico pautado pela branquitude hegemônica que está presente também na
música (BENTO, 2002; SOVIK, 2009), que tenho chamado de (trans)femi-
nicídio epistêmico e musical, combinando o conceito de (trans)feminicídio
abordados por diversas autoras (BENTO, 2014; BERLANGA GAYÓN,
2018; LAGARDE; 1994) como inscrições de violência material e simbó-
lica ou o que Rita Segato nomeou como “a guerra contras as mulheres”
(SEGATO, 2016) para pensar sobre o campo do sonoro-musical.
Musicalmente falando,  atravs no somente dos seus cantos, mas
de suas práticas musicais enquanto compositoras dos mais diversos gêne-
ros musicais, independentemente de se considerarem ou no, sacerdotisas
ou xams, que mulheres se unem e se curam, curando tambm o Cistema
44 - Clipe “Vocês Curanderas” (by Ecoltura Visual) - Tempo, vento que avoa (Laila Rosa): Alexandra Ostos (Venezuela):
voz e tambor xamânico; Laila Rosa (Brasil): voz e rabeca e Paula Perea (Espanha): voz, penas e efeitos sonoros diversos.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VtgzjNJS_Fk. Acesso em: 12 out. 2021.
45 - Tema do “3o Encontro Novembro Negro nas Artes (ENNA): reexões sobre o racismo e (trans)feminicídios epistê-
micos e musicais”, evento idealizado e organizado pela Feminaria Musical, realizado no histórico Terreiro do Gantois,
em dezembro de 2017.
44
45
083Vol I - Subjetividades & Diferenças
(VERGUEIRO, 2016) cisgênero, sexista, heteronormativo, racista, lesbo-
-homo-transfóbico, capacitista, etarista capitalista e colonial, dentre outras
matrizes de desigualdades. É atravs da música que nós, mulheres, nos
fortalecemos e nos expressamos individual e coletivamente, bem como,
furamos os bloqueios de autoridade masculina no campo da autoria, rom-
pendo com as históricas tentativas de silenciamento através da invisibili-
zao sistemtica e/ou desqualicao de suas obras e atuaões musicais,
materializando reescritas da história ao incluir corpos, identidades e sono-
ridades at ento ignoradas pela história da música androcêntrica, racista e
hegemônica (SCOTT, 1992; CURIEL, 2010; BRAH, 2006).
A motivao para esta jornada foi fruto, portanto, de um caminho de
pesquisa, militância e artivismo de quase duas décadas sobre o sagrado fe-
minino de matriz africana e indígena ou amefricana (GONZALEZ, 1988)
em música no contexto das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas,
mais especicamente, o universo do xangô ou candombl em Pernambuco,
e da Jurema Sagrada, temas da minha dissertao de mestrado (ROSA,
2005) e tese de doutorado, respectivamente (ROSA, 2009). A partir destas
pesquisas, pude aprofundar a perspectiva dos estudos de gênero e feminis-
mos interseccionais e negro no universo das religiões de matrizes africanas
e, posteriormente, como j mencionado, desenvolver tambm uma cone-
xo espiritual que, desde ento, vem transformando minha vida, pesquisas
e produções artísticas enquanto pessoa, compositora e musicista.
Tive a oportunidade de adentrar neste sagrado universo em 1999
enquanto bolsista Pibic, realizando pesquisa orientada pelo Prof. Dr. Car-
los Sandroni na UFPE. A partir desta pesquisa, j como mestranda do
Programa de Pós-Graduao em Música da UFBA, orientanda da Profa
Dra Sonia Chada, iniciei um aprofundamento dos estudos sobre gênero
e música, apresentando artigo sobre a pesquisa no XV Simpósio Baiano
46 - Trago ainda que, durante o doutorado, sob a orientao da Profa Dra Angela Lühning, fui contemplada com bolsa
CAPES de doutorado sanduíche de 12 meses, minha primeira viagem para o exterior, graas aquela conjuntura política de
apoio à pesquisa no Brasil nos governos Lula e Dilma. Ali estudei na New York University (NYU) e Columbia Univer-
sity, sob a coorientao da Profa. Dra. colombiana Ana Maria Ochoa, realizando pesquisas e participando de atividades
no Centro de Estudos Latino-Americanos (CLACS/NYU). Pude cursar, pela primeira vez, componentes sobre estudos
de gênero, feminismos e musicologia feminista com as musicólogas Suzanne Cusick (NYU) e Ellie Hisama (Columbia
University) que me inspiraram para criar o componente optativo “Introduo aos estudos de gênero, corpo e sexualidades
em música” no PPGMUS/UFBA. No contexto pandêmico, na inquietude da alma pela cura, o componente tornou-se um
curso, se ampliando enquanto projeto da feminria musical do curso de extenso “Escutas de si e do mundo: introduo
aos estudos de gênero, corpo e sexualidades em música”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cQB8R-
qgHPl4. Temos ainda páginas no facebook (https://www.facebook.com/feminariamusical/) e instagram (https://www.
instagram.com/femi_naria/?hl=en).
46
084 Corpo, políticas e territorialidades
de Pesquisadoras(es) sobre Gênero, em 2004, organizado pelo histórico
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM (UFBA) ,
do qual, posteriormente, passei a cursar disciplinas como aluna e depois,
como docente, ingressar como pesquisadora e docente do seu Programa de
Pós-Graduao em Estudos Interdisciplinares sobre Gênero, Mulheres e
Feminismo (PPGNEIM/UFBA).
Desde 2012, venho liderando pesquisas, e publicado sobre o tema,
coordenando a Feminaria Musical: grupo de pesquisas e experimentos so-
noros do PPGMUS, que também integra a linha de pesquisa sobre Gênero,
Arte e Cultura, do NEIM, bem como, orientando bolsistas PIBIC, TCCs,
dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre estudos de gênero e
música numa perspectiva interseccional e decolonial, com destaque para a
dissertao de Laurisabel Silva sobre os Jazes em Salvador dos anos 50 a
atuao das mulheres negras no mesmo (SILVA, 2014), a tese de doutora-
do de Jorgete Lago sobre as mestras da cultura popular em Belém do Pará
(LAGO, 2017), a dissertao de Francimria Ribeiro Gomes sobre a atua-
o musical de três diferentes geraões de mulheres negras em Cachoeira,
Bahia (GOMES, 2017) e, mais recentemente, a orientao da doutoranda
Nzinga Mbandi, dentre outras. Todas elas acadêmicas negras militantes,
47
47 - Sobre um pouco da história do NEIM: “A retomada do projeto “emancipacionista” das mulheres no Brasil, em mea-
dos dos anos 70, foi marcada no apenas pela ampla mobilizao de mulheres em torno de questões especícas à condio
feminina em nossa sociedade, mas também pelo crescente interesse em estudos e pesquisas em torno dessa temática,
dando margem ao surgimento de grupos, núcleos de estudos nessa área em diferentes universidades brasileiras, bem
como em associaões cientícas nacionais, constituindo-se em espaos privilegiados para a necessria permuta de expe-
riências e o aprofundamento de reexões teórico-metodológicas sobre a problemtica da mulher e relaões de gênero. A
história do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM tem reetido estes avanos. Criado em maio de
1983, como núcleo ento vinculado ao Mestrado em Ciências Sociais da UFBA, o NEIM se destaca no apenas por ser o
núcleo de estudos feministas mais antigo do país, como tambm por sua atuao marcante e continuada na promoo de
uma serie de atividades nas reas de Ensino, Pesquisa e Extenso, tendo sempre em vista a formao de uma consciência
crítica acerca das relaões de gênero hierrquicas, predominantes em nossa sociedade, e da consequente especicidade da
condio feminina. Em 1995, o NEIM conquistou um lugar de maior destaque na UFBA, ascendendo à categoria de órgo
suplementar. Hoje o Núcleo reconhecido pela sua competência, tanto no âmbito nacional quanto internacionalmente,
destacando-se dentre os principais centros de ensino e pesquisa na área dos estudos sobre a mulher e as relações de gênero
do país. No âmbito nacional tal reconhecimento materializa-se com a criao do programa de Pós-Graduao (Mestrado e
Doutorado) em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM), o primeiro nessa temática
no país e na Amrica Latina Em 2009, mais um passo foi dado no avano dos estudos nessa rea com a criao do curso
de Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade com concentrao em Políticas Públicas, no período noturno com
oferta de 50 (cinquenta) vagas anuais. Trata-se de uma graduao que visa à formao de prossionais que possam atuar
na rea de Gênero e Diversidade (raa/etnia, gerao, direitos sexuais e outras desigualdades sociais) no planejamento,
execuo e avaliao de políticas públicas. Formado inicialmente por um pequeno grupo de professoras e alunas da
Faculdade de Filosoa e Ciências Humanas, muitas oriundas do Grupo Feminista Brasil Mulher, o NEIM logo passou a
contar tambm com a participao de docentes vinculados a outras unidades de ensino e pesquisa da UFBa. Atualmente
o NEIM dispõe de uma equipe de mais de 25 pessoas, incluindo professoras pesquisadoras, pesquisadoras associadas,
bolsistas, estagiárias/os, e pessoal técnico-administrativo. Ao longo destes anos conquistamos o reconhecimento da socie-
dade brasileira através dos movimentos sociais, da academia e dos organismos de governo. Nosso trabalho é conhecido
e reconhecido em muitos países. Tudo isso conquistado com muito trabalho, eciência, responsabilidade e compromisso
social.” (NEIM, s.d., grifo nosso). Disponível em: http://www.neim.ufba.br/wp/apresentacao/. Acesso em: 12 out. 2021.
085Vol I - Subjetividades & Diferenças
sendo a última princesa de tradicional família congadeira de Minas Gerais.
Orientei tambm o Trabalho de Concluso de Curso TCC no Bacharelado
de Música Popular/UFBA, de Ellen Carvalho, que se decidou ao trabalho
das compositoras, onde ela realizou show que mesclava canções autorais e
das compositoras entrevistadas pela Feminaria Musical. O primeiro sobre
o tema no curso de música popular (CARVALHO, 2015).
Vale destacar ainda, que assim como a minha tese de doutorado
tornou-se tema de estudo sobre produo de conhecimento em gênero e
música no Brasil (MOREIRA, 2012), a Feminária Musical tornou-se tema
de tese de doutorado de Anni Carneiro (CARNEIRO, 2019), como grupo
feminista e musical que adota uma pedagogia feminista antirracista que,
alm de produzir conhecimento cientíco e artístico, tambm promoto-
ra de saúde no âmbito da UFBA, pois trabalhamos com práticas de cor-
po, voz, yoga, etc. A mesma, é minha orientanda, e atualmente também
docente da FACED. Outra ex-orientanda do mestrado e tutora do grupo
também foi recém-admitida como docente do Bacharelado de Gênero e
Diversidade da UFBA e continua como nossa colaboradora. Outras ex-bol-
sistas PIBIC ingressaram no mestrado e as tutoras e tutores de mestrado
ingressaram no doutorado. Um deles na Universidade de Aveiro, Portugal.
Importante ressaltar ainda que, atualmente, a maioria das integrantes da
Feminaria Musical é de mulheres negras atuantes dos movimentos sociais
de mulheres negras, feministas e LGBTQIAP+.
Todo o panorama apresentado da minha trajetória enquanto pesqui-
sadora, docente, cantautora, artivista feminista ancoram este novo momen-
to “Desde outro lugar” de aprofundamento em todas as questões colocadas
e que foram viabilizadas pela oportunidade do Estágio Sênior/Professora
Visitante e residência artística no Exterior. Este consiste num momento
esperado desde quando nalizei o doutorado em 2009 e que precisou ser
adiado para cumprir o Estágio Probatório na Universidade, seguido do fato
de eu ter assumido cargo de gesto enquanto coordenadora do PPGMUS
(2016-2018).
Embora nunca tenha abandonado o tema do sagrado feminino em
música desde quando iniciei minha jornada enquanto pesquisadora, após
ingressar na UFBA como docente (2011), o foco das minhas pesquisas se
48
48 - Orientei também TCC’s sobre o tema no curso de Licenciatura em Música, como o de Lorena Martins dos Santos
(SANTOS, 2018) sobre mulheres bateristas, sendo ela tambm baterista que, como contrapartida, ofertou ocina gratuita
de bateria para mulheres, realizada da Escola de Música da UFBA neste mês de junho.
086 Corpo, políticas e territorialidades
ampliou, passando a ter um desdobramento de cunho mais epistemológico
“geral” sobre produo de conhecimento sobre mulheres e música no Bra-
sil (em todas as suas subreas de conhecimento, sendo sagrada ou no) e
compositoras dos mais diversos gêneros musicais, atuantes no cenário mu-
sical soteropolitano, de modo a romper com a sistemtica invisibilizao
sobre o tema, bem como, as produções artísticas das compositoras.
A proposta do projeto nasceu desta imerso nas epistemologias
feministas em música, da militância artivista e atuao extensionista e
performtica autoral da Feminaria Musical, que j somam quase 10 anos
(ROSA, 2012).
Como marco inicial, a pesquisa pelo Programa Permanecer (2012)
resultou num capítulo publicado em livro pioneiro sobre Estudos de gênero
e música no Brasil (ROSA, et. al., 2013), publicado pela editora da As-
sociao Nacional de Pesquisa e Pós-Graduao em Música – ANPPOM
(NOGUEIRA; CAMPOS, 2013) e, desde ento, temos publicado em co-
autoria, realizado diversas aões, tais quais, participao e organizao de
eventos, performances, além de parcerias com movimentos sociais, de mu-
lheres e feministas em âmbitos local, nacional e internacional, totalizando
cerca de 50 aões. Vale destacar ainda que em 2018, o projeto teve mais
três planos de trabalho aprovados, com duas bolsas aprovadas pelo PIBIC-
-AF UFBA (2018/2019) e outros três planos aprovados em 2021, com uma
bolsa, pelo programa de iniciao cientíca para estudantes de graduao,
fortalecendo a continuidade do projeto que conta com a colaborao de es-
tudantes da graduao e tutoras/es de mestrado e doutorado, orientandas/os
do PPGMUS e PPGNEIM, docentes da UFBA e UFRGS, além de diversas
colaborações externas.
Como marco mais recente para a pesquisa e toda atuao da Femi-
naria Musical, vale ressaltar a minha participao como convidada de mesa
sobre gênero e música no mundo, representando a América Latina, durante
o Congresso do International Council for Traditional Music – ICTM (Li-
merick, Irlanda, 2017), onde apresentei dados sobre a mesma, e o perl e
ações do grupo; organizamos o 3o Encontro Novembro Negro nas Artes
(2017), realizado no histórico Terreiro do Gantois, numa ao que mo-
bilizou parcerias entre PPGMUS, PPGPROM, Curso de Música Popular,
49 - At o ano de 2021, se contabilizam aprovaões de 18 bolsas de pesquisa de iniciao cientíca (3 bolsas IC-Perma-
necer/PROAE e 15 Pibic/PROPG), 2 bolsas de PIBIEX Tessituras e 1 bolsa de ACCS (Ao Curricular em Comunidade
e Sociedade).
49
087Vol I - Subjetividades & Diferenças
NEIM Associao So Jorge Eb Oxossi (Terreiro do Gantois) e represen-
tantes dos movimentos sociais como Grupo de Mulheres do Alto das Pom-
bas GRUMAP e Coordenao de Política LGBT da Bahia (Secretaria
de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social – SJDHDS – do
Governo da Bahia), além da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia –
SECULT, pois o evento representou também contrapartida de Residência
Artística realizada em Nova York (2017) enquanto compositora e pesqui-
sadora, realizando performances com a Docente e Design de Moda Carol
Barreto (Bacharelado em Gênero e Diversidade/UFBA) em galerias de arte
e palestras na New York University e Columbia University. Por m, em
2021, criamos o Projeto ACCS no Capo: as vozes curandeiras femininas
ancestrais e contemporâneas do Vale do Capo, com a participao de mu-
lheres medicina que so cantoras, rezadeiras, erveiras, parteiras, terapeu-
tas, parteiras, artistas, produtoras culturais, etc.
50 - Compartilhei a coordenao geral do evento com o Prof. Iuri Passos (Curso de Música Popular) e as Profas Carol
Barreto e Maíra Kubik, ambas docentes do Bacharelado de Gênero e Diversidade e NEIM, sendo a última diretora do
referido Núcleo.
51 -Aprovado pelo edital PIBIEX/UFBA 2021. O mesmo ter como produtos nais um cd com a gravao dos cantos
medicina de autoria das convidadas e um mini-doc com trecho das rodas de conversa e da gravao do cd. Todas as rodas
de conversas esto disponíveis no canal da Feminria Musical, no youtube.
51
50
O sagrado feminino amefricano de Abya Yala
Situando a minha fala e jornadas, considero que o projeto de pós-
-doutorado e residência artística consistiu num importante desdobramento
de toda esta jornada acadêmica e sonoro-musical. Ainda que em diversos
momentos a mesma tenha sido dolorosa, por conta dos diversos enfrenta-
mentos, tem também sido poética, musical e fortalecedora, de cura mesmo,
como a palhaa insubordinada do poema que escrevemos juntas em San
Cristobal de las Casas, Chiapas, que, ao desejar se conectar com outras
mulheres, é aquela:
Que sube la montaña en la madrugada.
Que canta,
Que piensa,
Que siente.
088 Corpo, políticas e territorialidades
Desde este lugar completamente implicado de quem “canta, pensa
e sente”, considero que o Estágio Sênior/Professora Visitante nos EUA e
México foi uma experiência de fundamental importância de maneira inte-
grada: das atividades acadêmicas e da produo artística que inclua tam-
bém propósitos de cura do sagrado feminino amefricano, nos termos de
Lélia Gonzalez (1988).
O que nasce a partir daí emerge dos (en)cantos dos encontros de
Abya Yala com Yolótzin Cervantes, Norma Mogrovejo, Mariana Berlanga,
Norma Contreras, Inaê Moreira, Juci Reis, Carol Barreto, Clan de las Libé-
lulas, Alexandra Ostos, Ilein Kuymin Punta de Lanza, Dina Mazariegos e
tantas outras que vêm tecendo caminhos de cura pela palavra, pela poesia,
pela arte, pela corpa, pela voz, pelo grito… e tudo isso segue reverberando
nos projetos que sucederam essa jornada, mesmo em tempos pandêmicos:
a retomada dos projetos de pesquisa sobre cantautoras na Bahia no “novo
normal” pandêmico, a produo de conhecimento sobre mulheres e -
sica no Brasil e as memórias da Feminária Musical nesses quase 10 anos
de jornada (PIBIC/UFBA); o projeto de Ao Curricular em Comunidade
(ACCS no Capo): as vozes curandeiras ancestrais e contemporâneas do
Vale do Capo, que prevê gravao dos cantos medicina de autoria das
mulheres medicina convidadas para nossas rodas de conversa online e o
Projeto Salve as Yabs: cantautoria feminina para os orixs femininos do
Vale do Capo (Edital Tessituras/UFBA), que prevê um cd todo dedicado
aos cantos de autoria feminina para os orixás femininos de mulheres do
Vale do Capo, e tambm de uma composio autoral em parceria com a
bolsista Marina Coelho. So frutos colhidos e sementes plantadas. Planta-
deiras de sementes boas que somos.
Eu vim do corpo da minha mãe.
Ela me deu semente boa.
Nutre meu corpo.
Se espalhe em bençãos.
Sou plantadeira de semente boa.
(Minuska Lima)
52 - Álbum completo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=vMgi6iekbuc&list=OLAK5uy_nE0Nzeh7cf-
0VfwD48puAOYR4K2pyXiCoY&index=10.
52
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097Vol I - Subjetividades & Diferenças
Paola Zordan
Martha Narvaz
DDeusas e diabas:
Mitos polifacéticos e
forças do feminino
099
As guras do feminino no imaginário em torno das mulheres se
apresentam como guerreiras, sedutoras, mães, feiticeiras e curandeiras. Os
poderes associados à capacidade reprodutiva, à sexualidade e à adivinha-
ção das mulheres eram percebidos como ameaçadores de modo a compor
sua gura, endeusada ao mesmo tempo em que execrada, como uma bruxa.
Com múltiplas referências que tratam dos mitos enquanto ingredientes vi-
tais da civilização e da psique humana, neste capítulo, pretende-se apresen-
tar ao leitor guras que perpassam mitos clássicos, destacando as yabás do
panteão iorubano e as imagens da pomba-gira. Tais guras expressam for-
ças associadas a elementos da natureza, papéis na divisão social e sexual
do trabalho e características emocionais, temperamentos, tipos de volição
e sexualidades variadas. As guras femininas apresentam complexidades
e paradoxos conceituais, situando as mulheres, seus corpos, suas forças e
seus modos de existência entre deusas e diabas. O intuito é questionar o
imaginário que historicamente aprisiona o feminino em dualismos, bus-
cando dar visibilidade à complexidade polifacética dos diversos modos de
habitar corpos e mundos.
Introdução
Desvendar a origem do mundo, das coisas, dos muitos reinos da
natureza - incluídos os humanos - e das relações que regem a vida em
sociedade são inquietações que perpassam o estudo de várias disciplinas
séculos (PIRES, 2002). Utilizando-se desde os mitos às teorias cientícas,
diferentes sociedades elegeram inúmeras e criativas justicativas para sua
organização social. Para povos originários, tais explicações baseavam-se
nos mitos de origem divina, enquanto nas civilizações ocidentais contem-
porâneas a ciência cumpre a função de buscar explicações para a ordem
social existente e, assim, legitimá-la (STREY, 1998). Aqui, antes do que
um objeto de pesquisa, o mito, enquanto força gurada de n cerimônias e
narrativas, toma o corpo de um deus ou deusa, que também pode ser trans-
formado num diabo, demônio, como queira ser chamada a guração, por
excelência, do mal. Como um dos grandes mitos da civilização, a luta entre
o mal e o bem está profundamente entranhada na subjetividade humana,
produzindo, ainda hoje, identidades. O que se compreende como entidade,
Mitos bíblicos e clássicos
100 Corpo, políticas e territorialidades
personicação mítica, apresenta a guração de valores, potências, habili-
dades e elementos da natureza que condizem ao mundo em que vivemos
e que nos tornam um ente que se conecta e se distingue da natureza e que,
de algum modo, identica características subjetivas. No presente ensaio,
apresentamos guras míticas e literárias, mítico-literárias, dada a imanên-
cia entre cções de tipos distintos que, ao mesmo tempo, tem sempre a
mesma origem e a mesma função: traduzir, por formas e nomes, forças que
nem sempre o conhecimento racional capta.
Figuras míticas de culto auxiliam a compreender diferentes formas
de relação vividas ao longo da história pelo/as humano/as. Não se trata de
buscar origens universais ou mitos monolíticos contemplados apenas via
uma face. Escapa-se de uma perspectiva evolucionista para a compreensão
das relações humanas via o perspectivismo. Como método de exploração
de todas as facetas de um objeto ou plano, perspectivar é escolher o movi-
mento e analisar todas facetas possíveis. O estudo dos mitos requer análise
das guras que por sua narrativa tomam corpo ao se apresentarem em mui-
tos territórios e povos, em vários momentos da história. Trata-se de resga-
tar a historicidade destas relações entre corpos, sexos, gêneros e guras a
m de compreender seu engendramento, em especial no que concerne aos
processos de subjetivação feminina (NARVAZ, 2020).
Porém, ao invés de nos determos em fatos históricos, apresentare-
mos guras que expressam amálgamas em identidades constituídas. Ape-
sar da disseminação de novos discursos sobre pluralidade, multiplicidade e
diversidade, a insistência dos antagonismos nas narrativas reproduzidas no
imaginário social contemporâneo tem reforçado o velho maniqueísmo dos
sistemas simbólicos ocidentais, sendo tal dualidade o que o presente texto,
com guras afrobrasileiras, intenciona quebrar. “Se a sociedade patriarcal
não assumiu o conito entre os sexos e as anomalias sociais, o candomblé
os absorve” (CARNEIRO; CURY, 1993, p. 26). Embora não se preten-
da, aqui, discorrer acerca do candomblé, guras advindas de seu panteão
multifacetado são apresentadas para dar corpo a questionamentos sociais e
civilizatórios acerca dos modos de subjetivação pelo feminino.
Para Balandier (1997) o mito aborda, em sua linguagem própria, a
ambiguidade do social e o aleatório que o afetam: ele resulta de uma osci-
lação necessária entre aliança e enfrentamento, ordem e desordem. Mircea
Eliade arma que o mito é um ingrediente vital da civilização humana; lon-
ge de ser uma fábula vã, o mito é ao contrário uma realidade viva, à qual se
recorre incessantemente; não é absolutamente uma teoria abstrata ou uma
101Vol I - Subjetividades & Diferenças
fantasia artística, mas verdadeira codicação da religião dita “primitiva” e
da sabedoria prática:
É a irrupção do sagrado no mundo, irrupção contada pelo
mito, que nada realmente o mundo. Cada mito mostra como
uma realidade veio à existência, seja ela a realidade total, o
Cosmos, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie
vegetal, uma instituição humana (ELIADE, 1992, p. 51).
A mitologia de Roland Barthes (1993) possibilita estudar os deslo-
camentos e as incongruências de ordem cultural e estética no que, por sua
recorrência, se torna um mito. Aqui, usamos a perspectiva de Barthes para
pensar o mito em suas gurações populares, imiscuídas na tradição oral e
na iconograa de deusas, entidades de culto e guras demonizadas que dão
a ver o problema de aceitação e propagação do feminino no Brasil hoje. Mi-
tos e tragédias gregas (BULFINCH, 2001; KOLTUV, 1997; PIRES, 2002;
RINNE, 1988) contam que, na origem do Universo, as primeiras deusas
eram polifacéticas, criativas e destrutivas, boas e más ao mesmo tempo.
Ao estudar o feminino através dos tempos, Martha Robles (2019)
traz diversas guras para mostrar múltiplas facetas da mulher em guras
míticas, literárias e históricas, numa compreensão civilizadora de que
um feminino integrado e um feminino que arrasta o poder da mulher para
queda. Aqui, ressaltamos forças independentes dos poderes masculinos,
não circunscritas apenas à fecundidade. Hécate, encontrada nas encruzi-
lhadas, entidade misteriosa, apresenta tanto as trevas e os horrores, quanto
o esplendor da noite de lua cheia (BULFINCH, 2001).
Tragédias clássicas como “As Bacantes” e “Medéia”, de Eurípedes,
falam em mulheres independentes e poderosas, que integravam sexuali-
dade e maternidade, bondade e maldade em uma gura, a exemplo de
Hera (ROBLES, 2019). Medéia, que matou por ciúme os próprios lhos
ao ser traída pelo marido, encarna ora a imagem negativa de mãe má, ora
a imagem de sabedoria, poder e força da mulher que não se submete à in-
delidade masculina legitimada pela ordem patriarcal. As Bacantessão
mulheres de Tebas que abandonam seus lares à noite e celebram orgias,
a ponto de uma delas matar o próprio lho sem o saber (RINNE, 1988).
Em Antígona”, tragédia de Sófocles, Electra e Antígona, lhas de Édi-
po, apresentam mulheres que, mesmo vivendo sob a égide paterna, ousam
desaar a dominação masculina reinante em Tebas (PIRES, 2002). O po-
102 Corpo, políticas e territorialidades
der feminino é também apresentado pelas sacerdotisas, que conhecem a
arte do amor e da adivinhação. Em O Banquete”, Platão atribui tudo o
que aprendeu sobre o amor à sacerdotisa Diotima de Mantinéia. A palavra
Mantinéia “relaciona-se com a mântica, a arte da adivinhação e do delírio.
O dom de ler sinais é poder dado a poucos. Sacerdotisa dos mistérios, tudo
o que diz ou ensina Diotima (ROBLES, 2019, p. 21) liga-se estreitamente à
‘doença sagrada’, o amor” (MATOS, 2002, p. 115). Os poderes femininos,
associados à capacidade reprodutiva, à sexualidade e à adivinhação eram
percebidos, no entanto, como ameaçadores. Aparece, então, o mito do do-
mínio do Universo por Zeus, que toma para si a capacidade reprodutiva e
engrandece a paternidade, destituindo as imagens femininas de seus pode-
res. Em outros mitos, como os de Pandora, Perséfone e Psique, as mulheres
são apresentadas como curiosas, frívolas, dependentes e feitas apenas para
agradar aos deuses masculinos (BULFINCH, 2001; RICHLIN, 1991).
As origens do mundo e da humanidade, segundo o ‘Gênesis’, reve-
lam um Deus-Pai-Criador severo e autoritário. Dominar a natureza, extrair
dela seus recursos, conquistar outros povos e submetê-los para construir a
civilização estão presentes desde o Adão bíblico. Criado à imagem e seme-
lhança de Deus, o homem é dotado do privilégio de dominar todos os seres
vivos, ao qual é prescrito que subjugue a terra, o céu, o mar e todas as suas
criaturas. A mulher é criada a partir do homem, como produto dele. Não
tolerando a desobediência de Adão e Eva, que outorgam a si o direito ao
saber e à autonomia, Deus os castiga com o sofrimento do trabalho e a dor
do parto (DADOUN, 1998).
O mito de Lilith, a deusa diaba, que apresenta a outra face de Eva,
conta que esta mulher feita do húmus juntamente com Adão feito do bar-
ro, foi expulsa do paraíso por reivindicar prazer sexual. Não querendo se
submeter a Adão e nem a Deus, Lilith é condenada pelo Deus-Pai-Cria-
dor. Quando Eva, primeira mulher gerada não de matéria própria, mas do
corpo de Adão, prova o fruto do conhecimento do Bem e do Mal, Deus
lhe castiga com as dores do parto e com a submissão ao homem a quem
“pertence”. Lilith se torna um demônio popular, um mito aterrorizante, e
Eva, a pecadora por excelência. Na iconograa, Lilith, essa que se mostra
indomável, se mistura à imagem da deusa Astarte, aparecendo com pés de
ave. Enquanto Lilith é castigada, a Virgem Maria é venerada, não como
deusa, mas enquanto mãe do Senhor-Jesus-Deus. Maria é a Serva do Se-
nhor, mediadora do ‘Deus Criador’, uma vez que concebe a partir do ‘Es-
pírito Santo’. A imagem da mulher ideal passa a ser a de Maria, que não é
103Vol I - Subjetividades & Diferenças
mulher, visto ser gurada como a mãe que sofre, adorada por sua condição
de humildade, resignação e subordinação. Idealiza-se, a partir daí, a repre-
sentação feminina da boa mãe, nutridora, protetora, santa e assexuada.
Na Inquisição, durante a Idade Média, a força ameaçadora das mu-
lheres é simbolizada na gura da bruxa e condensada numa gura ainda
mais poderosa, a do diabo, gura masculina (KOLTUV, 1997). Tal ima-
gem, mito que atribui o poder da bruxa ao diabo, destitui a força feminina,
pois sua condensação mágica num corpo e psiquismo diferenciados, feiti-
ceira, não está isenta de machismos e estereotipias. Neste sentido, busca-se
compreender os mitos para que não nos tornemos submissas aos traços
miticadores das forças que nos compõem.
Para o medievalista norte-americano Jerey Russel, em seus estu-
dos sobre as gurações do mal na história do pensamento, o conceito de
mal não possui nenhuma precisão, tampouco coerência. O mal, antes de ser
conceito, é uma abstração: “devemos considerar que o mal é sentido ime-
diata, direta e existencialmente, em lugar de ser denido categoricamente”
(RUSSEL, 1991, p. 3). Descrições de experiências que envolvem o “mal”,
como crianças sendo cruelmente castigadas, são usadas pelo autor para
denir o mal como percepção: “experiência direta e imediata de algo feito
a um indivíduo” (RUSSEL, 1991, p. 3). Russel trata do mal em termos de
dor e sofrimento e, embora seus exemplos tragam situações concretas nas
quais o mal é exercido sobre o físico, também aborda o mal em suas formas
incorpóreas. Porém, o mal não é uma abstração, pois é sentido e conheci-
do. Compreendemos o mal porque fazemos analogias com nosso próprio
sofrimento: “Embora a dor esteja a 15 mil quilômetros ou a cinco mil anos
de distância, isso não importa. A voz grita, é ouvida e sabemos do que se
trata” (RUSSEL, 1991, p. 3). Estas considerações são apenas o princípio da
obra de Russell, que não intenciona tratar do problema do mal, mas pesqui-
sar as formas pelas quais a demonização se gura a ponto de poder armar
que “Diabo é o conceito de Diabo” (RUSSELL, 1991, p. 29).
Uma reversão do caráter miticador das guras clássicas, em es-
pecial a bruxa, pode ser observada no paradoxo da “prostituta sagrada”
(QUALLS-CORBETT, 1990), a qual, em nossas pesquisas (ZORDAN,
Giras poderosas
104 Corpo, políticas e territorialidades
2021) se imiscui a guras sincréticas, destacando aqui a entidade Pomba-
-Gira, Pompogiro ou Pombagira. Esta é amaldiçoada ao mesmo tempo em
que bendita; amada e odiada; temida e venerada. Ainda que carregue uma
representação cultural, numa perspectiva outra, na qual as guras apresen-
tam forças e trazem essências que, mais do que simbólicas, são efetivas
composições de modos de existência, esta gura que gira faz uma revira-
volta nas representações mitológicas e literárias que a civilização ergue e
cultua como mito. Ela não se representa facilmente, ela se apresenta.
A Pombagira “pede passagem” nos terreiros das religiões afro-bra-
sileiras para lutar contra o ‘mal’, tomado como proibição de desejos legí-
timos, contra a castração e opressão para vencer a desigualdade, o precon-
ceito, a discriminação. Trata-se de uma gura que rompe com os papéis
instituídos, não aceitando que as mulheres quem na condição de subalter-
nas, de submissas ao domínio masculino. Para essa entidade, todo tipo de
dominação caracteriza-se como um ‘mal’, que aniquila os oprimidos, por
isso, ela se coloca à disposição para desconstruir esses conceitos estabele-
cidos, social, política, cultural e religiosamente, conforme é exteriorizado
por meio de pontos cantados destinados a exaltar a Pombagira.
Oli Costa, em sua tese de doutorado (2015), analisa a Pombagira
como uma ressignicação mítica da deusa Lilith. A Pombagira surgiu no
Brasil colonial, imiscuindo-se com as bruxas da imagética do Renascimen-
to (ANCHIETA, 2021) e perpassou o período imperial por meio do ima-
ginário popular. Sedimentou-se ao longo do tempo através das crenças re-
ligiosas europeias, africanas, ciganas e indígenas, expressando uma gura
popular de grande interesse aos estudos feministas e para antropologia da
imagem. A Pombagira apresenta-se de forma sincrética e com muitos no-
mes. A mais conhecida alude à gura de uma rainha espanhola com traços
ciganos, identicando-se como Maria Padilha de Castela e expressando-se
nos rituais dos terreiros das religiões e cultos afrobrasileiros.
A partir de pesquisas efetuadas sobre o mito primordial de Lilith,
Costa (2015) observa as semelhanças míticas e comportamentais presentes
na entidade Pombagira com a deusa-diaba Lilith no que tange a sua re-
beldia e sua ânsia pela liberdade. Interessam as guras míticas, presentes
em imagéticas de muitos povos e nações, que não aceitam o cerceamento
advindo das instituições religiosas e culturais, as quais, por meio da domi-
nação masculina, tentam controlar o sexo feminino, inibindo e colocando a
mulher como um ser objetal, negando a sua condição de sujeito na história.
105Vol I - Subjetividades & Diferenças
A Pombagira, em sua controversa atuação, gura a libertação das mulhe-
res que se encontram em desigualdade perante os homens ou estejam na
condição de propriedade dos mesmos com a legitimação da sociedade e da
Igreja.
As Pombagiras, assim como os Exus, são porta-vozes dos
oprimidos, as vozes das ruas, das denúncias do sistema,
dos condenados, dos que estão à margem da sociedade,
dos excluídos, dos desprezados, daqueles que são
estereotipados, tais como, por exemplo, as prostitutas, os
gigolôs, os homossexuais, os michês, os malandros e os
amantes; todos esses que carregam os estigmas do pecado
original, do ilícito, vivenciado nos amores proibidos
pelos padrões convencionais e legais. Destacamos que a
Pombagira exerce forte domínio, nos casos amorosos,
unindo ou separando os casais, conforme for solicitada.
De modo geral, é a protetora das prostitutas, que recorrem
aos seus serviços, a m de conquistarem o amor ilícito,
de um cidadão que as desprezam, favorecendo os meios
nanceiros para o alcance de tal objetivo. A mulher que
ousa romper com o estabelecido corre o risco de ser
estereotipada como devassa ou prostituta, ou seja, uma
Pombagira (COSTA, 2015, p. 104).
Essas entidades estão vinculadas à gura do Exu, ancestral iorubá
que preside a comunicação e toda transmissão, ligado diretamente ao cor-
po, daí sua associação à alegria, ao gozo e ao prazer (PRANDI, 2001). As
guras de Lilith e de Pombagira, transgressoras da própria guração espe-
rada em relação a uma deusa ou gura demonizada em livros sagrados e
tradições, correspondem à inversão dos valores que a sociedade estima. A
estigmatização da sexualidade feminina, em especial a possibilidade de seu
livre prazer, assim como da liberdade que o gozo de seu corpo apresenta ao
mundo, condensa-se nessa gura, encarnação de conceitos feministas, que
se chama Pombagira. Pode-se compreender que “o vocábulo genérico de
Pomba Gira deu origem a uma nova categoria de entidades” (AUGRAS,
2001, p. 295) que dão corpo à liberdade dos corpos fora do binarismo femi-
nino-masculino, tanto de homens como de mulheres, cis ou trans.
Conforme Dravet (2013), na mitologia Yorubá, antes dos homens
dominarem as mulheres, eram elas que os humilhavam e dominavam, zom-
bavam deles e determinavam a ordem social do culto. Várias sociedades de
106 Corpo, políticas e territorialidades
mulheres ocupam o imaginário relativo a um tempo mítico, a-histórico, em
que elas detinham o poder. E, de fato, relatos de sociedades femininas,
inclusive de guerreiras em todos os lugares do planeta. Na história Yorubá,
contam que houve duas sociedades secretas de mulheres poderosíssimas:
a sociedade Elekô, conduzida por Obá e a Sociedade Geledê, associada ao
culto das grandes mães. Assim, no começo do mundo, a mulher intimidava
o homem desse tempo, e o manejava com o dedo mindinho. É por isso que
Oyá (conhecida mais comumente nos cultos afro-brasileiros sob o nome
de Yansã ou Iansã) foi a primeira a penetrar no segredo dos Egúngún (an-
cestrais masculinos desencarnados). Assim, quando as mulheres queriam
humilhar seus maridos, reuniam-se numa encruzilhada sob a direção de
Yansã, deusa que, por muitas vezes, confunde-se com pombagiras e ciga-
nas. Na encruzilhada em T ou Y (encruzilhadas em forma de útero), nesse
encontro de caminhos, contam que Yansã encontrava as mulheres com um
grande macaco domado, domesticado, o qual usava roupas e cava ao
do tronco de um igi (árvore). Depois de cerimônia especial, o macaco se-
guia as ordens de Yansã, fazendo o que por ela fosse determinado. A doma
se dava por meio de uma vara que ela segurava, conhecida como ísan. Esta
cerimônia acontecia diante dos homens que, assustados com a aparição,
fugiam. A tradição oral relata que os homens resolveram “acabar com a
vergonha” de estarem sendo dominados pelas mulheres e, então, assumi-
ram formas terricantes a m de fazerem as mulheres fugirem. Dizem que
Yansã foi a primeira a escapar e desapareceu para sempre da face da terra.
Mesmo assim, com a força e o poder que tinha, o poder feminino se man-
teve preservado e sua continuidade assegurada. Depois disso, sabe-se que
os homens dominaram as mulheres e são senhores absolutos do culto aos
Egúngún, proibindo às mulheres penetrarem no segredo de toda sociedade
secreta. Contudo, sociedades secretas femininas autorizadas a participar
em território Yorubá continuaram a existir em circunstâncias especiais.
Isso explica por que Yansã-Oyá é adorada e venerada por todos na qua-
lidade de Rainha e fundadora da sociedade secreta dos Egúngún na terra.
Com a fuga, são sete pássaros que se escondem na noite: três pousaram na
árvore do bem, três na árvore do mal e o sétimo permaneceu voando entre
uma e outra.
Esta lenda se mistura à da orixá Iyami Oxorongá, bruxa e pássaro,
uma espécie de mãe primordial, dona das barrigas, tão assustadora quanto
Lilith, cujo termo traduz toda feitiçaria possível, pois as Iyá mi, ancestrais
míticos femininos, falam dos poderes femininos em seus aspectos mais
107Vol I - Subjetividades & Diferenças
perigosos e destrutivos, bem como criativos e geradores de vida. Perso-
nicam os poderes ligados ao cultivo da terra e à sensibilidade ligada à
natureza. Essas ancestrais também são chamadas de Ajé, o que em iorubá
signica bruxa ou feiticeira, embora não sejam realmente bruxas, mas as
avós, ou as mães em cólera que, sem sua boa vontade, as sociedades se
desintegrariam e a vida não poderia continuar (CARNEIRO; CURY, 1993;
DRAVET, 2013; REIS, 2020; VERGER, 2018). Iyami Oxorongá tem a
coruja, pássaro noturno, como efígie. Seus mitos são poucos conhecidos,
mas sabe-se que homens só podem se aproximar aos locais de culto desta
Senhora se for convidado e, mesmo assim, terá de se apresentar de saia e
cabeça coberta. Os mistérios em torno dessa Senhora dos Pássaros, que
aqui arriscamos ligar ao mito de Lilith, envolvem castigos por ousadia de
aproximação, temor de que o pássaro pouse na cabeça dos praticantes, pos-
sível sinal de mau agouro. Aquilo que se oculta na noite é mistério, arcano,
arcaico, de algum modo precisa ser temido.
O fato dessas entidades se esconderem garante a manutenção do que
o segredo pode assegurar. Paradoxalmente, é no oculto e no silêncio que
o saber dos fundamentos se preserva. Salienta-se que o segredo e o voto de
silêncio sempre preservaram saberes que os livros, tal como as civilizações
de semiótica abstrata os concebe, não conseguem fornecer. Parece que as
senhoras dos pássaros, feiticeiras, são as responsáveis por preservar as co-
nexões entre homens, mulheres e os que não participam desta dualidade.
Além da Senhora dos Pássaros, a cosmogonia afrobrasileira tam-
bém apresenta mitos de vários Orixás femininos. Na Umbanda, cultuam-se
seis: Nanã, Yewá, Obá, Yemanjá, Yansã, Oxum, sendo a sétima, Otin, uma
entidade demiúrgica controversa. Um olhar em torno de como são caracte-
rizadas e cultuadas essas deusas também traz elementos sobre a construção
do poder feminino nas religiões de matriz africana do Brasil e seus desdo-
bramentos no imaginário coletivo. Guardado o mistério dos Pássaros na
escuridão, Orixás manifestam alguns de seus aspectos nas suas aparições
e atuações nos corpos e na terra. O termo orixá relaciona ori (cabeça, co-
nhecimento, força interna) com ésas (espírito ancestral). Os poderes guar-
dados e simbolizados pelos Orixás femininos, yabás, Mães (ya) Rainhas,
se sintetizam em poder matricial original (Nanã), poder selvagem, ordeiro
Yabás: forças femininas
108 Corpo, políticas e territorialidades
e guerreiro (Obá e Yansã), poder de geração e conhecimento (Yemanjá e
Oxum), poder de sedução (Oxum e Yansã) e poder mágico (Ewá e Otin).
Embora possamos determinar o tipo de poder correspondente a cada Orixá,
todos se encontram reunidos nas Orixás femininas, constituindo uma
força que poderíamos chamar de força matriz do universo, força que a
vida, gera, transforma, ama e cria. Os orixás apresentam elementos e forças
da natureza, estando, cada orixá, associada a determinados elementos tais
como plantas, animais, cores, atmosferas, situações climáticas e emoções
(CARNEIRO; CURY, 1993; COSTA, 2015; DRAVET, 2013; REIS, 2020;
VERGER, 2018).
A existência de orixás femininos, masculinos e ambivalentes ou
andróginos, expressa uma compreensão profunda da própria sexualidade
humana, apresentada desde os mitos de origem. As diferentes modalidades
de incorporação expressam isso. Nanã Buruku, cuja origem localiza-se no
Daomé, é a grande deusa da fertilidade, a mãe-terra, também conhecida
como a vovó ou a grande ancestral. Faz-se presente, como Lilith, na lama.
Sua força é a dos rios lodosos, seu axé está no fundo dos lagos e nos am-
bientes encharcados, apresentando a mistura da terra com a água, lócus de
fertilidade. Enquanto ancestral original, Nanã apresenta o próprio princípio
da fertilidade, pois ela mesma foi autogerada. Procriadora, trata-se de um
ente que a vida. Nanã não gosta de homens, anciã, é quase assexuada.
Contam nos terreiros que foi rejeitada por Oxalá, por gerar seres “anor-
mais”: dela veio Omulú ou Obaluaiê, que carrega todas as doenças conta-
giosas e traz as epidemias e Oxumaré, tanto homem quanto mulher, que se
transmuta na serpente mítica que também é o arco-íris, o qual liga o céu e
a terra. Deusa das águas paradas, lagoa onde está todo o profundo mistério
do mundo, Nanã talvez seja o orixá feminino mais arcaico, certamente a
divindade mais velha ligada aos mistérios das águas. Nanã gura os mis-
térios da vida e da morte, protegendo os órgãos reprodutores da mulher. A
percepção de innitas potencialidades humanas se personica em Nanã.
Todas as potências da natureza, encarnadas humanamente, se expressam
no resto do panteão iorubá, apresentadas pelos demais orixás. Na iconogra-
a, se mistura com Sant’Ana, a avó.
As yabás, por pressão colonizadora, de um modo ou de outros, são
sincretizadas com a Virgem Maria, quando não sua mãe, Ana, como no
caso de Nanã. Yemanjá, orixá do mar, a mais popular das yabás, se torna
Nossa Senhora dos Navegantes, enquanto Oxum, senhora do ouro, orixá
das águas doces, Nossa Senhora da Conceição, em sua precipitação como
109Vol I - Subjetividades & Diferenças
cascata, Nossa Senhora das Graças. Embora não se ignore o problema do
embranquecimento das forças ancestrais africanas, o presente texto traba-
lha a partir do pluralismo que se imiscuí de modo que oposições deixem
de ser a impossibilidade de se enxergar outra faceta e permitir o circular
amplo dessas entidades. Na umbanda, religiosidade sincrética brasileira,
as potências cósmicas se exprimem nos Erês e Caboclos, que qualquer
iniciado, homem ou mulher, poderá pertencer ou “carregar”, de modo a
outros panteões, orientais e indígenas, participarem dos cultos. Se pensar-
mos em termos de arcanos, elemento que extrapola os mitos, uma vez que
suas múltiplas variações de imagens traduzem uma polivocidade de forças,
concretas, empíricas, vividas, ainda que, por sua ancestralidade, tais deu-
sas, um tanto demonizadas em alguns segmentos sociais, especialmente
em igrejas neopentecostais não esclarecidas, trazem em suas guras poten-
tes efígies de resistência, mesmo quando sincretizadas.
Tais deusas manifestam forças inevitáveis da vida e da natureza,
Otim, que quando mulher tinha quatro seios e contam que virou um rio, o
trabalho da dor com a cortadeira Obá, a relação com os mortos (eguns) com
as movimentações da intrépida Iansã ou Oiá e, ainda, as brumas e segredos
que sussurra Ewá, a única verdadeiramente virgem, que não se envolve e
nem pertence aos homens e que é o campo, o fundo, o plano imperceptível
por onde as orixás que aparecem surge. Os dois Orixás femininos mais
relacionados à luta, ao trabalho pesado e à guerra, as portadoras de faca e
espada, são Obá e Yansã. Oxum, que tem múltiplos aspectos, muitas faces,
muitas idades, também aparece como guerreira. São as Orixás que mais se
aproximam da força feminina original em seu aspecto selvagem, na mani-
pulação e entendimento, do manejo de instrumentos e, no caso de Oxum,
a leitura de oráculos. Todas essas deusas, mesmo na doçura e suavidade,
apresentam agressividades animais. A força bruta – mesmo que a da névoa
faz-se sentir em seus elementos, derrames, expansões. Ninguém conse-
gue car indiferente ao vento, a neblina densa, as correntezas violentas e a
um feitiço ao qual somente o destino, conhecido como Ifã, pode responder.
Obá, honra à própria palavra em sacrifício, devoção e serviço. Yansã, guer-
reira inquieta, impulso e movimento, dança como a hindu Kali, numa ação
recíproca entre o que destrói e o que proporciona a reconstrução. Oxum,
que joga um facho protetor com seu espelho, trabalha na defesa, responde
a um grande instinto protetor afastando o mal dos próprios lhos. Esse as-
pecto que impede a aproximação do inimigo se faz presente primeiramente
em Nanã, aquela que absorve o pútrido e torna fértil o pior, não admitindo
110 Corpo, políticas e territorialidades
o elemento agressor em sua proximidade.
Yemanjá, embora muito ameace, protege multidões de lhos seus
e os lhos de todas as outras. Sua popularidade, Rainha do Mar, a torna
uma entendida quase suprema no imaginário brasileiro. A força feminina é
ativa, quando unida se torna quase invencível, portanto, perigosa. Nada de
fragilidade, vulnerabilidade, fraquezas associadas ao feminino. Ninguém
pode se aproximar indevidamente. A mulher guerreira é uma imagem de
destaque porque muitas mulheres, não raro, têm que lutar sozinhas para
manter suas famílias, criar seus lhos, pagar suas contas. Mais que a gura
da mãe, a da guerreira é certamente hoje uma gura emblemática da femi-
nilidade brasileira.
O povo de santo diz que “com as lhas de Iansã”, essa que manda
e desmanda, que tem a força de um búfalo, a única que dança com Omulu,
“ninguém pode”. Filhas e lhos dela são temidos e respeitados. Os mitos
falam de Iansã, senhora dos raios e das tempestades, com Xangô, Iansã
com Ogun, Iansã com Oxóssi ou Odé. Mulher ardente, ela passa por todos.
Se, na sociedade de moral patriarcal a insubordinação feminina não é acei-
ta, ela é venerada no candomblé, na umbanda e em outras expressões de fé
afro-brasileiras. Iansã e Obá, mesmo que exemplos de entrega amorosa e
física, é expressão de uma diligência que, em parte, o cristianismo apresen-
ta na “serva de Deus” que Maria declara ser, no Evangelho de São Lucas,
único que a menciona. Essa fortaleza, fruto de uma disciplina das ações e
passe certeiro, de algum modo também é observada nas heroínas do Antigo
Testamento, de acordo com Robles, em Dalila, acrescentando-se Débora,
Ruth, Ester, Judith e Dina. Todavia, muito distante da gura da Mulher
Forte (ESTÉS, 2012), o grande estereótipo da mulher brasileira é o da sen-
sualidade e da beleza. Oxum, aquela a quem Exu deu canal para Orunmilá,
Aquele que tudo sabe e dá pistas para que Oxum desvende e Yansã, aquela
que subjugou os homens em seus próprios caminhos, encarnam as gran-
des sedutoras. Contam os Babas, Pais de Santo, que todos os Orixás são
apaixonados por elas. Oxum, aparentemente, é mais passiva, não se mexe,
chora muito, é toda de cafunés e mel. Yansã, impulso que conduz à ação, é
sempre ativa. Enquanto a sedução de Oxum se pela graça física, sabores
e adornos, o poder de Yansã está nas atitudes, no seu movimento, na sua
coragem e luz. Deusa do fogo e das tempestades, assim como seu marido e
Rei, Xangô, tem domínio sobre os trovões, ela controla ventania e tem, em
si, os raios. Carrega uma reluzente espada e o eiru ou eiroxim, uma arma
espiritual de crina de cavalo com a qual Iansã espanta os espíritos dos mor-
111Vol I - Subjetividades & Diferenças
tos. Por isso, há relatos em terreiros que dizem que Iansã é a única a entrar
nos ritos secretos dos homens.
raros exemplos de presença feminina em sociedades secretas,
poucas eram autorizadas a participar; “A chea da Sociedade Secreta Fe-
minina Geledé, existente na África e que alguns dizem ter existido no Bra-
sil, é atribuída à Obá” (CARNEIRO; CURY, 1993, p. 25), orixá dos mis-
térios e das paixões. Obá, não temos certeza, parece ser uma destas sibilas
iniciadas, não por ter cortado a própria orelha, mas por ser conhecida como
iyabá guerreira, que tem por armas um escudo, por vezes uma adaga, que
também é a faca sacricial e o instrumento de corte na preparação de ebós
(oferendas). É uma das mulheres de Xangô, para quem se sacricou. Por
isso, protege a orelha que não tem.
Yewá, aquela que pouco se dene entre a água e o ar, assim como
Otim, espécie de Dafne masculina, ninfa tanto da água quanto da mata, as-
sim como Oxumaré, homem e mulher ao mesmo tempo, são forças ligadas
à magia e a transformação. Magia, uma espécie de bori, conhecimento, arte,
ciência, um saber de si e das forças, é o que possibilita, via instrumentos,
guras, cânticos, danças, conexão com o que não é dado simplesmente aos
cinco sentidos, e sim, ao que, sem deixar de se relacionar com estes senti-
dos, se liga a um tipo de sentido outro, que nem sempre a palavra ou a coisa
exprime. Ewá ou Yewá se estende a toda atmosfera, aquela que também é
orvalho, aurora, que se mostra em transições e na variação coloríca dos
fundos míticos. Sua força é um elemento etéreo, que mostra a passagem
entre a escuridão e a luz, diluindo os contastes presentes em toda criação.
Como nas Escrituras, as tradições africanas da Costa da Guiné con-
tam que o que se cria advém de um fundo escuro innito, no qual se dis-
tingue a luz, que se conduz por uma vida como um raio ou astro luminoso
e quando for seu destino, volta daquilo que brilhou em vida ao ambiente
escuro da morte. Intuição, vidência e escuta além do audível tornam essas
guras bruxas, no sentido colonial e barroco do termo. Mulheres que po-
dem ver o que ninguém percebe, conhecem o bem e o mal para além das
atitudes que ferem os seus corpos. Sabem daquilo que os outros não po-
dem saber, pois saber que bem e mal são ilusões necessárias para conter a
crueldade da existência, as faz trabalhar com o poder oculto, dos pássaros
Magia e transformação
112 Corpo, políticas e territorialidades
da noite, daqueles que se guiam na escuridão, que pressentem ameaças e
transpõem obstáculos. São o sétimo pássaro, aquele que voa entre a árvore
do bem e a árvore do mal: a feitiçaria é o próprio conhecimento das árvores
e impede que caia em armadilhas.
A sabedoria feminina, relegada a gura da bruxa, é considerada nos
terreiros, entre os tantos mistérios dos Orixás - mesmo frente os de Osanha,
aquele que faz as poções e maneja com as ervas - o aspecto mais perigo-
so, fascinante e assustador das práticas e ritos afro-ameríndios brasileiros.
Diante de mistérios, gurados em arcanos, se requer grande cuidado. Uma
vez sentidas as suas forças, não se pode car indiferente. Trata-se de forças
naturais, por vezes microscópicas, quase imensuráveis, que, se não as res-
peitarmos, acabam com a humanidade.
A aparição da Pombagira gera efeitos sociais e culturais no femi-
nino, operando nas de-formações e amálgamas quanto à compreensão da
gura mulher-feiticeira no imaginário brasileiro. O fascínio das deusas, em
qualquer que seja o aspecto que sua gura apresente, é o conhecimento em
torno do que vem a ser uma força feminina. O desconhecimento deixa hu-
manos profundamente crédulos, inseguros, manejáveis, certos de que exis-
tem malefícios. Palavras incompreendidas regem atos dos que não conse-
guem enxergar as consequências daquilo que reproduzem. Se receio e
preconceito em relação a seus cultos, gerando inúmeras reações pejorativas
perante sua devoção e ainda rejeição aos ensinamentos práticos que a ritua-
lística apresenta, seja na história, seja na atualidade, é porque os dualismos
que regem a humanidade entre os que se consideram do “bem” e os que
são apontados como “maus” ainda não foram superados. Personica-se
este problema na gura da bruxa no Ocidente, observando a repressão a
que foram submetidas aquelas associadas a tais conhecimentos, segredos
e mestrias.
A História, especialmente a que marca o início do mercantilismo
global que vivemos até hoje, que trata da perseguição a mulheres tidas
como “bruxas” (FEDERECI, 2017), constitui indício do quão difícil é para
a sociedade aceitar mulheres sábias e livres. Outro indício são as caricatu-
ras e demonizações que o elemento selvagem, acrescido do poder feiticeiro
do conhecimento da vida, da morte, das curas e das artes, suscita ao ima-
ginário coletivo. A mulher é tomada como louca, histérica, endemoniada,
indomável, desgraçada, víbora. Mesmo que este poder seja reverenciado,
por outro lado, quando ele se manifesta na vida terrena, as reações daque-
113Vol I - Subjetividades & Diferenças
les que não o compreendem podem ser violentas e destruidoras.
Na umbanda sincrética são Exus e Pombagiras, guias de defesa
e transformação, forças que abrem, trancam, inuenciam e amarram os
acontecimentos de modo que todos cumpram seus destinos e desígnios da
melhor forma possível. A força feminina básica, ao ser gurada nas Pom-
bagiras, associa-se, mais do que um princípio mágico de conexão, ao ima-
ginário da prostituta, mulher sedutora, perigosa, “mulher da vida”, de vida
livre, mulher de vários homens. Ela é a que, de bom grado, levanta a saia.
Essa gura é temida por seu poder, dizem que permite tudo na obtenção de
prazer, que age no amor e relacionamentos. Tem muitos nomes e aspectos:
Maria Molambo, Maria Padilha, Sete-Saias, Mirongueira, Pomba-gira da
Praia, Maria da Praia, Dona da Lira, Rainha do Cabaré, Rainha da Encruza,
Pomba-gira Menina, Dama de Preto, Rosa Caveira, Maria Quitéria, Maria
Bonita, Maria Navalha, da Lua, da Figueira, A dos Sete Cruzeiros, Pomba-
-gira Cigana, Diaba, Madame Satã, Rainha da Noite, Rainha dos Infernos,
Senhora das Feras, Pomba-gira das Almas, Mulher de Branco, a da Calun-
ga, Filha de Omulu, Senhora das Trevas, entre outros (COSTA, 2015). Ex-
plicam nos terreiros que cada uma dessas tem uma história, cada uma tem
um poder, qualidades diferentes nas mãos, uma maneira de se portar e se
movimentar. Cada qual expressa uma força, para cada caso invoca-se uma
pomba-gira diferente. Tanto homens como mulheres incorporam a pomba-
-gira, as forças femininas estão em todos, e a força está além da diferen-
ciação de gêneros, ou seja, trata-se do feminino e não necessariamente de
mulheres. Esse feminino, na cosmogonia afrobrasileira, é força emotiva,
intuitiva, instintiva e vinculada ao selvagem. Desdobra-se em poder de ge-
ração, poder guerreiro, poder de sedução e poder de feitiçaria.
Os poderes presentes nos Orixás preservados pelo segredo de uma
liturgia mágica, calados pela dominação masculina e supremacia branca,
quando aparecem, incomodam. A pomba-gira não é uma gura isolada,
oculta na noite, de modo estritamente profano. Transcendente entre o que é
mais caro e sagrado ao espírito que agrega a humanidade e as divisões so-
ciais, ela porta de todas as forças do feminino autogeradas com Nanã, nas
manifestações de força, belezas e atitudes de Yansã e Oxum, no espiritual
inabarcável dos oceanos de Yemanjá, na transubstanciação de Yewá, nos
sacrifícios de Obá, nos segredos de Otim e em todos os mistérios que, por
ignorarmos a amplitude desta cultura, desconhecemos. Essa pomba-gira
que gargalha, canta, xinga, quebra tabus, expressa o que não se ousa, dança
e gira no corpo palpável, em força imanente. Sua presença na vida brasi-
114 Corpo, políticas e territorialidades
leira vem tirar o corpo da imobilidade, incitando ao movimento e à ação.
Gosta de zombar, debochar, rir de tudo aquilo que as civilidades impõem
como limitação aos homens e às mulheres, atuando diretamente nos cor-
pos. “Os sábios percebiam o espírito da deusa como imanente ao corpo de
todas as mulheres” (WALKER, 2001, p. 70), de modo a poder se dizer que
a pomba-gira trata de um tipo dionisíaco do feminino. Essa gura trabalha
nas regiões em que residem os maiores tabus: amor, morte e sexualidade.
Se ela gosta de brincar, faz pouco caso das civilidades e prefere a liberda-
de; se ela é movimento e ação, não surpreende que a Pombagira jogue e ria
com aquilo que mais desestabiliza a ordem social. Pode-se dizer que Ela,
a Demônia, tão próxima das Deusas, bagunça, literalmente, com os bina-
rismos, com papéis denidos e marcações que determinam corpos, almas e
pessoas como parte de algo.
Desconstruir a lógica binária, partidária, de cunho opositório, impli-
ca romper com lugares marcados. Não se trata de reproduzir classicações
entre dominantes e dominados, excluídos e incluídos, mas localizar as po-
sições dos sujeitos nos discursos por meio do que Foucault apontou como
“sinais de pertencimento”. Essa breve análise mostra, pelas entidades aqui
descritas, as fugas das marcações sociais frente a um sistema moral estabe-
lecido pela lógica dualista. Neste aspecto, os limites das possibilidades de
posicionamento entre ser “do bem” ou ser “do mal” funcionam como me-
canismos de controle na agência dos processos de identicação. Em uma
de suas entrevistas em Microfísica do Poder, Foucault lamenta, após mais
de uma década de trabalho incansável, que sua obra funcione “para alguns
como sinal de pertencimento”, como se ao tratar dos loucos, dos doentes e
dos detentos, estivesse estabelecendo um “lado correto”.
Fazendo uma forma de história sobre a ótica dos excluídos, dos in-
fames, dos execrados, dos diferentes, Foucault não estava promovendo ne-
nhum lugar, tampouco inscrevendo os sujeitos de seus estudos neste ou na-
quele “lado”: “é preciso passar para o outro lado – o “lado correto” – mas
para procurar se desprender destes mecanismos que fazem aparecer dois
lados, para dissolver esta falsa unidade, a natureza ilusória deste outro lado
que tomamos partido” (FOUCAULT, 1996, p. 239). Não há Deus tampou-
co Demônio quando a Figura é analisada em todas as suas facetas. Imagem
Quebra do dual
115Vol I - Subjetividades & Diferenças
do mal por excelência, guras diabólicas, merece atenção porque é por
meio de sua iconograa que alguns elementos relativos ao mal se estabele-
ceram: predominância do preto e do vermelho, guampas, asas de morcego,
hibidrismo animal, pupilas verticais, caninos aados, entre outros. Entre-
tanto, é fácil constatar que diabos e demônios não são as guras malécas
mais recorrentes nas narrativas atuais, sendo preteridos por alienígenas ou
vampiros. Apesar de não serem os malvados “da ocasião”, as guras do
diabo e de seus demônios legaram suas roupagens na construção de muitos
vilões e, quando femininos, não passam indiferentes e causam reações.
As tentações diabólicas e sua ameaça de danação eterna cumpriram
um papel de extrema importância histórica: a disseminação do medo. Se
hoje em dia não é mais o diabo que assusta, mas sim a violência e a crimina-
lidade anunciadas diariamente pelos noticiários, a função do medo é sem-
pre a mesma: acuar e retrair os sujeitos que por ventura ousem ultrapassar
os limites do perigo. Eciente mecanismo de controle, o medo funciona na
linha limítrofe na qual paradoxalmente trafegamos. Na ameaça dos perigos
que colocam em risco nossas almas e nossas vidas, o discurso da salvação é
efetivado juntamente com a danação daquilo que, por desconhecimento, o
ignoto gura como o Mal. A busca de um “lugar seguro”, espaço subjetivo
no qual o “si” pode existir sem ameaças é sempre um eciente mecanismo
para o estabelecimento de regimes discursivos tomados como “verdade”.
Senhor das mentiras, mestre do engano, personicação da destrutividade
deliberada (RUSSEL, 1991, p. 16), o diabo, Satanás, o acusador de Deus,
é o agente fundante das contradições. A verdade absoluta é questionada.
Conhecemos a bipartição do absoluto e a dissolução do que se tinha
como “verdadeiro” porque a serpente, animal das Grandes Mães arcaicas,
uma das gurações do demônio, nos incitou a experimentá-lo. O mito do
paraíso, no qual o homem prova o fruto do conhecimento do bem e do mal,
ilustra o papel do diabo como agente da dualidade que cindiu a humani-
dade, nos afastando da unidade criador/criação experimentada no paraíso.
Dividido e descentrado, o sujeito trará até os dias de hoje as marcas do que
as religiões cristãs e judaicas denominam “pecado original”: nossa atração
por outra verdade, pelo contra-discurso que nos seduz.
As guras sejam elas personicações conceituais ou apresenta-
ções visuais e literárias de forças tanto as sagradas quanto as tomadas
pejorativamente, têm a capacidade de contrapor os ditos que levam à men-
tira total. O que mente é o que impede de vermos o outro lado das coisas,
116 Corpo, políticas e territorialidades
os muitos lados de algo, o que nos faz pensar para além da perspectiva que
nos é oferecida. Para o racionalista, cuja redenção é o pensamento, o mal
é força desconhecida e selvagem, o instinto que não se deixa levar pela
razão. O mal é tudo aquilo que, em menor ou maior intensidade, denota
furor animal ilimitado. Incontrolável, o mal foi compreendido no alvorecer
das ciências, como o inconsciente dominando a consciência. Por outro lado
(até mesmo o mal tem dois lados), a consciência é o próprio conhecimento
do mal. Do ponto de vista psicanalítico, uma vez controlado o mal origina
o recalcamento: a visão ascética do mal como desejo. Mesmo vencido e
exilado para os conns da inconsciência, o mal está sempre presente e a
consciência precisa abstraí-lo sob alguma forma, determinando um modo
de relação. Sem detectar onde tal opositor impede o movimento, de modo
a nunca o conhecermos sem castigos e sem temor, pouco se avança.
Para Foucault, a sociedade é um campo de lutas em que as forças
opositórias dinamizam relações de poder onde posições, mesmo quando
subjugações, são negociadas e intercambiadas. O poder não comporta neu-
tralidades, sua imposição sempre compreende certos antagonismos, mas
sempre num embate de forças. Nesse sentido, o mito do herói versus vilão,
o do amor sacro versus o profano, gura uma luta pelo poder que mostra o
quanto as posições de sujeito nunca são imparciais. A busca de identica-
ção com o herói, a linda princesa, a luz, é o desejo, problemático, de estar-
mos do “lado correto”. O problema é que esse “lado bom” é innitamente
mutável e depende dos múltiplos fatores que denem as subjetividades.
Apesar da complexidade que envolve os processos de subjetivação,
somos ensinados a pertencermos ao “bem” e lutarmos por ele sempre que
necessário, mesmo quando suas convicções estejam aniquilando outros e
nitidamente fazendo “mal” a quem aos “bons” identiquem como “maus”.
Aprendemos que o “bem” sempre vence, pois os poderes de “Deus”, da
ciência ou da moral predominante, tomados como o Poder de todos os
poderes, sempre estão “certos”. As implicações desta miticação, inde-
pendentemente da posição identitária em que nos colocamos, envolvem
a defesa de nossas verdades e uma postura ética quase sempre dualista:
“anal, de que lado você está?”. Por isso é que estamos constantemente
procurando alguma coisa para culpar, para servir de bode expiatório e cum-
prir com a função de “mau”. Detectar o mal em alguma coisa, sujeito ou
sistema é um recurso para aliviar a complexidade dos problemas que nos
circundam e a impossibilidade de resoluções que a maquinaria civilizatória
117Vol I - Subjetividades & Diferenças
pode apresentar. Desmiticar o mal e torná-lo inexistente é como arrancar
a mola propulsora de todo o processo e não ter como justicar a barbárie, o
erro, a ignorância, a estranheza, a selvageria, a anormalidade, a desordem.
A educação perderia todo o seu sentido, tudo seria “bom” neste universo
indistinto no qual não temos nada a vencer, mais nada para ensinar e tam-
pouco aprender, onde não existe a necessidade de combatermos e fazermos
nossas verdades preponderarem. Orixás e yabás são guras polifacetadas
que rompem com tais preponderâncias.
Mitos, mesmo quando aparatos difusores de “verdades”, traçam este
campo no qual todo mal é ilusório, espetacular e, por vezes, indolor. Nosso
mundo “real” está intimamente imbricado com gurações míticas, guras
cujo impacto em nossas vidas tem sido cada vez maior. Ao mesmo tem-
po em que a cultura visual midiática, com sua enunciação contundente e
breve, dissemina as clássicas posições antagônicas das velhas narrativas,
aprende-se que as verdades são extremamente relativas e que podemos nos
servir delas de acordo com os interesses da ocasião, sem deixarmos de ser
corretos e do “bem”. Sobre esta incoerência ética se constitui um modo de
existência restritivo e belicoso, perpetuado nas formas binárias de com-
preender o mundo, dividindo-o entre mocinhos e bandidos, santas e putas.
Os panteões multifacetados, com diversidades de forças, deidades e
entidades com ensinamentos vários, Pombagiras, Macunaímas, Estamiras,
Zés Pelintras e Ciganas do Pandeiro aludem a identidades não mais insti-
tuídas sobre o que se é e o que não se é, entre ser isto e ser aquilo, mas sim
sobre isto e mais aquilo, sobre nem isto e nem aquilo, sobre outra coisa,
diferente. Não mais a diferença entre Bem e Mal, mas singularidades de
devires que escapam a qualquer aprisionamento. Uma subjetividade além
dos processos identicatórios na qual a ética, ao invés de ser construída so-
bre conceitos opostos e excludentes, que aceitam somente um único mito,
se pautará na impossibilidade de uma versão. Produzida por afetos inter-
cambiáveis, existe aquela versão que pistas para todas as demais e que
compreende manifestações variadas da verdade. Em nossas pesquisas em
torno do feminino (ZORDAN, 2005, 2017, 2019, 2021; NARVAZ, 2005,
2009, 2021), especialmente quanto ao tema do presente ensaio, o qual
descreve relações que ancoram mitos de tradição oral em imagens, uma
composição multirreferencial de autores possibilita trabalhar com pontos
estratégicos nunca reduzidos à lógica dual.
Nesse sentido, temos investigado o que as guras e narrativas míti-
118 Corpo, políticas e territorialidades
cas têm a nos dizer sobre o feminino, que modos de subjetivação nos ofere-
cem, com suas pedagogias, seus rituais, suas magias e bruxarias, suas dan-
ças, suas músicas, seus gestos. Invocar suas forças possibilita a invenção
de novos modos de habitar o corpo, a Terra, fazer mundos, descolonizando
o pensamento e desconstruindo as formas binárias hegemônicas de pensar
corpos, sexos, gêneros, sobretudo sobre as mulheres e sobre o feminino,
com suas forças e magias.
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122 Corpo, políticas e territorialidades
Angélica Vier Munhoz
Inauã Weirich Ribeiro
Jeferson Cristian Zick Camargo
TTerritorialidades da docência:
Um olhar para o arquivo do
Projeto Objetos de Pensar
123
Este texto, que conta com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), está atrelado ao Grupo
de Pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq), existente desde
2013 e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ensino da Univer-
sidade do Vale do Taquari - Univates. Tem como objetivo apresentar uma
pesquisa que vem sendo produzida com o material empírico criado pelo
Projeto Objetos de Pensar nos anos de 2019 e 2020. O referido projeto foi
desenvolvido pelo grupo de pesquisa CEM, em parceria com o Projeto de
Extensão Pensamento Nômade e a Área de Artes da Univates. Teve como
objetivo propor a criação de perguntas/questões/indagações/problematiza-
ções que não necessariamente precisem de respostas e que coloquem o
pensamento a se mover, saindo dos lugares comuns, dos clichês, das coisas
já ditas e pensadas no campo educacional.
A partir desse objetivo, foi publicado um livro, Objetos de pensar:
exercícios para a docência (MUNHOZ et al., 2020), com cinquenta obje-
tos de pensar. Desses objetos, dezesseis foram experimentados em trinta
e duas ocinas. Essas ocinas foram desenvolvidas em escolas e Univer-
sidades, com estudantes e professores de ensino básico, ensino superior e
pós-graduação. Além das ocinas, foi realizada uma exposição com seus
resultados e objetos na Galeria Sesc Lajeado, no período de 16 de outubro
a 1 de dezembro de 2019. Todas as atividades e materiais produzidos no
projeto objetos de pensar, diários de ocinas, exercícios realizados nas
ocinas e exposição passaram por um processo arquivístico. Destaca-se
que, no contexto pandêmico causado pelo vírus SARS-CoV-2, foi lançado
um segundo projeto, intitulado Objetos de Pensar na Pandemia. Os 40 ob-
jetos inscritos foram publicados no livro “Objetos de pensar na pandemia:
exercícios para indagar/perdurar a docência” (MUNHOZ et al., 2020).
O processo arquivístico realizado com o material do primeiro Pro-
jeto Objetos de Pensar será apresentado nas próximas seções. Iniciamos
abordando o método de arquivo de Michel Foucault (2020) sob a pers-
pectiva topológica dos enunciados (DELEUZE, 2005). Nessa via, toma-
mos o arquivo como um território onde os enunciados se movimentam por
meio de ações verbais. Seguimos com a apresentação dos procedimentos
de arquivamento e arquivização desenvolvidos por Aquino e Val (2018).
Posteriormente, expomos o processo de arquivização de imagens de do-
cência, cujo arquivo se desdobrou em um novo processo de arquivização
dos verbos que traçam movimentos, produzindo territorialidades em tor-
no de “docência”, “docente”, “professor(a)” e “prof(a)”. Na última seção,
124 Corpo, políticas e territorialidades
Nesta seção, apresentamos o modo como compreendemos o arqui-
vo em Michel Foucault, a partir da obra A arqueologia do saber (2020).
O arquivo pode ser entendido como “a lei do que pode ser dito, o sistema
que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singula-
res” (FOUCAULT, 2020, p. 158); em outras palavras, o arquivo pode ser
um conjunto de materialidades, mas também aquilo que faz funcionar de-
terminados discursos. Os discursos, por sua vez, compõem determinadas
territorialidades, as quais demandam um mapeamento das repetições enun-
ciativas, dos traços, das fronteiras, das linhas do arquivo.
Essas territorialidades compostas em um arquivo expressam-se per-
formativamente por mínimos movimentos. Os movimentos das territoriali-
dades exprimem intensidades por meio de gestualidades enunciativas, que
acabam por dar margens a um espaço intensivo. Assim, podemos compre-
ender o arquivo como um território onde os enunciados passam a ser toma-
dos como intensidades que ali se movimentam, em uma heterotopologia
(FOUCAULT, 2013).
Nessa abordagem arquivística, o arquivo funciona em uma pers-
pectiva topológica dos enunciados; uma “topologia dos enunciados, que
se opõe à tipologia das preposições e à dialética das frases” (DELEUZE,
2005, p. 18). Os enunciados, nesse sentido, passam por um processo de
localização no território do arquivo. Ao descrevê-los, buscamos desenhar
“as margens povoadas de outros enunciados” (FOUCAULT, 2020, p. 118),
compreender as intensidades que produzem um território-arquivo.
No território de um arquivo foucaultiano, há um front de análise
(FOUCAULT, 2020), em que é preciso haver estratégias de rastreamento
dos enunciados. Para tal tarefa, tomamos os procedimentos de arquivamen-
to e arquivização de Aquino e Val (2018). Esses procedimentos permitem
que nos apropriemos do material empírico do Projeto Objetos de Pensar
como um território e localizemos os enunciados-intensidades que nele se
expressam. Enquanto território, o arquivo também é corpo que, permeado
por discursividades, se faz lugar (FOUCAULT, 2013).
Arquivo-Corpo-Território
descrevemos os principais movimentos da docência traçados no arquivo
criado.
125Vol I - Subjetividades & Diferenças
O procedimento de arquivamento (AQUINO; VAL, 2018) possibi-
lita o rastreamento dos enunciados no território-arquivo, de maneira que
“corresponde, portanto, à tarefa de reordenação transversal das fontes, por
meio das (re)montagens das lacunas discursivas em torno de determina-
dos problemas concretos abrigados no e pelo arquivo” (AQUINO; VAL,
2018, p. 49). O arquivamento atua como uma espécie de desterritorializa-
ção (DELEUZE; GUATTARI, 1992) dos discursos, tomando a posição dos
enunciados e criando, assim, um novo mapa.
Esse processo de arquivamento funciona a partir dos problemas
demarcados pelos pesquisadores, cujo interesse varia no encontro com o
arquivo. No caso do Projeto Objetos de Pensar, o material empírico foi
reorganizado, desterritorializado, a partir dos objetos de pensar utilizados
nas ocinas. Dessa forma, criamos um arquivo em que foram indicadas
as materialidades repetíveis (FOUCAULT, 2020), tais como: os próprios
Objetos aplicados, anotações capturadas por foto, fotos das ocinas, fotos
do material produzido pelas/os participantes, desenhos, diários de campo
produzidos pela equipe do projeto, minicartazes, cartazes, post its, vídeos,
cartas e tirinhas com frases utilizadas em dinâmicas.
Esse processo de arquivamento possibilitou desterritorializar os
enunciados das materialidades repetíveis, o que culminou em uma reter-
ritorialização de um arquivo de imagens de docência. O arquivamento
funcionou como uma desterritorialização dos discursos e possibilitou uma
reterritorialização arquivística, visto que uma “desterritorialização absolu-
ta não existe sem reterritorialização.” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.
131). Com a desterritorialização-arquivamento, pudemos reterritorializar o
arquivo a partir de imagens de docência, por um procedimento de arquivi-
zação (AQUINO; VAL, 2018).
A arquivização funciona como uma díade de imaginação-monta-
gem (AQUINO; VAL, 2018) e reterritorializa os discursos do arquivo. A
“arquivização oportuniza o encontro não somente com os papéis inertes
da história, mas com potências ativas, na qualidade de pontos de inexão
que mobilizam e produzem ressonâncias, dada sua capacidade de produzir
desvio” (AQUINO; VAL, 2018, p. 50, grifo nosso). Em um primeiro mo-
vimento de arquivização, tomamos o desvio das “imagens de docência”.
As “imagens de docência” foram utilizadas como um princípio or-
ganizador, de modo que compomos um novo arquivo de enunciados, que
produziram um novo território arquivístico. “A desterritorialização de um
126 Corpo, políticas e territorialidades
tal plano não exclui uma reterritorialização, mas a arma como a criação
de uma nova terra por vir” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 117). A ar-
quivização-reterritorialização permitiu uma dobra do arquivo, uma nova
terra, com a qual produzimos um artigo já submetido em revista cientíca .
Esse novo território tornou possível a criação de mais um processo
de arquivização. Em outras palavras, este texto é um terceiro movimento
arquivístico, criado a partir do desvio mobilizado pelas potências ativas
(AQUINO; VAL, 2018) que se movimentam no arquivo. O arquivo das
imagens de docência do Projeto Objetos de Pensar foi reorganizado com
base nos enunciados que continham imagens de docência, docente, profes-
sor(a), prof(a).
Quadro 1 - Arquivo das imagens de docência do
Projeto Objetos de Pensar.
Objeto/Ocina Imagem de docência
Todos os professores muito prestativos durante o vídeo;
Uma profa disse: “Para, não ca olhando. Não gosto que me olhem
enquanto escrevo”, e foi escrever em uma sala ao lado;
1.2
Descrição ocina
Durante a nossa jornada, aprendemos que o professor auxilia na cons-
trução do conhecimento.
O professor é um intermediador desse conhecimento.
1.3
Carta 3
Fonte - Elaborado pelos autores, 2021.
Como é possível observar no quadro acima, o arquivo ganhou outro
território, onde as imagens de docência reordenaram o material empíri-
co. A partir dessa desterritorialização, produzimos uma nova arquivização,
que será descrita na próxima seção.
53 - O título do artigo submetido foi “Arquivamento e arquivização de imagens poéticas de docência no arquivo do
Projeto Objetos de Pensar”.
53
Arquivização no território das imagens de docência
No corpo, experimentamos e arquivamos os acontecimentos – o
continuum variável de nossas existências –, traduzidos em ações de com-
127Vol I - Subjetividades & Diferenças
bate contra o pensamento representacional, a autodestruição, as subjeti-
vações instituídas. Porém, ao arquivarmos no corpo os acontecimentos e
nossas experimentações, também o tornamos um vetor de exploração dos
limites e das possibilidades gestuais. Então, como experimentadores que
somos, o que nos interessa é o verbo. Como diz Deleuze (1998, p. 77), “os
verbos no innitivo são devires ilimitados”.
Em cada conguração espaço-temporal, o corpo pode arquivar e, si-
multaneamente, pôr em movimento determinadas ações verbais, que tam-
bém podem ser gestualidades. Nesse sentido, ao arquivar o corpo se torna,
ele mesmo, arquivo de gestualidades. “O corpo, em suma, como arquivo
e arquivista de gestos instauradores da existência” (MUNHOZ; AQUINO,
2020, p. 45). Tal como arma Lepecki (2015, p. 35, tradução nossa): “há
uma vontade de arquivar, e arquivar também pode ser experimentar”.
A partir da arquivização das imagens de docência do Projeto Ob-
jetos de Pensar, buscou-se suspender os verbos que giram em torno das
palavras “docência”, “docente”, “professor(a)” e “prof(a)”. Essas palavras
funcionaram como territorialidades no arquivo, as quais se movimentam
por meio de verbos. Assim, enquanto territorialidades, não abordamos es-
sas imagens (docência, docente, professor/a, prof/a) como sujeitos, visto
que, em uma perspectiva nietzschiana, este tal substrato – “sujeito” – não
existe; “não existe ‘ser por trás do fazer, do atuar, do devir; ‘o agente’ é
uma cção acrescentada à ação a ação é tudo.” (NIETZSCHE, 2009, p.
33). Nesse modo de pensar, os nomes, substantivos, sujeitos, são posições
(FOUCAULT, 2020), e não “essências” de um ser.
Ao localizarmos as posições no território do arquivo, o que passa a
interessar-nos são as intensidades que as territorialidades expressam. Com
isso, identicamos os verbos colados às palavras “docência”, “docente”,
“professor(a)” e “prof(a)”, e não qualquer verbo expresso nas imagens.
Essas quatro palavras são cções acrescentadas aos diversos verbos que
se reterritorializam nas imagens. Os verbos, portanto, falam dos movimen-
tos de docência enquanto territorialidades que se des-re-territorializam em
meio ao arquivo de imagens de docência do Projeto Objetos de Pensar.
Tomando o arquivo como território, perguntamo-nos: de que modos
a docência se des-re-territorializa no arquivo de imagens de docência do
Projeto Objetos de Pensar? Procedemos, então, a uma leitura de todas as
imagens de docência, a m de localizar os verbos que faziam a docência,
o docente e o(a) professor(a)/prof(a) se movimentarem. Buscamos mapear
128 Corpo, políticas e territorialidades
Quadro 2 - Exemplo de critério de exclusão de imagens.
esses verbos, utilizando o seguinte critério: excluir imagens cujos enuncia-
dos não continham verbos associados com os termos – “docência”, “docen-
te”, “professor(a)” e “prof(a)”. No quadro abaixo, por exemplo, podemos
observar que na imagem excluída havia a nomeação do termo “professo-
res”, contudo, o verbo da oração não se refere a um movimento da docên-
cia. Já na imagem incluída, o termo “professor” não é o sujeito da oração,
mas o verbo “solicitado” denota uma ação executada pelo professor.
Imagem excluída Imagem incluída
Quantos estudantes conseguem ler durante o
nal de semana? Férias ou menos um livro so-
licitado pelo professor? (1.3 Carta 13).
Havia empatia entre alunos e professores?
(1.3 Carta 1).
Fonte - Elaborado pelos autores, 2021.
Em alguns casos, havia “dobradinhas verbais”, ou, gramaticalmente
falando, locuções verbais. Nesses casos, tomamos o verbo principal da lo-
cução para traçar a linha do movimento realizado pela docência.
Quadro 3 - Arquivo dos verbos localizados.
Dizer Preocupar Esforçar Despertar Invcentivar
Decidir Falar Escrever Prestar Auxiliar
(não) Ser Mexer Acreditar Mudar Solicitar
Fazer Interessar Usar Resgatar (Re)Pensar
Mediar Aprender Reetir Oportunizar Sentar
Perguntar Saber Cochichar Exibir Apresentar
Enxergar Absorver Ter Chamar Aderir
Ensinar Trabalhar Desistir Motivar Seguir
Revolucionar Promover Modicar Sentenciar Censurar
Entrosar Participar Compartilhar Assinar Analisar
Buscar Desacomodar Conformar Dirigir Ler
Estar Variar Receber Virar Conseguir
Explicar Pegar Polinizar Sentir Trançar
Sonhar Marcar Carregar Ir Comentar
Dedicar Chorar Demorar Pedir 74 verbos
Fonte - Elaborado pelos autores, 2021.
129Vol I - Subjetividades & Diferenças
Conforme o quadro acima, foram identicados 74 verbos diferentes
que traçam linhas dos movimentos da docência no território do arquivo
do Projeto Objetos de Pensar. Desses verbos, alguns se repetiram muitas
vezes, enquanto outros apareceram uma única vez. Os verbos que não se
repetiram foram um total de 54: mediar, enxergar, revolucionar, preocupar,
falar, mexer, interessar, saber, absorver, promover, esforçar, escrever, acre-
ditar, usar, reetir, cochichar, desistir, modicar, prestar, mudar, resgatar,
oportunizar, exibir, chamar, motivar, sentenciar, solicitar, apresentar, ade-
rir, seguir, censurar, entrosar, buscar, explicar, sonhar, dedicar, participar,
desacomodar, variar, pegar, marcar, chorar, compartilhar, conformar, po-
linizar, carregar, demorar, assinar, dirigir, virar, pedir, analisar, conseguir
e trançar.
Fonte - Elaborado pelos autores, 2021.
Ser (não ser)
Dizer
Ler
Auxiliar
Fazer
(Re)Pensar
Ter
Despertar
Incentivar
Trabalhara
Estar
Ensinar
Decidir
Aprender
Sentar
Receber
Sentir
Ir
Comentar
Perguntar
5 10 15 20 250
Tabela 1 - Verbos que se repetem nas imagens.
130 Corpo, políticas e territorialidades
Já os verbos que se repetiram foram um total de 20, como podemos
observar no gráco acima. São eles: ser (não ser), dizer, ler, auxiliar, fa-
zer, (re)pensar, ter, despertar, incentivar, trabalhar, estar, ensinar, decidir,
aprender, sentar, receber, sentir, ir, comentar, perguntar. O verbo (não) ser
é o que mais se repetiu: 22 vezes. O segundo verbo que mais se repetiu
foi dizer, que apareceu sete vezes. O verbo ler apareceu cinco vezes. Os
verbos auxiliar, fazer, (re)pensar e ter apareceram quatro vezes. Os verbos
despertar, incentivar, trabalhar e estar apareceram três vezes. Os verbos
ensinar, decidir, aprender, sentar, receber, sentir, ir, comentar e perguntar
se repetiram apenas duas vezes.
Intensidades de Docência ou des-re-territorialização?
Após identicarmos as intensidades que se expressam no arquivo,
perguntamo-nos: se ação e cção não são duas coisas separadas, não fun-
cionam em uma relação de causa e efeito, de que modo as intensidades de
docência são expressas no território do arquivo? Essa pergunta permitiu-
-nos, em um primeiro movimento, observar uma diferença entre “docên-
cia/docente” e “professoras(es)”. No arquivo das Imagens de Docência do
Projeto Objetos de Pensar, a territorialidade docente que mais é investida é
a de “professor(a)”. Podemos armar isso porque, para 161 repetições do
descritor “prof” (prof, professor, professores, profe, professora, psico-pro-
fe, profa), há apenas sete repetições do descritor “doc” (docente, docentes
e docência).
Antes de continuarmos a pensar sobre as diversas intensidades de
“professores(as)”, gostaríamos de olhar para a territorialidade da “docên-
cia/docente”, uma vez que essas territorialidades se repetiram poucas ve-
zes. Observam-se, no quadro abaixo, as sete imagens que mostram movi-
mentos a partir do termo “docente” ou “docência”. No quadro, dividimos
as imagens que emergiram junto a “docente(s)” e “docência”, sendo que,
para o primeiro, temos cinco imagens e, para o segundo, apenas duas.
Ao buscar a repetição “doc” no arquivo, a primeira imagem do qua-
dro acima se reagrupou junto da territorialidade “docente”; entretanto, essa
imagem foi eleita no arquivo em virtude do termo “psico-profe”, que está
associado ao verbo “ser”. Observa-se que aqui o “docente” está associado
a um movimento de “encontro-inspiração”, sendo que o sujeito da ima-
gem, “eu”, se encontra associado à cção de “ser uma psico-profe”. Sobre
131Vol I - Subjetividades & Diferenças
o tema do verbo “ser”, haverá uma seção mais adiante na qual se pode
observar que o “ser”, nesse procedimento arquivístico, toma um caráter de
movimento, não de essência, de forma que “psico-profe” é uma territoriali-
dade de docência no corpo-arquivo. A segunda e a terceira imagens do qua-
dro também remetem ao verbo “ser”, e há um “jeito de ser” docente, uma
possibilidade de “ser” a(o) docente, coisa que discutiremos mais adiante.
Quadro 4 - Territorialidade de docência/docente.
Fonte - Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
Docente(s)
Do encontro inspiração docente anal, você é a ‘culpada’ de eu ser uma psico-profe hoje.
(3.3 Carta 2).
Seu jeitinho quieto foi me cativando, e seu modo de olhar o mundo e, principalmente, encarar
os processos de ensino e aprendizagem me mostraram outro jeito de ser docente (3.3 Carta
2).
Na cadeira da sua frente, convide para sentar a pessoa que te inspirou a ser a(o) docente que
és hoje. (3.1 Objeto).
Após a leitura individual, os docentes recebem a segunda folha, contendo a primeira senten-
ça, decorrendo dez minutos para a escrita, o segundo relato é entregue, acompanhado de
mais olhares desconados. (2.2 Descrição ocina).
É essa escuta e cuidado ao (à) outro (a) que carrego comigo ou tanto na minha prática
docente (3.3 Carta 2).
O que a docência faz também pode ser arte. (4.1 Objeto).
Como a sua docência trança linhas? (6.1 Objeto).
Docência
A quarta imagem coloca a territorialidade docente em um lugar de
recebimento, pois o docente estava em uma posição de participante da
ocina. Percebe-se que esta posição de sujeito é dada pelo ocineiro que
descreveu a ocina (característica do tipo de materialidade repetível: 2.2
descrição ocina, na qual a imagem emergiu). O docente aqui recebe uma
folha em que há uma sentença, tendo ele 10 minutos para escrita. Esse do-
cente, ao receber uma folha, põe-se a escrever depois de ler; é recebedor e
escritor e leitor. A quinta imagem, por sua vez, coloca o docente em uma
posição da prática, uma prática carregada com um “eu” que escuta e cuida.
O docente é uma territorialidade que tem uma prática e que escuta e que
cuida.
132 Corpo, políticas e territorialidades
As duas imagens de “docência” estão associadas aos verbos “fazer”
e “trançar”. Interessante notar que a forma “docência” emergiu apenas na
materialidade de “objeto”, ou seja, não foi produzida pelos participantes
das ocinas do Projeto, mas por autores de dois objetos diferentes. Essa
forma emerge junto de imagens com arte. O primeiro enunciado, na for-
ma armativa, põe o fazer da docência como arte, enquanto o segundo
enunciado, na forma interrogativa, trata a docência como uma intensidade
artesanal que “trança linhas”.
A “docência” ou “docente”, enquanto territorialidades, foram ex-
pressas como “inspiração”, “jeito de ser”, “ser”, “recebem folhas”, “práti-
ca”, “arte” e algo que “trança linhas”. Nas poucas vezes em que emergiram,
não houve repetições enunciativas. Entretanto, ao serem colocadas junto
dos descritores “prof, professor, professores, profe, professora, psico-pro-
fe, profa”, a repetição enunciativa do verbo “ser” reaparece. Na próxima
seção, descrevemos os modos pelos quais a intensidade do “(não) ser”
emergiu no arquivo de imagens de docência do Projeto Objetos de Pensar.
“Ser” ou “Não ser”: Eis o (a) professor (a)
No texto “Geolosoa”, de Deleuze e Guattari (1992), os lóso-
fos apresentam uma similaridade entre Hegel e Heiddeger ao abordarem a
origem da losoa ocidental: a Grécia Antiga. Nessa origem, a diferença
grega que permite o emergir de uma losoa ocidental seria o verbo ser.
Desterritorializado, o grego se reterritorializa sobre sua
própria língua e seu tesouro linguístico, o verbo ser. Assim,
o Oriente não está antes da losoa, mas ao lado, porque
ele pensa, mas não pensa o Ser. E a losoa mesma passa
menos por graus do sujeito e do objeto, evolui menos do
que habita uma estrutura do Ser (DELEUZE; GUATTARI,
1992, p. 124)..
O “ser” como verbo em uma estrutura linguística aparece na his-
tória ocidental desde a Antiguidade; ao usarmos este verbo, fazemo-nos
ocidentais. Não obstante, “não existe absolutamente o ‘ser e depois a re-
lação. Existe o ‘ser’, o verbo cujo ato cuja transitividade se formam em
relação(ões), e somente dessa maneira” (NANCY, 2017, p. 25). Mesmo
que ocidentais, ao distanciarmo-nos de uma imagem de pensamento dog-
133Vol I - Subjetividades & Diferenças
mática do ser, este ser deixa de ser “ser em-si”. “A copresença e a aparição
desviam juntas o em-si e a construção: ‘ser não é mais em-si, mas conti-
guidade, contato, tensão, torção, cruzamento, agenciamento.” (NANCY,
2017, p. 40).
Esse verbo “ser”, que não é compreendido aqui como dotado de
uma essência, passa a ser entendido como intensidade que se expressa no
arquivo, uma intensidade de um corpo-território, um enunciado que se mo-
vimenta por meio de discursos. Dos enunciados-intensidades que emergi-
ram no território do arquivo das Imagens de Docência do Projeto Objetos
de Pensar, o verbo “ser” e sua forma negativa “não ser” repetiram-se 22
vezes em 20 imagens diferentes. Foi o verbo que mais se repetiu em torno
das territorialidades “docente”, “docência”, “professoras(es)”. O segundo
verbo que mais se repetiu foi “dizer”, aparecendo sete vezes somente.
Essa disposição verbal chamou-nos a atenção, visto que tomar o
verbo apenas como uma ação nos faria, gramaticalmente, ignorar o verbo
“ser”, já que este não é considerado um verbo de ação. Porém, tomado
como intensidade que se expressa no território do arquivo, emerge como a
força mais expressiva. “Será que justamente nisso não somos – gregos?”
(NIETZSCHE, 2016, p. 31). Segue abaixo quadro com as imagens de do-
cência nas quais o verbo “ser” emergiu.
Quadro 5 - As formas do verbo ser que emergiram no arquivo.
O professor é um intermediador desse conhecimento, (1.3 Carta 3).
Assim acredito que o professor não é o dono do saber, (1.3 Carta 6).
No ambiente escolar, deve ocorrer a troca de conhecimentos entre professor e aluno, estes
constroem juntos. O professor não é o dono do saber! (1.3 Carta 19)
.
Quem sou eu como professora? (1.3 Carta 53).
A primeira inquietação diz respeito a um fazer pedagógico pautado em uma escuta qualicada
e a partir disso pergunto para vocês, é possível uma escola onde o aluno seja o professor?
(1.3 Carta 60).
Este pedido, súplica e angústia me despertou para o tipo de professor que tenho sido. (1.3
Carta 60).
Sou professor de Língua Espanhola, do Instituto XXXXXXXXXX, pertencente à Universidade
XXXXXXXXXX, localizado no interior do estado do Amazonas. (1.3 Carta 66).
134 Corpo, políticas e territorialidades
Fonte - Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
O professor não é o dono do saber (1.4 Tirinha 1).
A partir disso, comecei a me questionar sobre a função de ser professor, e ser mesmo, com
letra maiúscula, se meu papel realmente era só ensinar a minha disciplina e não perceber as
situações/problemas encarados por ele. Sabe, ser professor é ser pai e mãe também, é abra-
çar, conversar, interagir sobre os medos do futuro, é ACOLHER, [...] (2.3 Carta 13).
Na cadeira da sua frente, convide para sentar a pessoa que te inspirou a ser a(o) docente que
és hoje. (3.1 Objeto).
É aquele que, por anos, de muitas pessoas, se tornou a referência de sabedoria, da desco-
berta, do questionamento que leva ao movimento. (3.1 Objeto).
(professor) É o condutor de muitas viagens. (3.1 Objeto).
“vou ser tudo, menos professora”, e acaba sendo professora; (3.2.1 Descrição ocina).
prática de hoje - quem estou sendo como professora?; (3.2.1 Descrição ocina).
Por que acreditamos que o professor é um inventor da sua prática. (3.1 Objeto).
Talvez, o meu percurso de hoje, professora que trabalha com direitos e diferenças, só tenha
sido assim por aquele encontro potente e de afetos revolucionários que fez e faz pulsar a pro-
fessora que posso ser, anal, estamos sempre transformando aquilo que somos (3.3 Carta 1).
Depois não quis mais ser professora, tive outras professoras inspiradoras e outras nem tanto,
principalmente aquelas que me diziam que “éramos todos iguais” e que “os direitos e deveres
eram iguais”. (3.3 Carta 1).
“serei tudo, menos profe” (3.3 Carta 2).
Seu jeitinho quieto foi me cativando, e seu modo de olhar o mundo e, principalmente, encarar
os processos de ensino e aprendizagem me mostraram um outro jeito de ser docente (3.3
Carta 2).
independentemente do curso que eu faria, eu seria profe. (3.3 Carta 2).
Do encontro – inspiração docente, anal, você é a “culpada” de eu ser uma psico-profe hoje.
(3.3 Carta 2).
Como podemos observar acima, o verbo “ser”, associado às terri-
torialidades indicadas mais acima, emergiu nas materialidades de carta,
objeto, tirinha e descrição da ocina. Das 20 imagens que emergiram do
arquivo; 14 são da materialidade carta; uma imagem emergiu na materiali-
dade de tirinha; quatro imagens em materialidade objeto de pensar; e duas
imagens em descrição de ocina. Essas cartas são materiais empíricos pro-
duzidos nas ocinas a partir de dois objetos de pensar diferentes, os objetos
135Vol I - Subjetividades & Diferenças
“Os jovens e as funções da escola” e “A artista está presente”.
O verbo “ser” aparece de forma auxiliar, conjugado e negativo. As
formas que apareceram nas imagens foram: é, não é, sou, seja, tenho sido,
inspirou a ser, vou ser, acaba sendo, estou sendo, somos, jeito de ser e
seria. As territorialidades em torno das quais o verbo aparece foram: “pro-
fessor(a)”, “professor(es)”, “profe”, “docente” e “psico-profe”. Em torno
da territorialidade “docente”, especicamente, apareceram duas formas,
enquanto “ser docente” e “jeito de ser docente”.
Em relação à forma do “(não) é” (re) selecionamos as sete imagens
de docência que apresentamos no quadro abaixo.
Quadro 6 - Na forma do (não) é.
O professor é um intermediador desse conhecimento, (1.3 Carta 3).
Assim, acredito que o professor não é o dono do saber, (1.3 Carta 6).
No ambiente escolar, deve ocorrer a troca de conhecimentos entre professor e aluno, estes
constroem juntos. O professor não é o dono do saber! (1.3 Carta 19).
O professor não é o dono do saber (1.4 Tirinha 1).
É aquele que, por anos, de muitas pessoas, se tornou a referência de sabedoria, da desco-
berta, do questionamento que leva ao movimento. (3.1 Objeto).
(professor) É o condutor de muitas viagens. (3.1 Objeto).
Por que acreditamos que o professor é um inventor da sua prática. (3.1 Objeto).
Fonte - Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
(Re)suspendido, (re)arquivizado, (re)territorializado, o “(não) é”
permitiu-nos observar os atravessamentos que o verbo compôs nas ma-
terialidades de carta, tirinha e objeto. A forma do “não é” emergiu duas
vezes, repetida no discurso “o professor não é dono do saber”. De uma ter-
ritorialidade que “não é dona do saber”, o professor emerge como um “in-
termediador desse conhecimento”, que “troca” ou “constrói” em conjunto
com “aluno”. Tornou-se “referência de sabedoria, da descoberta, do ques-
tionamento que leva ao movimento”. O professor “é o condutor de muitas
viagens” e “um inventor da sua prática”. A incerteza entre ser e (não) ser
professor aparece na forma de pergunta e também na forma de armação,
como pode ser visto no quadro 7.
136 Corpo, políticas e territorialidades
A forma pergunta aparece em três imagens, mas incertezas e ques-
tionamentos sobre ser professor emergiram em outras seis imagens:
Quadro 7 - A incerteza entre ser e não ser professor.
Fonte - Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
A incerteza em forma de pergunta
Quem sou eu como professora? (1.3 Carta 53).
A primeira inquietação diz respeito a um fazer pedagógico pautado em uma escuta qualicada
e a partir disso pergunto para vocês, é possível uma escola onde o aluno seja o professor?
(1.3 Carta 60).
prática de hoje - quem estou sendo como professora? (3.2.1 Descrição ocina).
Este pedido, súplica e angústia me despertou para o tipo de professor que tenho sido. (1.3
Carta 60).
A partir disso, comecei a me questionar sobre a função de ser professor, e ser mesmo, com
letra maiúscula, se meu papel realmente era só ensinar a minha disciplina e não perceber as
situações/problemas encarados por ele. Sabe, ser professor é ser pai e mãe também, é abra-
çar, conversar, interagir sobre os medos do futuro, é ACOLHER, [...] (2.3 Carta 13).
“Vou ser tudo, menos professora” e acaba sendo professora; (3.2.1 Descrição ocina).
Talvez, o meu percurso de hoje, professora que trabalha com direitos e diferenças tenha
sido assim, por aquele encontro potente e de afetos revolucionários que fez e faz pulsar a pro-
fessora que posso ser, anal estamos sempre transformando aquilo que somos (3.3 Carta 1).
Depois não quis mais ser professora, tive outras professoras inspiradoras e outras nem tanto,
principalmente aquelas que me diziam que “éramos todos iguais” e que “os direitos e deveres
eram iguais”. (3.3 Carta 1).
“serei tudo, menos profe” (3.3 Carta 2).
A incerteza em forma de armação
O quadro acima foi dividido em duas partes. A primeira parte apre-
senta as perguntas enquanto interrogações que emergiram no arquivo. Em
duas das interrogativas, o verbo implica em uma questão existencialista,
nas quais se questiona: “Quem sou eu como professora?” e “quem estou
sendo como professora?”. Na segunda interrogação, por sua vez, a pergun-
ta ‘quer transformar o aluno em professor: “é possível uma escola onde o
aluno seja o professor?”.
A segunda parte, a questão do “ser professor”, exibe outras formas
de pôr as incertezas. Nesse sentido, houve um movimento que “despertou
para o tipo de professor que tenho sido”, “comecei a me questionar sobre
a função de ser professor” ou algo que “faz pulsar a professora que posso
ser”. Outra forma que emergiu foi a possibilidade de ser professora, em que
posso “ser tudo, menos professora e acaba sendo”, e, “serei tudo, menos
137Vol I - Subjetividades & Diferenças
profe”. Nessa forma, também houve a decisão de que “depois não quis
mais ser professora”.
Reterritorialização (Considerações nais)
Este texto partiu de um arquivo de imagens da docência produzido
em meio ao material empírico do Projeto Objetos de Pensar. As imagens da
docência foram tomadas como territorialidades de um território-arquivo.
As territorialidades “docência”, “docente”, “prof(a/e)” e “professor(as/es)”
funcionaram como intensidades que se expressaram por meio de verbos.
Foi encontrado um total de 74 intensidades, sendo que, destas, apenas 20
se repetiram. Destas 20, a que mais se expressou foi o “(não) ser”. Desse
modo, podemos armar que, nas imagens de docência do Projeto Objetos
de Pensar, o problema do “(não) ser” professor apareceu em evidência.
Isso poderia ajudar-nos a pensar que talvez ainda estejamos presos a uma
imagem de docência que se sustenta em uma identidade, ou seja, aquilo
que cabe no imperativo de ser ou não ser professor.
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138 Corpo, políticas e territorialidades
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NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral: Uma polêmica. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2016.
139Vol I - Subjetividades & Diferenças
Douglas Rosa da Silva
Edla Eggert
DDes-costurar histórias
de quem pesquisou com
tecelãs em Alvorada - RS:
Nossos processos formadores
141
Este artigo apresenta uma análise tramada entre um egresso-bolsista
de Iniciação Cientíca e sua professora/coordenadora de pesquisa. Juntos,
buscaram des-costurar histórias para entender os seus processos formado-
res. Essa análise, que resultou em um processo amplo de aprendizagem,
teve como consequência não uma reexão sobre a função e os saberes
das artesãs dentro de sua comunidade, mas também auxiliou a reposicionar
a experiência da professora e do bolsista enquanto pesquisadores. O arti-
go destaca as aprendizagens advindas deste processo, aprendizagens essas
que, hoje, compõem a memória afetiva dos envolvidos nesta experiência
proporcionada pelo projeto de pesquisa.
Durante a execução do trabalho de pesquisa, foram realizadas lei-
turas de autoras e autores contemporâneos com o objetivo de entender e
conceituar os processos de técnica e tecnologia implicadas na produção de
tecelagem. A partir destas leituras, e do trabalho de campo realizado, ar-
gumentos foram sendo elaborados, visando tornar visível o conhecimento
que as tecelãs detêm sobre aquilo que por elas é produzido. As compreen-
sões formuladas no trabalho de revisão de literatura também foram sen-
do ampliadas continuamente, uma vez que foram promovidas discussões,
junto ao grupo de pesquisa, a respeito das observações, ideias e conceitos
encontrados nas leituras realizadas. Além disso, e no que compete ao tra-
balho de campo, acrescenta-se que as visitas ao Atelier de Tecelagem eram
feitas com regularidade mensal, ou seja, uma vez por mês. Realizadas entre
os anos de 2013 e 2014, essas visitas tinham como nalidade conhecer,
promover e estimular o conhecimento junto com as mulheres artesãs sobre
a própria produção artesanal.
Mudaremos, a partir deste ponto, a perspectiva do artigo para a ter-
ceira pessoa do plural, a m de apresentar o nosso ponto de vista a respeito
do caminho feito com as artesãs no compartilhamento de saberes no seu
local de trabalho, bem como na sua comunidade. Este processo, a nosso
ver, revelou trajetórias anteriormente presas à condição de silenciamento,
e que agora, de certo modo, fazem outros caminhos para a emancipação
54 - A pesquisa junto ao atelier Vera Junqueira, em Alvorada foi coordenada pela Professora Edla Eggert a partir do ano
de 2008 e teve nanciamento da FAPERGS com bolsa de IC, e de Editais CNPq Universal e Bolsa PQ do ano de 2009
até o ano de 2018. Foram vários desdobramentos produzidos que introduziram conceitos já publicados como: o conceito
de ¨instalação cientíco-artesanal¨ (EGGERT; BECKER, 2016), ¨tecnologia artesanal¨ (LOPES; EGGERT, 2016), o con-
ceito de ¨Artesanar¨ (EGGERT, 2019); e o conceito de ¨AtelieReferencia¨ (2021). Douglas Rosa, começou a participar
como bolsista de IC no ano de 2012 permanecendo nessa atividade até o ano de 2014. Ou seja, mesmo que o projeto tenha
sido concluído em 2018, o processo de maturação conceitual seguiu, pois o tempo lento é determinante para que a teoria
seja desenvolvida.
54
142 Corpo, políticas e territorialidades
individual e coletiva destas artesãs. Analisaremos também a relevância que
este estudo tem para um estudante de graduação que é negro e oriundo da
periferia, uma vez que a pesquisa discorre sobre o processo de histórias in-
visíveis. Durante o exercício de pesquisa, duas das perguntas que constan-
temente fazíamos enquanto pesquisadora e aprendiz de pesquisador eram:
quais as contribuições da ação de des-costura para aquele que também, de
certo modo, tem tudo para permanecer silenciado? Como o esforço para
emancipar conhecimentos de mulheres inseridas na arte popular dialoga
com as tramas que estão externas à pesquisa?
A pesquisa, quando considera a condição humana e também se arti-
cula com as narrativas individuais, consegue trazer à tona conhecimentos
que permitem o reconhecimento de histórias que não são percebidas ou co-
nhecidas. Devido a esta condição, e no nosso entendimento, essas histórias
ao serem trazidas ao centro da análise, promovem um caminho contrário
àquilo que é predestinado e previsível. Neste estudo, a ideia de descostu-
rar também implica analisar sob a ótica de quem pesquisa e das mulheres
pesquisadas, um trabalho que é feito em paralelo. A noção de igualdade
apresentada aqui, por isso, leva em consideração a colisão e o encontro das
tramas individuais de quem pesquisa e com as mulheres pesquisadas.
A arte, desde os primórdios, sempre conseguiu representar, explorar
e tensionar algumas questões que atravessam o âmbito social. Na produção
artística, a linha divisória entre a arte popular e a arte erudita vem sen-
do constantemente interpelada, reexão essa que destitui um pensamento
hierárquico e homogeneamente dicotômico (BIZZOCCHI, 1999), e abre
possibilidades para um horizonte dialógico, menos preocupado com clas-
sicações rígidas e mais inclinado para as percepções e os efeitos da cria-
ção artística (OSTROWER, 2013). A arte popular parece ter, então, uma
função intrigante na relação que estabelece com o meio comunitário, pois
essas dinâmicas artísticas, todas ligadas a um trabalho manual, conseguem
capturar aquilo que acontece na efervescência da cultura popular. Impor-
tante destacar que, conforme arma Eli Bartra (2000, p. 32), “a grande
maioria dos textos sobre arte popular não menciona a existência de gêne-
ros”, mas a elaboração de um artefato artístico sob a ótica feminina pres-
Pesquisar o artesanato produzido por mulheres:
Recortes dessa história
143Vol I - Subjetividades & Diferenças
supõe a presença de uma subjetividade e do que Edla Eggert tem chamado
de uma “tecnologia artesanal” formulada por mulheres, e este é um dado
importante para a pesquisa. Tendo em vista que essa pesquisa foi com arte-
sãs, este gesto epistemológico de reconhecê-las como produtoras de conhe-
cimento, também é uma contribuição na tentativa de sistematizar e reetir
sobre essas múltiplas criatividades femininas, em geral invisibilizadas, que
formam o campo da arte popular.
O artesanato, neste sentido, constitui uma parte importante do que
denominamos de arte popular, pois, consegue trazer à tona uma série de
(re)leituras daquilo que está interiorizado na vida ordinária e/ou naquilo
que é entendido como sendo “comum” dentro de determinado contexto.
E ao reetirmos sobre os aspectos de vida presentes neste objeto artístico
artesanal, que entendemos, com uma visão mais apurada e sensível, outras
faces da existência humana. A percepção do artesanal como objeto resul-
tado de uma tecnologia e de um conhecimento também é uma percepção
que nos leva ao encontro do outro, ou melhor, da outra que produz. Trata-se
de uma tomada de consciência do outro por meio do fazer artístico. E essa
abertura ao outro é feita neste lugar em que as epistemologias da vida ordi-
nária são produzidas. Ivone Gebara (2008) entende a epistemologia da vida
ordinária como o exercício de apresentação daquilo que decorre da ordem
do dia a dia. Essa epistemologia demanda um olhar para este lugar das coi-
sas de menor importância, já conhecíveis. Portanto, os detalhes, os saberes
consolidados, a rotina, todos esses são elementos vão inspirar uma postura
de criação, e não mais de conformismo; todos eles são dignos de uma aten-
ção criadora e redentora no plano epistemológico. Sendo assim, insistir na
epistemologia da vida ordinária é colocar o que é visto como simplório no
centro das atenções. Gebara discorre ainda que é possível celebrar a vida
em suas diferentes dimensões quando encaramos a experiência humana em
toda a sua complexidade. Esta atitude epistemológica nega a irredutibilida-
de dos fatos e das coisas a uma razão única, meramente explicativa. E foi
circulando por esse lugar do “ordinário”, do aparentemente “sem impor-
tância”, que tramamos as histórias abordadas neste capítulo.
Os passos dados por esta pesquisa podem ser representados e expli-
cados a partir de três grandes momentos: i) a leitura de textos relacionados
à experiência das mulheres artesãs e as suas tecnologias artesanais; ii) a
construção de argumentos teórico-metodológicos que pudessem integrar
trabalho artesanal com políticas públicas disponíveis na área da educação;
e iii) os caminhos e a possibilidade de tornar visível essa experiência para
144 Corpo, políticas e territorialidades
além da esfera acadêmica.
A partir dessa sistematização, podemos dizer que o estudo também
cou centrado em três grandes áreas, sendo elas: o trabalho (o fazer arte-
sanal), a educação (o diálogo com a EJA e com as políticas de complemen-
tação de estudos) e o conhecimento (a complexidade da criação, a criativi-
dade e o domínio de técnicas artesanais).
Nosso comprometimento estava em desenvolver uma metodologia
que atendesse as demandas provenientes dos objetivos que tínhamos para
a pesquisa. Essa metodologia também estava em diálogo com as leituras de
autores/as contemporâneos/as na área da tecnologia, feminismos, e educa-
ção, pois essas ferramentas metodológicas (leitura, diálogo, e investigação
em campo dos procedimentos artesanais) possibilitaram a construção de
caminhos para que chegássemos a conclusões temporárias. Traçamos, a
partir da revisão de literatura, relações com a experiência de acompanha-
mento das mulheres artesãs. A leitura, além de auxiliar na compreensão
dos termos que constituem o fazer artesanal, nos ajudou a pensar sobre os
espaços em que essas mulheres estão e de que maneira isso afeta – ou não
– o processo de criação de uma peça artesanal, por exemplo.
Entre as leituras realizadas, destacamos o trabalho bibliográco que
realizamos com a obra de Álvaro Vieira Pinto (2005), produção que abor-
da o conceito de tecnologia em toda a sua complexidade e isso inclui a
técnica e os seus desdobramentos no trabalho manual. Já a partir dos textos
de Donna Haraway (2004), zemos uso da leitura antropológica feminista
da autora acerca dos espaços de criação e sobre a própria criação enquanto
elemento de formação do sujeito mulher. Nos estudos da Arte, lemos Eli
Bartra, que condensa a situação dada entre as mulheres e a Arte Popular na
América Latina no livro Creatividad Invisible (2004).
Ressaltamos que todas as leituras realizadas dentro da Metodologia
proposta, foram vinculadas às questões feministas, pois, na condição de
aliados de uma proposta que visa transformar uma realidade, nos alicer-
çamos em uma visão que se pauta na mudança, no respeito e na busca por
dignidade. Sobre isso, Edla Eggert (2003, p. 20), arma que
[...] o compromisso de uma metodologia de pesquisa
feminista é conseguir perceber na “outra” pesquisada uma
cúmplice da descoberta de nós mesmas. Somos sujeitos
capazes de transformar determinada realidade/pesquisa
e nos transformarmos. Apesquisa feminista identica
145Vol I - Subjetividades & Diferenças
propositalmente a relação sujeito-sujeito como sendo o elo
diferencial das demais posturas neutralizantes na pesquisa.
Anal, a pesquisa feminista constrói uma epistemologia que perce-
be nas outras a descoberta de nós mesmas. Por isso, enquanto pesquisado-
res, tentamos vivenciar aquilo que era lido e discutido em nosso processo
de revisão de literatura. O Grupo de Pesquisa realizou uma série de ativida-
des práticas e encontros no atelier onde estavam as artesãs. Saíamos de São
Leopoldo (cidade em que ca a Universidade) para Alvorada (cidade em
que ca o Atelier), para realizar, juntamente com elas, diálogos, reexões
sobre o ser/tornar-se mulher e atividades que colocassem em evidência
seus saberes técnicos sobre a produção artesanal. Utilizamos o método da
observação-participante que envolveu muita partilha, acompanhamento e
vivência. Porém, não bastava observar, logo desempenhamos também
a participação ativa nessas atividades que propusemos fazer com as mu-
lheres artesãs. A coleta de dados aconteceu nesses momentos de interação,
através das conversas produzidas nesses encontros, e dos momentos de
descontração gerados nesse tempo.
Josso (2004) atenta para uma pesquisa-formação, que propõe meto-
dologicamente aquilo que as feministas defendem como postura, ou seja,
a autora consegue apresentar pedagogicamente ações que podem auxiliar
na implementação dos ideiais que embasam e constituem o discurso femi-
nista. A autora também defende que as ferramentas metodológicas também
devem resultar em um compromisso com a mudança, e essa mudança deve
ocorrer tanto no plano individual quanto coletivo. A metodologia compre-
ende, portanto, uma série de atividades, ou um caminho, para se chegar às
mudanças desejadas.
Tentamos relacionar, desse modo, a pesquisa dentro de um espaço
de formação, relacionando conhecimento, conceitualização, diálogo e par-
ticipação. Tentamos também des-costurar a cortina do invisível e destacar
conhecimentos, e o uso de técnicas que as tecelãs detêm. E foi assim, lendo
e vivenciando a leitura, que elaboramos uma fundamentação teórica capaz
de sustentar e viabilizar argumentos para um projeto que inclua e considere
os saberes de trabalho artesanal na área da Educação de Jovens e Adultos.
Diríamos que esse projeto pode ser chamado de um projeto de ressigni-
cação para a vida destas mulheres (e de nós mesmas, pesquisadoras). Um
projeto que, sobretudo, nos insere em um trajeto de “re-conhecimento” e,
ao mesmo tempo, em um “projeto de conhecimento” (JOSSO, 2007).
146 Corpo, políticas e territorialidades
As razões que nos levam a pesquisar o artesanato produzido por mu-
lheres têm, no argumento da prevenção, o seu maior fundamento. E remete
a um período um pouco anterior ao que o bolsista conheceu o trabalho da
orientadora. Tem a ver com o primeiro projeto que somente possuía nan-
ciamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do
Sul - FAPERGS, e o título era “Mulheres tramando contra a violência: a
produção do conhecimento na ação simultânea do pensamento e da cria-
ção artesanal”. Essa pesquisa ensinou sobre as precariedades da vida das
mulheres que vivem em situação de violência, e que ao exercitarem algum
tipo de trabalho manual em grupo conseguem introduzir elementos novos
em seu modo de pensar, ao fazer e pensar simultâneo sobre sua vida (EG-
GERT, 2009). A partir da estruturação desse argumento, a pesquisa que o
bolsista conheceu girava em torno de um fazer investigativo para os ate-
liers a m de estudar mais sobre quais são as aprendizagens desse lugar não
escolar, produtor de uma tecnologia artesanal .
55 - O conceito de tecnologia artesanal foi e seguiu sendo desenvolvido pela coordenadora do projeto ao longo de todas
as fases desta pesquisa. E, especialmente a partir de 2012, as leituras dos dois volumes do “Conceito de tecnologia”, de
Álvaro Vieira Pinto (2005), têm sido expostas como uma faceta importante no estudo em torno do conceito de tecnologia.
É possível identicar os primeiros indícios da construção do conceito de tecnologia artesanal, mas ainda sem a leitura de
AVP, na publicação do livro nanciado por um Edital/2008 do CNPq intitulado, Gênero, Mulheres e Feminismo, detalha
quatro três pesquisas de doutorado e a pesquisa da bolsa de Produtividade da coordenadora do projeto em questão nesse
texto/capítulo. Ver EGGERT, E. Processos educativos no fazer artesanal (2011).
55
Temos debatido o conceito de a tecnologia artesanal em interface
com a Educação de Jovens e Adultos (EJA) que tem sido um mote para
aproximar o conhecimento que as mulheres detêm sobre a produção arte-
sanal e que por elas é realizado, com o(s) modo(s) com que estes conheci-
mentos podem ser relacionados com a escola (LOPES; EGGERT, 2016).
A Escola, como um espaço de divulgação e ampliação do conhecimento,
não se limita apenas ao ensino da Língua Portuguesa e da Matemática,
mas, sim, da composição de currículos que se voltem para outros saberes
como, por exemplo, a questão do artesanato, que é produzido, sobretudo,
por mulheres.
Imaginar a possibilidade dos currículos de EJA repensarem as suas
estruturas e inserirem em sua composição aquilo que temos observado ser
Tecnologia artesanal, feminismo e educação:
Caminhos e possibilidades da prática de pesquisa
147Vol I - Subjetividades & Diferenças
um conjunto de domínio de técnicas vinculadas à produção de artesana-
to, imaginamos que: a) as mulheres podem se aproximar mais da Escola,
unindo, desse modo, a retomada dos estudos com o processo de quali-
cação prossional; e b) que elas percebam, enquanto artesãs, que aquele
trabalho rotulado por vezes como passa-tempo, feminino e sem valor, re-
quer conhecimento especíco, e é marcado por tecnologias especícas. A
artesã é aquela que produz, emprega e conserva este conhecimento, aliando
procedimentos técnicos e criatividade artesanal no seu ofício. E, de certo
modo, acreditamos que o espaço escolar pode auxiliar na construção desta
compreensão, que a Educação de Jovens e Adultos pode apresentar como
espaços estratégicos para que se atinja este discernimento. De posse dessa
compreensão, suspeitamos que as estudantes-artesãs se aproximem do re-
-conhecimento do seu próprio trabalho; caminho este que não está apartado
dos espaços educacionais, mas construído junto com a formação e trajetó-
ria escolar de cada uma.
Deste modo, acreditamos que o domínio de uma técnica e a produ-
ção da tecnologia artesanal, agrega valor não para aquilo que é produ-
zido, o objeto estético-artístico, mas também para nós mesmos, que iden-
ticamos e sistematizamos esse conjunto de reconhecimentos. Não existe
valor maior do que o conhecimento. E o artesanato, neste sentido, costura
as tramas de narrativas que circulam por vários lugares: pela escola, pelo
local de produção (o atelier), e pelo eu-sujeito (as próprias artesãs e tam-
bém quem pesquisa, como nós), formando uma tríade que é a tríade do
conhecimento. E essa tríade resulta ser também, a tríade da emancipação
e da mudança de perspectiva sobre o trabalho, a escola, e a subjetividade
individual de cada uma e de cada um.
Sendo assim, ao pensarmos sobre as razões que nos levaram a pes-
quisar o artesanato produzido por mulheres entendemos que, ao costurar
possibilidades para vidas que estão à margem e pertencentes ao ordinário,
estamos, indubitavelmente, des-costurando uma expectativa já demarcada
pelas estruturas de poder. Des-costurar e costurar implica em construir uma
outra perspectiva e um novo entendimento sobre as mulheres que estão à
margem no espectro social. No momento em que as hierarquias de poder
oprimem, demarcando lugares, e enclausurando narrativas, nossa pesquisa
apresentou uma tríade que possibilitou uma nova leitura, bem como uma
alternativa de formação para estes sujeitos que detêm um conhecimento
acerca de tecnologias especícas. Entrelaçamos fazeres tecnológicos, ocu-
pação prossional e ambiente escolar, em uma ação que provocou tanto os
148 Corpo, políticas e territorialidades
envolvidos na pesquisa quanto às instituições que passaram a questionar os
seus próprios limites de reexão e atuação.
Essa provocação, ao se estender aos agentes da pesquisa, faz com
que a pesquisada (se) pense [e também quem pesquisa!] por meio do que
ela faz aqui, no caso, o artesanato. Mas este pensamento não é um pen-
samento tecnicista, habitual, ele objetiva uma reexão sobre aquilo que é
possível de ser feito para além do que já é concreto e concebível no atelier.
E é por isso que frisamos a complexidade destes estudos, pois os lugares e
saberes não estão dados, mas são construídos na interação entre as partes,
e principalmente: construídos na interação com a realidade educacional
e artesanal brasileira. Todas as etapas da pesquisa, portanto, envolveram
doação, paixão e, acima de tudo, um olhar humano para essas realidades
outras.
Para Silva (2012), que também volta seus estudos para o ambiente
as narrativas de mulheres artesãs, a atividade de pesquisar implica em ir
muito além da ação de tratar objetos ou sujeitos de pesquisa. Ela desta-
ca que, na concepção de pesquisa artesanal, o saber cientíco e o saber
popular, não se sobrepõem um ao outro, mas complementam-se nas suas
especicidades. E só quando percebemos isso é que compreendemos que a
atividade de pesquisar é um ato singularmente educativo.
E é desse lugar-comum que nasce o olhar para as questões que estru-
turam este artigo. Desilenciar o que está silenciado não se trata apenas de
estudar e de pesquisar a história de mulheres artesãs, mas de pensar os pro-
cessos tecnológicos e educativos que decorrem destas narrativas. Trata-se,
sobretudo, de se comprometer com aquilo que também é parte da realidade
do estudante e da professora, agentes que pesquisam: a invisibilidade, a
margem e o dito ordinário fazem parte do cotidiano, e do espaço enquanto
ser social. As artesãs, por meio de suas produções, nos incentivam a cons-
truir outro olhar para essas esferas que, de algum modo, também transpas-
sam a nossa vida.
Mudar o curso da vida de pessoas [portanto, educar] faz parte da
escolha da nossa prossão e, ao nos comprometermos em fazer da Pesqui-
sa uma ferramenta de combate às desigualdades, estamos, humanamen-
te falando, desilenciando não histórias externas a nós, mas, também e
principalmente, desilenciando-nos. Consoante com isso, Freire (2014, p.
36) dirá que é,
149Vol I - Subjetividades & Diferenças
[...] fazendo pesquisa, educo e estou me educando com
os grupos populares [...] como ato de conhecimento, tem
como sujeitos cognoscentes, de um lado, os pesquisadores
prossionais; de outro, os grupos populares e, como objeto
a ser desvelado, a realidade concreta. Quanto mais, em tal
forma de conceber e praticar a pesquisa, os grupos populares
vão aprofundando como sujeitos, o ato de conhecimento
em si suas relações com a sua realidade, tanto mais vão
podendo superar ou vão superando o conhecimento anterior
em seus aspectos mais ingênuos.
Mediante o exposto, entendemos que por meio dessa pesquisa tor-
namos mais visíveis os conceitos presentes nos processos da experiência
do artesanato e nos conscientizamos mais sobre o conhecimento das mu-
lheres artesãs. Acreditamos que estamos contribuindo para que se forme
um caminho para a emancipação delas, bem como para o reconhecimento
destes saberes. E, além disso, entendemos que é preciso seguir perseguindo
este objetivo de apontarmos para a visibilidade destes processos tecnoló-
gicos e educativos, a m de que eles sejam mais difundidos nas escolas
que oferecem a EJA. Cabe à escola dialogar e compor conhecimentos que
agreguem junto aos saberes dos ateliers.
Perrot (2008, p. 22) diz que resgatar a narrativa de mulheres, olhan-
do-as a partir de suas experiências, é reverter a falta de representação de
discursos e de imagens para as mulheres. Para ela,
[...] ocorre uma autodestruição da memória feminina.
Convencidas de sua insignicância, estendendo à sua
vida passada o sentimento de pudor que lhes havia sido
inculcado, muitas mulheres, no caso de sua existência,
destruíam – ou destroem – seus papéis pessoais.
É por isso que, quando apontamos o desilenciamento, buscamos
constituir imagens capazes de realizar um contraponto ao que é premedi-
tado para essas vivências. A pesquisa, bem como as suas possibilidades,
tem provocado o fazer-falar, o fazer-saber e o fazer-criar, objetivos que não
apenas são um resgate e uma elaboração da memória e da experiência fe-
minina, como também caracterizam um trabalho de ampliação da presença
e dos saberes das mulheres seja no plano dos discursos, seja no plano das
imagens, seja na esfera artística e educacional.
150 Corpo, políticas e territorialidades
A re-costura que zemos com as artesãs ocupou um lugar de com-
partilhamento de saberes, processo este que, a nosso ver, revelou alguns
movimentos de emancipação de trajetórias anteriormente presas à condi-
ção de silenciamento. Por exemplo, para o bolsista de Iniciação Cientíca,
que é negro e oriundo da periferia, pesquisar e discorrer sobre o processo
de histórias invisíveis foi um re-conhecimento e um re-encontro de si e
consigo mesmo. Na linha desse mesmo pesponto, a coordenadora do pro-
jeto conrmou positivamente os encontros realizados entre o bolsista de IC
e as artesãs, pois havia uma expectativa em relação a criação deste vínculo.
Vê-las interagir de forma desimpedida, e produzir uma série de encontros
com muitas trocas, foi extremamente graticante. Artesãs-tecelãs e bol-
sista formaram um grupo autônomo que, durante o primeiro semestre de
2014, zeram várias atividades de visitação a outros grupos para pensar a
diversidade técnica produzida neste segmento do artesanato de os . Isso
devido à saída para pós-doutorado da coordenadora do projeto . As con-
tribuições da ação de des-costurar o/a outro/a, trouxeram a visibilidade de
outros conhecimentos.
Foram três visitas realizadas com as tecelãs: a) em janeiro de 2014
quando realizamos um encontro na Unisinos com artesãs de três grupos
distintos, bordadeiras de Ivoti, RS; artesãs que utilizam várias técnicas de
São Pedro do Sul, RS; e as tecelãs de Alvorada, RS. Com elas também
estiveram as pesquisadoras Marcia Alves do PPGEdu da UFPel, a pes-
quisadora Maria Clara Bueno Fischer do PPGEdu da UFRGS todas com
suas bolsistas e orientadas. Foi um encontro em que estiveram reunidas
24 pessoas; b) o segundo encontro foi uma saída a campo para uma inte-
gração no local onde acontecem os encontros formativos das bordadeiras
na Fundação Evangélica de Ivoti, local onde foi desenvolvida a tese de
doutorado de Marli Brun (2013), orientada pela professora Edla Eggert; c)
o terceiro foi para um atelier em Taquara, que possuía criação de ovelhas
e produzia a para comerciantes e empreendedores locais e de outros
estados. E nalmente o bolsista organizou um evento de reencontro com
as artesãs-tecelãs, quando do retorno da coordenadora da pesquisa do seu
Pesquisar com artesãs
57
56
56 - Nesse semestre também acompanharam o bolsista uma mestranda e uma egressa doutora, Marcia Becker e Marli
Brun, respectivamente.
57 - Edla Eggert realizou seu pós-doutorado sob a supervisão da Professora Dra. Eli Bartra na Universidade Autonoma
Metropolitana, UAM - Unidade de Xochimilco, com bolsa do CNPq dos meses de fevereiro até julho de 2014.
151Vol I - Subjetividades & Diferenças
pós-doutorado. Esse encontro avaliou todo o processo de atividades que
haviam sido planejadas e que foram efetivadas com sucesso.
As possibilidades de costura e descostura deriva da ação de pesqui-
sar em prol do fazer/ser humano. Observamos que conseguimos, ao longo
do nosso trajeto enquanto pesquisadores, trazer à tona conhecimentos que
permitiram o reconhecimento de histórias não percebidas por quem as vi-
vencia por meio da narrativa transcrita, das sistematizações e dos diálogos
posteriores tanto entre bolsista com professora, como também com as ar-
tesãs. Importante destacar que esse processo de descoberta e de análise do
próprio fazer-saber não foi um trabalho passivo por parte das artesãs-tece-
lãs. Todas elas, com as suas vivências e particularidades, trouxeram noções
e perspectivas importantes para a consolidação das iniciativas e objetivos
do projeto. Em suma, só foi possível costurar e descosturar durante a práti-
ca de pesquisa, pois as artesãs estavam juntas, descosturando e costurando
experiências, visões de mundo, e conceitos que foram e são caros e úteis
não apenas para o projeto em si, mas também para o campo do saber arte-
sanal e educacional. Mãos coletivas, unidas e distintas, zeram e fazem a
des-costura juntas.
E, nalmente, nossa análise aponta que o maior salto formador foi
sem dúvida de quem propôs a pesquisa! Ou seja, bolsista e professora
aprenderam muito mais! Por exemplo, em 2013, ao ingressar no mundo da
Iniciação Cientíca, o bolsista Douglas tomou mais consciência do movi-
mento, ou talvez a palavra melhor seja, deslocamento, que era sair da pe-
riferia de São Leopoldo, atravessar a cidade para chegar na Universidade,
e depois chegar em outra cidade da grande Porto Alegre, Alvorada, e ter a
possibilidade de fazer a pesquisa empírica. Ao encontrar a Professora Edla
e o seu grupo aliado à pesquisa em educação, foi possível colocar em prá-
tica o desejo de fazer a diferença desde o ingresso no ensino universitário,
iniciado com bolsa Prouni, em 2012. Na mesma intensidade, a professora
Edla rearmou sua convicção de que a experiência de observação, narra-
ção, visibilidade, e transcrição (para posterior sistematização e análise) das
mulheres e os seus pontos de vista, proporciona o que as feministas críticas
seguem defendendo, e que tem por princípio a ideia de que a experiência,
com todas as suas dimensões e diversidade, produz conhecimento.
152 Corpo, políticas e territorialidades
Esta pesquisa resultou em processos formadores tanto para as ar-
tesãs quanto para os/as pesquisadores/as que conduziram a execução do
projeto. Ao descosturar as tramas envolvidas nesta grande rede, os pesqui-
sadores foram des-construindo conceitualizações acerca do trabalho arte-
sanal produzido por mulheres, ao passo que também foram mobilizando
novas compreensões acerca de si mesmas e do ato de pesquisar (pesquisan-
do-se). Em simultâneo, as artesãs também foram compreendendo, através
dos diálogos, das ocinas, e das intervenções realizadas pela e na pesquisa,
de que detinham um conhecimento próprio, de que dominavam uma técni-
ca do saber e do fazer no emprego e na confecção de suas peças artesanais.
Ao longo do texto, também buscamos evidenciar que a pesquisa
mudou a vida do bolsista de Iniciação Cientíca, que era um estudante
dedicado, leitor voraz, graduando do Curso de Letras Português-Inglês;
assim como transformou a pesquisadora e as tecelãs. Cada permanência
junto ao Atelier mudava a percepção de quem pesquisava sobre o curso da
vida das pessoas. E fazia com que fossem destinadas reexões sobre o que
signicava ser pesquisadora, pesquisador no campo das ciências humanas.
Observamos, de igual modo, neste processo, que a docência é uma pros-
são que nos obriga a fazer da pesquisa junto com ensino, pois sem a sensi-
bilização do olhar para o entorno, e da sistematização junto com a reexão
do que vemos e ouvimos dicilmente chegamos perto para que a mudança
e, portanto, a aprendizagem aconteça. Desilenciar não só histórias externas
a nós, mas, também e principalmente, desilenciando-nos.
Conseguimos construir pontes entre tecnologia artesanal, conhe-
cimento de mulheres, e educação, a m de que essa tríade possibilitasse
aberturas outras nos currículos EJA. Além disso, e através de um trabalho
coletivo feito com as artesãs, vias de emancipação foram sendo constru-
ídas, e o erigir de uma nova consciência muito mais humana, digna, e
plural – foi sendo consolidada. Esses processos formadores, portanto, sig-
nicam o ponto clímax da pesquisa, visto que todos eles trouxeram e ainda
trazem resultados signicativos na vida dos/as envolvidos/as.
É por isso que a pesquisa, formalmente concluída, segue dando fru-
tos em suas tramas tecedoras de um fazer innito. Douglas formou-se em
Letras no ano de 2016, em seguida cursou o Mestrado em Letras na UFR-
GS, e atualmente cursa o Doutorado no mesmo PPGLetras. A professora
coordenadora do projeto mudou de instituição e nalizou o projeto. Iniciou
Considerações nais
153Vol I - Subjetividades & Diferenças
outra pesquisa agora mais voltada para o âmbito histórico de mulheres do
passado e seus processos criadores e educativos. Porém, segue estudando
Álvaro Vieira Pinto, autor que cuja contribuição foi basilar nesta pesquisa,
e que lhe alcança o pensar losóco e político da educação brasileira.
A retomada desse texto que estava parado desde o ano de 2016 foi
signicativo, pois nos obrigou a fazer pensar acerca de um processo que
nos catapultou para outros lugares e desaos. A distância temporal entre o
“tempo de execução da pesquisa” e o “tempo de escrita sobre a pesquisa”
também nos ajudou a observar e a reetir sobre os reais efeitos do projeto.
Destacamos que não apenas novos conceitos e novas visadas bibliográcas
foram criados a partir desta investigação, contribuindo assim com o avanço
da discussão artesanal feminina na universidade, mas também novos dire-
cionamentos, no atelier e na vida das mulheres, foram realizados. Cum-
priu-se, desse modo, com o objetivo da pesquisa: histórias e tramas foram
des-costuradas; e nesse processo, cou o contínuo conhecimento, em um
eterno vai e vem.
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SILVA, M. A. Trabalho de mulher?! Alinhavando, bordando e cos-
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2012.
156 Corpo, políticas e territorialidades
Maria Fernanda Cestari Saad
José Licínio Backes
OOs alunos indígenas
em espaços educativos não
indígenas e a ressignificação
do currículo
157
No contexto atual, escrever sobre as populações indígenas é de ex-
trema importância e constitui-se em uma forma de contribuir para que suas
culturas e identidades sejam reconhecidas, sobretudo, quando se trata de
mostrar sua resistência e luta em defesa de seus direitos. O presente artigo,
resultado de projeto de pesquisa com apoio do CNPq, situa-se nesse con-
texto. Tem como objetivo salientar como a presença dos alunos indígenas
traz novas reexões para o currículo no que diz respeito à necessidade de
pensá-lo a partir da diferença cultural.
Desde o período da colonização, os indígenas brasileiros têm sua
realidade marcada pela escolarização. Se, no início, a escolarização esteve
voltada aos interesses do colonizador, graças à luta e resistência, a partir
da segunda metade do século XX, os indígenas têm construído uma escola
e um currículo articulados com suas demandas comunitárias, culturas e
identidades. Embora não seja uma tarefa fácil, dado o processo histórico de
violência, discriminação e desrespeito aos seus direitos, eles têm consegui-
do construir escolas interculturais, diferenciadas e bilíngues, isto é, estão
decolonizando as escolas e os currículos.
Vale dizer que não existe apenas uma escola indígena, mas várias
escolas indígenas, pois cada etnia vai construindo sua escola conforme sua
língua, tradição, cultura e identidade. Essa multiplicidade mostra, longe
de ser vista como um problema, o quão plurais são os povos indígenas e o
quanto a ideia de que existe uma única forma de ser indígena no Brasil não
passa de uma invenção do colonizador, incapaz de ouvi-los e respeitá-los.
Mais do que construir escolas articuladas com a sua cultura e iden-
tidade em suas comunidades, os indígenas têm também mostrado, para os
que se dispõem a ouvi-los e para o campo da educação e do currículo, a
pertinência e relevância de pensar a escola e o currículo em torno das dife-
renças, portanto, contra o projeto da escola monocultural, homogeneizado-
ra, normalizadora e padronizadora.
A escola e, portanto, o currículo, faz parte da história dos povos
indígenas no Brasil há séculos, ou seja, desde o período da colonização do
país. A escola, com um currículo ocidental e cristão, foi imposta aos povos
indígenas do Brasil como meio importante de colonização, isto é, como
meio de impor a cultura ocidental aos povos indígenas:
O Currículo Indígena e a Decolonialidade
158 Corpo, políticas e territorialidades
A escola para os índios é a mais antiga do Brasil e as
primeiras iniciativas escolares são do período colonial: ao
tomarem posse das terras habitadas pelos povos indígenas,
uma das primeiras ações dos europeus foi organizar e impor
aos nativos um aparato educativo de acordo com os padrões
ocidentais, sendo a escola um deles (BERGAMASCHI;
SILVA, 2007, p. 127).
Porém, desde o início da imposição da escola ocidental, os indí-
genas resistiram a ela. Apesar do processo de colonização ao qual foram
submetidos, da proliferação de escolas a serviço do projeto de homogenei-
zação cultural no contexto latino-americano, incluindo o Brasil, e das ten-
tativas de apagamento da diferença, tanto a resistência quanto a diferença
continuam presentes em diferentes contextos, mesmo nas escolas:
A construção dos estados nacionais latino-americanos
supôs um processo de homogeneização cultural em que a
educação escolar exerceu um papel fundamental, tendo por
função difundir e consolidar uma cultura comum de base
eurocêntrica, silenciando ou invisibilizando vozes, saberes,
cores, crenças e sensibilidades. (CANDAU, 2011, p. 242).
Essa resistência fez com que, em 1988, fosse incluído na Constitui-
ção Federal do Brasil o direito de os indígenas terem uma escola intercul-
tural, bilíngue e diferenciada, enm, uma escola indígena, com currículo
indígena. Para que essa escola se torne cada vez mais uma realidade entre
os povos indígenas, estes intensicaram a luta decolonial, isto é, a luta para
que não só a escola e o currículo, mas também a cultura como um todo,
consigam desfazer-se das características ocidentais impostas, valorizando
e armando a cultura e identidades indígenas. Vale ressaltar que a decolo-
nialidade
[...] implica partir da desumanização e considerar as lutas
dos povos historicamente subalternizados pela existência,
para a construção de outros modos de viver, de poder e de
saber. Portanto, decolonialidade é visibilizar as lutas contra
a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas
sociais, epistêmicas e políticas (OLIVEIRA; CANDAU,
2010, p. 24).
159Vol I - Subjetividades & Diferenças
Considerando o sentido de decolonialidade apresentado, pode-se
inferir que as escolas indígenas, protagonizadas pelos indígenas, notada-
mente nos últimos anos, têm sido um espaço importante de decolonização.
A desumanização produzida com a contribuição da escola imposta aos in-
dígenas tem sido questionada, e outros modos de viver, poder e saber tem
circulado, especialmente os modos de viver, poder e saber indígenas. As
lutas dos povos indígenas, suas práticas culturais e suas formas de produzir
conhecimentos adquirem importância nessas escolas, tornando-as decolo-
niais e interculturais.
Merece ser destacada a capacidade de resistência dos povos indíge-
nas, que transformam a escola, em espaço de armação de sua cultura, de
seus conhecimentos, de suas formas de vida:
Mesmo sabendo não serem suas as práticas escolares, ali
na aldeia, longe da intervenção direta dos não indígenas,
constituem formas próprias de ensinar e aprender. Intuem
a necessidade de aprender com o coração e deixam
extravasar os sentimentos ternos que aproximam as pessoas
no respeito às individualidades que faz cada pessoa viver
sua autonomia na convivência coletiva (BERGAMASCHI;
SILVA, 2007, p. 138).
As diferentes etnias indígenas do Brasil resistem e lutam diariamen-
te, desde o período colonial, pela armação da sua cultura e por um currí-
culo intercultural e decolonial. Os indígenas, no Brasil,
[...] têm efetivamente construído currículos interculturais
e decoloniais, estabelecendo um diálogo, sempre que
possível, entre conhecimentos ocidentais e indígenas,
sem deixar de reconhecer as diculdades, os limites, os
dilemas, as assimetrias produzidas pela lógica ocidental
que marcam a relação entre os conhecimentos (BACKES,
2019, p. 1120).
Os indígenas, ao mostrarem as possibilidades de construir outras
escolas e currículos, escolas e currículos que valorizam a diferença, o en-
contro e o diálogo entre os conhecimentos, não armam a sua cultura
e identidade, como também contribuem para que as escolas não indígenas
desconem do projeto da modernidade/colonialidade, que visa à homo-
geneização e à uniformização dos modos de ser, viver e conhecer. Como
160 Corpo, políticas e territorialidades
apontam Scaramuzza e Neves (2018, p. 10):
Aprendemos com os povos indígenas a desconar das
narrativas constituidoras da modernidade, das estratégias
homogeneizadoras que objetivam descaracterizar/
inferiorizar as epistemológicas indígenas e o conjunto
de pressupostos pedagógicos inerentes a esse processo.
Olhando para os processos violentos de colonização e
seus efeitos, povos indígenas ao se reconhecerem outros,
buscaram apropriar-se de muitos elementos que este evento
de encontro possibilitou, no entanto, diferentes signicados
foram/são dados as estruturas coloniais, a escola é uma
dessas traduções.
Embora os autores se reram ao contexto das escolas indígenas,
como evidenciam as pesquisas de Candau (2011), no contexto brasileiro,
nas escolas e nos currículos, o que não é comum e uniforme é visto como
um problema a ser resolvido:
A cultura escolar dominante em nossas instituições
educativas, construída fundamentalmente a partir da
matriz político-social e epistemológica da modernidade,
prioriza o comum, o uniforme, o homogêneo, considerados
como elementos constitutivos do universal. Nesta ótica, as
diferenças são ignoradas ou consideradas um “problema” a
resolver (CANDAU, 2011, p. 241).
Saber que há grupos culturais que desenvolvem outros currículos é
importante, e não só para esses grupos; serve também de exemplo para que
lutemos pela valorização das diferenças em todas as escolas brasileiras, já
que todas carregam uma diversidade de sujeitos. Em análise de como os
povos indígenas vão construindo currículos decoloniais e interculturais,
Backes (2018) demonstra que, se o projeto hegemônico
que sustenta a sociedade neoliberal quer convencer-
nos de que, para os diferentes, desiguais, excluídos,
discriminados, a solução está em acessar os conhecimentos
dos poderosos, com os indígenas aprendemos coisas
muito mais interessantes: aprendemos a não nos dobrar
aos poderosos (nem aos seus conhecimentos, nem à sua
pedagogia); aprendemos a resistir; aprendemos a construir
outros currículos, outras pedagogias. Aprendemos como
construir pedagogias decoloniais (BACKES, 2018, p. 57).
161Vol I - Subjetividades & Diferenças
Nas escolas indígenas, os currículos não são somente a expressão de
um tipo de conhecimento; eles são vistos como um campo de luta da comu-
nidade para a valorização da cultura e dos conhecimentos indígenas. Con-
tudo, no contexto atual, em que há efetivamente um contato com o mundo
ocidental, a escola indígena não se restringe ao conhecimento indígena. O
conhecimento ocidental também circula nas escolas e nos currículos in-
dígenas, mas jamais como único, nem como superior aos conhecimentos
indígenas. Nesse sentido, a luta é pela construção de um currículo e uma
escola intercultural e decolonial.
Uma questão que vem à tona quando se discute a presença indíge-
na nas escolas é a do fracasso escolar, que tem sido histórico no contexto
brasileiro. Entretanto, esse fracasso não deve ser visto como sendo de res-
ponsabilidade dos alunos, mas como fruto da inadequação do currículo à
realidade cultural dos alunos. Essa realidade cultural é mais decisiva ainda
quando se trata de alunos indígenas que efetivamente são oriundos de uma
cultura que não tem a ver com o currículo das escolas brasileiras. Bruno
e Souza (2018, p. 51), referindo-se aos alunos indígenas, armam: “como
esses alunos não conseguem se desenvolver nos parâmetros estabelecidos
pela escola, são considerados fracassados e sofrem com as marcas, os es-
tigmas e os preconceitos, dos quais a própria instituição é a principal pro-
dutora”. O mesmo processo continua quando os alunos indígenas chegam
à universidade. A falta ou a diculdade,
O Currículo pós-presença Indígena:
As transformações em curso
[...] de diálogo com outras culturas e a inadaptação da
universidade, no entanto, aos olhos da sociedade, são
equivocadamente interpretadas como incapacidade do
indígena, aquele que não consegue acompanhar, o atrasado,
e eles mesmos percebem a construção desse discurso sobre
si (LISBÔA; NEVES, 2019, p. 11).
Apesar disso, os indígenas têm incorporado em sua cultura a neces-
sidade da leitura e da escrita e de outros conhecimentos ocidentais, mas,
quando esse processo está desarticulado de sua cultura e identidade, há
maior diculdade de aprendizagem. A escola ocidental, em vez de localizar
162 Corpo, políticas e territorialidades
o problema na inadequação do currículo, tende a ver nos alunos indígenas
uma falta de capacidade ou de vontade de estudar, reforçando as imagens
estereotipadas que circulam sobre os povos indígenas. Como apontam
Souza e Bruno (2017, p. 100),
os desaos para que os alunos matriculados nas diversas
escolas indígenas alcancem o domínio da leitura e da
escrita são crescentes, pois possuem línguas e culturas
distintas e, além disso, estão cotidianamente envolvidos
com a sociedade considerada civilizada.
Mesmo em escolas indígenas, devido à incompreensão da sociedade
e da política educacional, o currículo muitas vezes é imposto pela socieda-
de branca, apesar da histórica luta dos povos indígenas por um currículo
indígena, intercultural, bilíngue e diferenciado. A escolarização indígena
se dá em um contexto intercultural. Ao mesmo tempo em que os indígenas
armam sua cultura e identidade, vão se apropriando de artefatos culturais
da sociedade ocidental:
neste caso, seu conhecimento e suas perspectivas vão além
do muro da aldeia, pois o contato com o não indígena lhes
permite conhecer o mundo de fora, conhecer tecnologias
como o celular, o computador, bem como tantos outros
acessos à informação e ao conhecimento (SOUZA;
BRUNO, 2017, p. 210).
Mesmo que, para os indígenas, no contexto atual, a leitura e a escrita
sejam vistas como importantes para a sua existência, essa aquisição não
signica que estão se dobrando ao modelo ocidental de vida. Trata-se de
uma estratégia necessária para que possam conviver na cultura ocidental,
sobretudo, para armar a sua cultura e identidade e lutar por seus direitos
garantidos pela Constituição, mas sistematicamente desrespeitados. Como
armam Bruno e Souza (2018, p. 42), desde o início da colonização, ainda
que “a desestabilização cultural estivesse presente, os indígenas Guarani
não recuaram, mas se mantiveram unidos com lutas e resistência”. Embora
as autoras se reram especicamente aos Guaranis de Mato Grosso do Sul,
há inúmeros estudos mostrando que todos os povos indígenas resistiram e
resistem cotidianamente ao processo de colonização e continuam arman-
do suas culturas e identidades.
A aprendizagem da língua inglesa pelos indígenas, assim como sua
163Vol I - Subjetividades & Diferenças
aquisição da leitura e da escrita da língua portuguesa, não signica do-
brar-se à cultura ocidental. Os indígenas sabem o que representa a língua
inglesa em termos de imposição cultural e estão em permanente discussão
e diálogo para não serem colonizados:
[...] o histórico do inglês como a língua do colonialismo
e o possível dano que o ensino da língua representa nos
contextos subalternos tornam esse tipo de diálogo de
vital importância para evitar a imposição de sistemas de
saberes ocidentais aos estudantes indígenas brasileiros
(RODRIGUES; ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p.
10).
Devem-se salientar a força e a habilidade dos indígenas, que, mes-
mo aprendendo a língua inglesa, não veem nela uma língua superior ou
mais importante e a trabalham a partir do próprio contexto cultural, com
suas ideias, valores e visões de mundo: “nessa concepção de aprendizado
de línguas, os alunos trabalham conscientemente para adquirir a segunda
língua dentro do contexto das atividades comuns regidas pela cultura local
em questão” (RODRIGUES; ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p. 11). A
cultura e o conhecimento indígena são o ponto de partida para a aprendi-
zagem da língua inglesa e, ao mesmo tempo, mantêm-se centrais ao longo
de todo o processo, porque os professores indígenas são “[...] empoderados
como os principais tomadores de decisão no desenvolvimento dos currícu-
los” (RODRIGUES; ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p. 14).
Dessa forma, a aquisição da língua inglesa é mais uma forma de
estabelecer contatos interculturais, mostrando ao mundo a cultura e a iden-
tidade indígenas e muitas vezes conseguindo estabelecer alianças inter-
nacionais para a defesa de seus direitos, que, como já destacamos, estão
sendo sistematicamente desrespeitados. Isso vem ocorrendo, sobretudo, a
partir de 2019, com a chegada de um governo neoliberal e conservador à
Presidência do Brasil, tendo como política para os povos indígenas a as-
similação cultural e sua integração ao modelo econômico capitalista; caso
não aceitem esse sistema, podem ser exterminados. Segundo Duarte e Cé-
sar (2020, p. 15), a crise provocada pela COVID-19
[...] ofereceu a Bolsonaro a oportunidade de generalizar
e fortalecer o conservadorismo [...] no contexto da
deslegitimação das políticas pregressas de reconhecimento
de direitos a populações historicamente marginalizadas,
164 Corpo, políticas e territorialidades
como pobres, negros, mulheres, LGBTI+, indígenas,
populações tradicionais etc.
Aprender a língua inglesa, longe de ser uma forma de colonização,
para os indígenas, torna-se uma forma de fazer-se ouvir, de ampliar a resis-
tência, de fortalecer sua luta. “No caso especíco da denição de conteúdo
e lições em inglês para escolas indígenas brasileiras, essa abordagem abre
espaço para que a voz subalterna dos professores indígenas seja ouvida”
(RODRIGUES; ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p. 13).
Outro ponto que contribui para que a aprendizagem dos indígenas
esteja articulada com sua cultura e identidade, não transformando a esco-
larização em um processo de imposição da cultura ocidental, é o apoio que
as famílias indígenas dão aos seus lhos. “Pode-se armar que o apoio e
a participação das famílias pertencentes às etnias indígenas são mais altos
que os das famílias não étnicas” (CARVAJAL; ARMIJO, 2020, p. 2).
Há, ainda, a questão histórica de como o Estado brasileiro trata os
indígenas:
embora tenham direito à consulta prévia e decidir se
querem ou não empreendimentos hidrelétricos, atividades
mineradoras e madeireiras em seus territórios, os indígenas
seguem ignorados pelo Estado (SILVA, 2019, p. 391).
No entanto, essa realidade está mudando. Os indígenas estão se
apropriando do Direito e passando a lutar pela sua efetivação no campo
jurídico. Em muitos casos, estão conseguindo êxito, inclusive no campo
da educação: “[...] os indígenas pararam de esperar pelo Estado e passaram
a atuar como usuários de seus direitos, valendo-se de ferramentas jurídi-
cas” (ANDRADE, 2019, p. 323). Ainda é um processo inicial, mas muito
importante. Os indígenas lutam para que chegue o dia em que “não mais
advogados e juízes não indígenas estejam legislando e julgando nossas
causas, mas nós mesmos nos defendendo legalmente, usando as leis tradi-
cionais e da nação a qual temos escolhido nossa nacionalidade por direito”
(ANDRADE, 2019, p. 343).
Houve, efetivamente, várias transformações da escola no sentido
de ela deixar de ser um espaço privilegiado da imposição da cultura oci-
dental. Foram promulgadas várias leis, que “[...] permitiram a criação das
categorias escola indígena, professor e professora indígena, viabilizaram
e ampliaram experiências educacionais que levavam em conta especici-
165Vol I - Subjetividades & Diferenças
dades culturais e melhoria das condições de vida locais” (ABBONIZIO;
GHANEM, 2016, p. 889). Nesse sentido, pode-se destacar que, de modo
geral, as escolas indígenas nos ajudam a pensar em um currículo articula-
do com as demandas da comunidade, que dene os projetos educacionais,
escolhe os professores, elabora materiais didáticos conforme a realidade
da comunidade, além de privilegiar o bilinguismo e o ensino articulado
com a pesquisa, vendo no docente um sujeito pesquisador (ABBONIZIO;
GHANEM, 2016).
Porém, apesar desses vários avanços em relação à educação, seja
nas escolas, nos currículos, nos professores ou nos materiais didáticos, não
se pode deixar de reconhecer que há muito ainda para ser feito. É preci-
so efetivar uma política educacional condizente com a realidade indígena,
conforme previsto no ordenamento jurídico desde a Constituição de 1988.
Uma das questões ainda por serem alcançadas refere-se à incapaci-
dade histórica de o poder público escutar os povos indígenas, reconhecen-
do que há muitos e diferentes povos indígenas no Brasil. “A escuta atenta
às comunidades mostra-se como uma ação fundamental, a m de que se
revelem as atividades abarcadas pelos processos pedagógicos, bem como
as características dos espaços que irão acolher a comunidade escolar” (ZA-
NIN; SILVA; CRISTOFOLI, 2018, p. 2010).
Infelizmente, ainda é comum, por parte do poder público, ignorar a
Constituição e toda a legislação posterior, que garante autonomia para as
escolas no que diz respeito aos seus currículos, aos processos próprios de
aprendizagem, aos projetos de escolas, incluindo a sua arquitetura. Esse
desrespeito abrange a própria organização escolar e sua estrutura física,
que tendem a seguir as da escola ocidental, sem respeitar a lógica indígena.
Zanin, Silva e Cristofoli (2018, p. 2017) entendem que “[...] o espaço es-
colar é parte integrante do currículo e que a legislação deve favorecer que
sejam respeitadas as perspectivas indígenas na denição desses espaços,
sempre de acordo com o interesse de cada comunidade”.
É imperativo que o poder público ouça as diferentes etnias indígenas
do Brasil e crie escolas com espaços físicos compatíveis com sua lógica de
organização. Portanto, é preciso “[...] visibilizar a diferença, valorizando e
oportunizando a presença desses sujeitos e de suas culturas em diferentes
ambientes educacionais (da educação básica ao ensino superior)” (ZANIN;
SILVA; CRISTOFOLI, 2018, p. 2018). Ou ainda,
166 Corpo, políticas e territorialidades
[...] é necessário considerar que o conhecimento dos
alunos indígenas é construído sobre arcabouços culturais
distintos. O desao, portanto, está em como pensar uma
aprendizagem signicativa a partir de signicados tão
distintos (FERRI; BAGNATO, 2018, p. 66).
Portanto, em se tratando de escolas indígenas, não se pode pensar
em um projeto padrão. É necessário ouvir as comunidades e garantir que
elas decidam qual projeto arquitetônico está em sintonia com a sua cultura.
Ao poder público, cabe cumprir o que está previsto na legislação, e isso
inclui projetos arquitetônicos autóctones, posto que a organização do espa-
ço escolar também seja educativa, é currículo, é pedagógica. Assim, para
construir escolas segundo a
[...] legislação que defende os direitos indígenas a uma
educação especíca, pode ser necessário viabilizar a
utilização de materiais, técnicas, sistemas construtivos,
bem como soluções funcionais não convencionais,
relativizando inclusive os processos que os possibilitam
(ZANIN; SILVA; CRISTOFOLI, 2018, p. 2014).
Outra questão que ainda está presente nos currículos e nas escolas,
mesmo após a promulgação da Lei 11.645/08, que obriga a inclusão de his-
tória e cultura indígenas em todos os estabelecimentos de ensino, é a visão
estereotipada de indígena. As imagens construídas sobre os indígenas no
contexto colonial continuam muito fortes na sociedade, nas escolas e em
seus currículos:
[...] estereótipos, imagens e representações negativas dos
povos originários como preguiçosos, selvagens, primitivos,
culturas atrasadas etc. são reproduzidas nos processos de
formação nas escolas e, ainda, constam nos livros didáticos,
também denominados de manuais escolares (BICALHO;
OLIVEIRA; MACHADO, 2018, p. 1594).
Os autores, ao trazerem os resultados de uma pesquisa realizada com
alunos de escolas públicas de Goiás, evidenciam algo recorrente quanto à
imagem que a sociedade tem dos indígenas: “a maioria das respostas fazem
referências às matas e orestas, o que explicita um conjunto de imagens
e representações do indígena genérico, que vive nas orestas, ainda for-
temente arraigadas no imaginário social” (BICALHO; OLIVEIRA; MA-
167Vol I - Subjetividades & Diferenças
CHADO, 2018, p. 1602).
Dessa forma, quando os indígenas não correspondem a essa ima-
gem, são acusados de não serem indígenas, de não viverem mais de acordo
com a sua cultura e identidade, como se o indígena não pudesse modicar
sua cultura. Trata-se de uma imagem construída no contexto da coloniza-
ção que circula sistematicamente nos currículos das escolas, principalmen-
te nos livros didáticos:
há um número considerável de pesquisas que analisa os
livros didáticos e as representações dos indígenas. Imagens
distorcidas e estereótipos que em nada correspondem ao
modo de vida dos Tapuios do Carretão e de outros povos
indígenas que passaram por processos de hibridização
étnica (BICALHO; OLIVEIRA; MACHADO, 2018, p.
1607).
Para que essa realidade mude, é fundamental que a Lei 11.645/08
seja trabalhada em todos os estabelecimentos de ensino. Aliás, é interes-
sante observar que, no contexto atual, há todo um conjunto de ações pro-
movidas, seja pelos municípios ou estados, em função da existência da
Base Nacional Comum Curricular, com o argumento de que, como se trata
de uma Lei, ela deve ser cumprida. Por que não se teve e não se tem a
mesma preocupação com a Lei 11.645/08? Por que, nesse caso, não se usa
o argumento de por ser Lei, deve ser cumprida? Obviamente, a resposta
passa pela pouca importância que historicamente o poder público tem dado
às populações indígenas, em função da discriminação e da falta de vontade
de reconhecer sua importância para o Brasil.
Não podemos compactuar com isso. Precisamos insistir na “[...] ne-
cessidade de os(as) educadoras trabalharem em sala de aula a história e as
culturas indígenas, bem como o espaço escolar propiciar e promover ati-
vidades sobre a temática” (BICALHO, OLIVEIRA e MACHADO, 2018,
p. 1609). Da mesma maneira, precisamos insistir para que o poder público
assuma “[...] sua responsabilidade para com a educação brasileira em geral
e a implementação da Lei 11.645/08” (BICALHO; OLIVEIRA; MACHA-
DO, 2018, p. 1609).
Essa insistência torna-se necessária porque a educação ainda não
incorporou a diferença como algo positivo; pelo contrário, persiste a ideia
de diferença associada com inferioridade, décit e incapacidade:
168 Corpo, políticas e territorialidades
a educação tem papel fundamental na ressignicação de
identidades marginalizadas por processos que levam à
inferiorização e à exclusão. Apesar de esforços recentes,
parte das escolas não contempla, em suas práticas
pedagógicas, questões relacionadas à pluralidade cultural
(FERRI; BAGNATO, 2018, p. 65).
A insistência também se torna necessária porque o processo de de-
sumanização iniciado com a colonização, mesmo com a mudança da legis-
lação e o direito à diversidade cultural reconhecido constitucionalmente foi
mantido:
[...] supressão de raízes culturais foi mantido e, muitas
vezes, aprofundado ao longo de toda a História do Brasil,
culminando com a sociedade atual que discrimina, muitas
vezes sem perceber, ou nega essa discriminação por
considerar que já é um fato consumado (FONTENELE;
CAVALCANTE, 2020, p. 6).
Portanto, não cabe mais a omissão da escola no que se refere aos
processos de discriminação e racismo que persistem na sociedade brasi-
leira e, muitas vezes, estão presentes nos currículos das escolas, de forma
velada ou explícita:
[...] a escola deve adotar uma agenda positiva de inclusão
de todos os sujeitos e promover alterações curriculares que
permitam a consolidação desses avanços através de sua
incorporação ao cotidiano dos estudantes, com destaque
para o combate ao racismo e a toda forma de discriminação
(FONTENELE; CAVALCANTE, 2020, p. 7).
Ao enfatizarmos o papel da escola, não a concebemos como uma
instituição descolada da sociedade, muito menos dizemos que é culpa dos
professores que essa agenda positiva ainda seja incipiente. Na verdade, a
agenda positiva depende de todo um contexto favorável, que inclui políti-
ca de valorização dos docentes e um tempo remunerado para a formação
continuada.
A formação continuada deve ser inserida no cotidiano das
escolas, como forma de garantir que a educação básica
acompanhe as mudanças legais e as transformações gerais
que interferem no cotidiano dos alunos, evitando um
169Vol I - Subjetividades & Diferenças
Por m, deve-se dizer que a insistência na lei é necessária porque
ela
distanciamento entre a escola e a vida (FONTENELE;
CAVALCANTE, 2020, p. 13).
E ela está sendo escrita e documentada pelos indígenas,
[...] é um mecanismo coadjuvante na transformação da
sociedade. Somente a ação protagonista dos usuários
da lei pode operar mudanças signicativas. Por isso, a
história indígena no Brasil ainda necessita ser escrita e
documentada de forma ampla e profunda para ser usada
nas escolas (ANDRADE, 2019, p. 351).
[...] Caracterizado menos por uma releitura das publicações
feitas por antropólogos, linguistas e viajantes, e mais por
criação e proteção dos seus direitos autorais, identidade e
reapropriação do conhecimento tradicional (ANDRADE,
2019, p. 334).
Ainda em relação à Lei 11.645/08, com Ângelo (2019, p. 375), ar-
mamos que, após mais de “[...] dez anos da Lei 11.645/2008 não
como celebrar, mas apenas apoiar todas as iniciativas daqueles engajados
na luta por uma educação mais diversa e representativa das culturas indíge-
nas”. Considerando que o artigo foi escrito em fevereiro de 2019, portanto,
antes da implementação da necropolítica bolsonarista, pode-se dizer que
atualmente menos ainda temos o que celebrar, mas temos muitas razões
para resistir e lutar para que as populações indígenas tenham seus direitos
garantidos e a escola e o currículo contribua para construir uma imagem
verdadeira sobre a história e a cultura indígenas, sem estereótipos e sem
visões discriminatórias e racistas. Assim, precisamos, urgentemente,
[...] reverter o quadro do apagamento da presença dos
afrodescendentes, dos indígenas e das mulheres nas
produções [e] reposicionar saberes, práticas e repertórios
produzidos por esses sujeitos como formas válidas e
legítimas de conhecimento (REIS, 2020, p. 13).
Basta de sacralização da ciência ocidental, como se fosse a única
forma de produzir conhecimento, seja nas universidades, nas escolas e nos
currículos:
170 Corpo, políticas e territorialidades
[...] é preciso aproximar diferentes domínios de saberes
e conhecimentos acumulados pelas experiências das
culturas. A construção de saberes pelos povos indígenas
e tradicionais não pode ser dispensada como referências
cognitivas sem importância (ARAÚJO; SÁ; ALMEIDA,
2020, p. 13).
Como vimos, os indígenas estão produzindo um conjunto de trans-
formações curriculares. Eles estão afetando os currículos. Sua experiência
e presença nas escolas contribuem para produzir outra imagem e ideia de
quem são os indígenas no Brasil.
Apesar de persistirem imagens e ideias estereotipadas, observa-se
também a construção de outras imagens, graças à resistência e luta histó-
rica dos povos indígenas, que não se dobram à lógica da cultura ocidental.
Eles, mesmo no contato com a cultura ocidental, encontram formas de ar-
mar a sua cultura e identidade.
Concluímos o artigo reconhecendo que temos muito a aprender com
os indígenas. O campo da educação e, principalmente, o campo do currí-
culo podem aprender com os indígenas como construir currículos plurais,
articulados com as comunidades, culturas e identidades dos seus alunos.
Considerações nais
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174 Corpo, políticas e territorialidades
Franciele Caroline Pavão Garcia
Ruth Pavan
CCurrículo escolar e
diferença decolonial:
Perspectivas de estudantes
do curso de pedagogia
175
Durante séculos, a escola e seu currículo lidaram com a diferença
sob uma perspectiva colonial, isto é, desqualicando, subalternizando e
inferiorizando todos os sujeitos que estavam fora da lógica da cultura oci-
dental. Nas últimas décadas, movimentos sociais, teóricos do campo do
currículo e docentes têm defendido um currículo multi/intercultural, vendo
a diferença na perspectiva decolonial e questionando os processos de infe-
riorização, subalternização e desqualicação.
O presente capítulo, resultado de uma dissertação de mestrado com
apoio da CAPES (PROSUC/CAPES), insere-se nesse contexto. A disser-
tação articula-se com o projeto de pesquisa “Currículo e (de)colonialida-
de: relações étnico-raciais, gênero e desigualdade social”, coordenado por
Ruth Pavan (Bolsa Produtividade, CNPq). O objetivo do capítulo é anali-
sar a fala de estudantes de Pedagogia sobre as diferenças culturais, iden-
ticando se veem nessas diferenças uma forma de qualicar o processo
pedagógico.
Na primeira parte, trazemos a perspectiva teórica, com reexões do
campo da multi/interculturalidade crítica. No segundo momento, analisa-
mos as falas de seis estudantes de Pedagogia de uma universidade localiza-
da na capital de um estado do centro-oeste do país. As falas foram obtidas
por meio de entrevistas semiestruturadas, sendo três realizadas via Google
Meet e três de forma presencial. Os nomes das estudantes são ctícios, em
conformidade com as exigências do Comitê de Ética. No nal, fazemos al-
guns apontamentos sobre a importância de um currículo multi/intercultural
nestes tempos tão difíceis.
O contexto teórico da pesquisa
Mesmo que anos o campo do currículo arme que este é muito
mais que a lista de conteúdos ou um documento ocial a ser seguido na
sala de aula, essa ideia ainda está presente, seja nos cursos de formação,
seja nas percepções de professores que atuam em sala de aula. No senti-
do etimológico, “currículo é palavra de origem latina, derivada do verbo
currere, que signica caminho ou percurso a seguir, jornada, trajetória”
(RANGHETTI; GESSER, 2011, p. 15). Porém, mesmo que o currículo
seja associado a um caminho e um percurso único, como, por exemplo,
intenta a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), há vários caminhos
176 Corpo, políticas e territorialidades
e percursos alternativos, que se dão seja em função dos diferentes sujeitos
que o percorrem, seja em função dos processos de ressignicação, criação
e recriação protagonizados pelos docentes e toda a comunidade escolar.
O currículo “[...] é um terreno de produção e de política cultural,
no qual os materiais existentes funcionam como matéria-prima de criação
e recriação e, sobretudo, de contestação e transgressão”, tendo “[...] ação
direta ou indireta na formação e desenvolvimento do aluno” (MOREIRA;
SILVA, 1997, p. 28). Nota-se, a partir do pensamento dos autores, que o
currículo é um campo onde é possível a criação de debates, de tensões em
torno das questões culturais, e isso, necessariamente, está presente no pro-
cesso educacional. Para os autores, o currículo escolar não é algo estático,
nem o é seu conceito. O currículo não deve expressar apenas uma “[...]
visão homogênea e padronizada dos conteúdos e dos sujeitos presentes
no processo educacional, assumindo uma visão monocultural da educação
e, particularmente, da cultura escolar” (MOREIRA; CANDAU, 2003, p.
160).
Apple (1999) arma que o currículo se relaciona com os interesses
sociais de um determinado contexto histórico e que possui dimensões cien-
tícas, artísticas e losócas do conhecimento. Portanto, também Apple
(1999) reconhece que o currículo atende a interesses sociais e que, nesse
sentido, sempre estará em disputa por diferentes concepções dos diferentes
grupos socioculturais:
O currículo nunca é apenas um conjunto neutro de
conhecimentos que, de algum modo, aparece nos textos e
nas salas de aula de uma nação. É sempre parte de uma
tradição seletiva, da seleção de alguém, da visão de algum
grupo do conhecimento legítimo. O currículo é produto
das tensões, conitos e compromissos culturais, políticos
e econômicos que organizam e desorganizam um povo [...]
(APPLE, 1999, p. 51).
Essas tensões, compromissos e conitos não se dão de forma isola-
da e têm a ver com o debate mais amplo da educação, sempre afeito a refor-
mas: “as palavras educação, currículo e reforma têm uma história tal que
parecem andar de mãos dadas” (GESSER, 2014, p. 33). Assim, toda vez
que há mudança em algum destes, essa mudança reete-se diretamente em
outros campos da educação. Além disso, é importante ressaltar, conforme
Apple (1999) e Moreira e Silva (1997), entre outros, que o currículo, his-
177Vol I - Subjetividades & Diferenças
toricamente, se reestruturou em função de um tipo de projeto de sociedade.
Também Sacristán (1999) se aproxima da reexão desses autores
ao destacar que o meio (sociedade) inuencia diretamente o currículo. O
autor ratica e amplia a noção de que a conexão entre a sociedade externa
e o ambiente escolar, ou seja, o próprio currículo,
[...] é a ligação entre a cultura e a sociedade exterior à escola
e à educação; entre o conhecimento e cultura herdados e a
aprendizagem dos alunos; entre a teoria (ideias, suposições
e aspirações) e a prática possível, dadas determinadas
condições (SACRISTÁN, 1999, p. 61).
A relação existente entre o currículo escolar e a sociedade produz
múltiplos efeitos. Ela pode, por exemplo, produzir e reproduzir os pro-
cessos discriminatórios existentes na sociedade, reverberando dentro da
escola. Para Silva (2004, p. 23), observa-se a discriminação de culturas e
grupos culturais no currículo escolar, pois este “é um dos locais privilegia-
dos onde se entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso
e regulação”. Isto faz com que a escola e seu currículo privilegiem algu-
mas culturas, alguns conhecimentos, e excluam outros. Sistematicamente,
segundo o autor, os conhecimentos ocidentais são valorizados e contem-
plados nos currículos.
Os autores em quem nos pautamos ao longo deste texto, embora
guardem diferenças entre si, problematizam o currículo em uma perspecti-
va crítica, opondo-se radicalmente aos processos de exclusão.
Cabe ao currículo escolar, então, ainda que relacionado ao
tecido social da sociedade capitalista, problematizar todas
as formas de exclusão existentes na sociedade, bem como
as que são (re)produzidas pela própria escola. Sobretudo,
cabe-lhe mostrar que não é o indivíduo ou determinados
grupos sociais que se excluem, mas a sociedade que produz
diferentes processos de exclusão. Assim o currículo escolar
poderá contribuir para a dignidade, a emancipação das
pessoas e a justiça social (PAVAN, 2018, p. 200).
Dentro dessa perspectiva, o currículo não é visto como um manual
de instruções ou um formulário de metas a serem atingidas. Na perspectiva
crítica do currículo, é indispensável o reconhecimento de que a escola é
composta de diferentes grupos socioculturais, ou seja, de grupos com va-
178 Corpo, políticas e territorialidades
lores, hábitos, crenças e culturas diferentes. Em função dessa diversidade,
não faz sentido um único currículo para as escolas. Não faz sentido porque
“[...] o padrão curricular não consegue promover justiça para pessoas dife-
rentes. Embora aparentemente pareça promover, não o consegue. É preciso
que as comunidades, com suas culturas e necessidades, desenvolvam as
próprias estratégias de ensino” (HYPOLITO, 2014, p. 17).
Candau (2014) também contribui para esta reexão, ressaltando a
relação entre cultura e educação e explicitando a impossibilidade de uma
experiência pedagógica desculturalizada. Conforme a autora,
Não educação que não esteja imersa nos processos
culturais da sociedade, particularmente, do momento
histórico e do contexto em que se situa. Neste sentido,
não é possível conceber uma experiência pedagógica
‘desculturalizada’, isto é, em que nenhum traço cultural a
congure (CANDAU, 2014, p. 36).
Vivemos em um país com uma gama imensurável de hábitos, cos-
tumes, crenças e culturas indissociáveis dos sujeitos que as vivenciaram,
e tal indissociabilidade está presente também na educação, pois faz parte
do contexto histórico. O reconhecimento das diferenças, no bojo da teoria
crítica, trouxe para o campo do currículo as teorizações multiculturais.
O multiculturalismo constitui-se em um movimento que começou a
aparecer na educação brasileira na década de 1990, ligado principalmente
aos estudos curriculares. Ainda que de forma bastante tênue, a perspectiva
multicultural aparece nos Parâmetros Curriculares de 1997, trazendo para
as políticas curriculares as discussões ligadas a uma prática pedagógica
que busca a valorização das diferentes identidades. Assim,
uma educação multicultural voltada para a incorporação
da diversidade cultural no cotidiano pedagógico
tem emergido em debates e discussões nacionais e
internacionais, buscando-se questionar pressupostos
teóricos e implicações pedagógico-curriculares de uma
educação voltada à valorização das identidades múltiplas
no âmbito da educação formal. No Brasil, o debate assume
especial relevância no contexto da elaboração de uma
proposta curricular nacional os Parâmetros Curriculares
Nacionais PCNs (Brasil, 1997) –, que inclui ‘pluralidade
cultural’ como um dos temas a serem trabalhados
(CANEN,
2000, p. 136).
179Vol I - Subjetividades & Diferenças
De certa forma começa-se a colocar em xeque a ideia de uma única
cultura como parâmetro para o currículo. Candau (2000) destaca que, por
muito tempo, a cultura escolar foi moldada com ênfase na igualdade e que
isto acabou, na prática, contribuindo para um contexto de minimização ou
mesmo silenciamento da pluralidade e diversidade de vozes, de estilos e de
sujeitos socioculturais. Os movimentos sociais e suas reivindicações pelo
direito à diferença, que foram obtendo cada vez mais força, contribuíram
para uma educação que incorporasse questões multiculturais, também en-
tendida como educação intercultural
[...] a partir das reivindicações de diferentes movimentos
sociais que defendem o direito à diferença se tem levantado,
cada vez com maior força, a exigência de uma cultura
educacional mais plural, que questione estereótipos sociais
e promova uma educação verdadeiramente intercultural,
antirracista e antissexista, como princípio congurador do
sistema escolar como um todo e não somente orientada e
determinadas áreas curriculares, situações e grupos sociais
(CANDAU, 2000, p. 158).
Pensar um currículo multicultural implica considerar as relações de
poder que denem as relações sociais em um determinado espaço onde
vivem sujeitos de diferentes culturas: “[...] o multiculturalismo não pode
ser separado das relações de poder que, antes de tudo, obrigaram essas di-
ferentes culturas raciais, étnicas e nacionais a viverem no mesmo espaço”
(SILVA, 2004, p. 85). Os debates em torno do multiculturalismo, inclusive,
não podem “[...] se dar ao luxo de ocultar suas conexões com as relações
materiais mais amplas através do enfoque de questões teóricas divorcia-
das das experiências vividas pelos grupos oprimidos” (McLAREN, 1997,
p. 58). Nesse sentido, podemos armar que, ao assumirmos um currículo
multi/intercultural, estamos reconhecendo que a sociedade brasileira e, em
decorrência, também a escola são constituídas “[...] de identidades plurais,
com base na diversidade de raças, gênero, classe social, padrões cultu-
rais e linguísticos, habilidades e outros marcadores identitários” (CANEN;
OLIVEIRA, 2002, p. 61), construídos incessantemente nesses espaços por
meio das relações sociais de poder, ou seja, as identidades estão sempre
ligadas ao campo político, como salientam os diferentes autores utilizados
em nosso texto.
Para Cortesão e Stoer (2008), o reconhecimento das relações de po-
180 Corpo, políticas e territorialidades
der entre diferentes grupos nos processos culturais e no currículo é funda-
mental para que se possa ter uma perspectiva crítica do multiculturalismo,
apondo-se ao multiculturalismo comercial, liberal, folclórico ou benigno.
Segundo os autores,
se não se reconhecer isto [as relações de poder], corre-
se o risco de a preocupação incidir em ‘estilos de vida’
(multiculturalismo benigno) em vez de existir uma
simultânea preocupação com ‘estilos de vida’ e com
‘oportunidades na vida’ (multiculturalismo crítico)
(CORTESÃO; STOER 2008, p. 189).
O multiculturalismo crítico, na educação, reconhece o outro, ou seja,
“[...] aquele que é oposto a nós, ao nosso modo de ser e agir no mundo”
(NEIRA; NUNES, 2009, p. 215). Ainda conforme os autores, uma educa-
ção multiculturalmente orientada requer um posicionamento favorável à
luta contra a opressão, o preconceito e a discriminação a que historicamen-
te alguns grupos têm sido submetidos:
Na escola democrática destes tempos, uma educação
multiculturalmente orientada implica a assunção de
uma postura clara em favor da luta contra a opressão, o
preconceito e a discriminação aos quais foram submetidos
alguns grupos historicamente desprovidos de poder, sem
que se perca de vista a perene composição de novos grupos
culturais (NEIRA; NUNES, 2009, p. 210).
Pode-se observar que todos os autores, ao defenderem o multicul-
turalismo crítico para o currículo, entendem que ele requer um posiciona-
mento e ações comprometidas politicamente com os grupos que tiveram
sua diferença produzida pela lógica colonial e, no contexto atual, pela co-
lonialidade:
Multiculturalismo em educação envolve [...] um
posicionamento claro a favor da luta contra a opressão
e a discriminação a que certos grupos minoritários têm,
historicamente, sido submetidos por grupos mais poderosos
e privilegiados. Nesse sentido, multiculturalismo em
educação envolve, necessariamente, além de estudos
e pesquisas, ações politicamente comprometidas
(MOREIRA; CANDAU, 2010, p. 7).
181Vol I - Subjetividades & Diferenças
Nesta perspectiva, compreendemos o currículo em uma dimensão
crítica, como algo que tem inescapavelmente uma condição multicultural.
O currículo deve ser capaz de proporcionar uma educação para o reconhe-
cimento do outro, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e cultu-
rais. É importante desenvolver uma negociação cultural “[...] que enfrente
os conitos provocados pela assimetria de poder entre os diferentes grupos
socioculturais nas nossas sociedades [...]” (CANDAU, 2008, p. 52).
Candau (2008), mesmo escrevendo sobre o multiculturalismo, tem
também defendido um currículo intercultural. Porém, a rigor, é possível
dizer que as reexões do campo da interculturalidade crítica e do multicul-
turalismo crítico são muito próximas, pois defendem a necessidade de pro-
blematizar as relações de poder, questionam os processos de subalterniza-
ção, discriminação e racismo e lutam por uma sociedade com justiça, bem
como por uma justiça curricular: “Candau, que investiga desde a década
de 1990 as relações entre culturas e educação, tem utilizado tanto o termo
interculturalidade quanto multiculturismo e, em alguns momentos, o con-
ceito de multi/interculturalidade” (BACKES, 2013, p. 55). Este autor ainda
ressalta, com base em diferentes autores, que a questão não está no uso do
prexo inter- ou multi-, mas na compreensão de que as diferentes culturas
presentes no espaço-tempo curricular devem ser respeitadas e acolhidas,
rompendo com processos de discriminação, preconceito e inferiorização.
Portanto, utilizaremos multiculturalidade e interculturalidade com o mes-
mo sentido, embora saibamos que “podemos encontrar na literatura um
amplo debate sobre as diferenças e aproximações entre multiculturalismo
e interculturalismo, bem como sobre seus impactos na educação” (CAN-
DAU; KOFF, 2006, p. 475).
A interculturalidade é vista por Walsh (2001) como uma meta a ser
alcançada, com quatro dimensões: processo dinâmico e permanente, in-
tercâmbio, espaço de negociação e de tradução, e tarefa social e política.
Segundo ela, a interculturalidade é:
[...] Um processo dinâmico e permanente de relação,
comunicação e aprendizagem entre culturas em condições
de respeito, legitimidade mútua, simetria e igualdade. Um
intercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos,
saberes e práticas culturalmente diferentes, buscando
desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença;
Um espaço de negociação e de tradução onde as
182 Corpo, políticas e territorialidades
desigualdades sociais, econômicas e políticas, e as relações
e os conitos de poder da sociedade não são mantidos
ocultos e sim reconhecidos e confrontados;
Uma tarefa social e política que interpela ao conjunto da
sociedade, que parte de práticas e ações sociais concretas
e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e
solidariedade [...] (WALSH, 2001, p. 10-11).
Assim como Walsh (2001), Fleuri e Ferreira (2006) tem defendi-
do uma educação com um currículo intercultural, colocando em cena os
diferentes grupos culturais e os complexos debates que eles originam nas
relações estabelecidas. A intercultura pode ser vista como um
[...] complexo campo de debate em que se enfrentam
polissemicamente (constituindo diferentes signicados, a
partir de diferentes contextos teóricos e políticos, sociais
e culturais) e polifonicamente (expressando-se através de
múltiplos termos e concepções, por vezes ambivalentes
e paradoxais) os desaos que surgem nas relações entre
diferentes sujeitos socioculturais (FLEURI; FERREIRA,
2006, p. 15).
Esses desaos e relações estão presentes nos currículos. A educa-
ção pautada em um currículo intercultural, segundo Candau e Ko (2006),
deve, portanto, ser caracterizada pela intenção clara e objetiva de propor-
cionar diálogos e trocas entre os diferentes grupos e aqueles que os cons-
tituem, em um processo de permanente construção, reconhecendo que há
diferentes formas de viver como seres humanos: “[...] posso respeitar
verdadeiramente a alteridade do outro se reconheço essa alteridade como
uma outra modalidade possível do humano” (FORQUIN, 1993, p. 63).
Assumir a perspectiva intercultural impacta o currículo e o plane-
jamento da prática educativa, bem como a própria didática, requerendo
novos olhares e proporcionando muitas questões:
Certamente a introdução da perspectiva multi/intercultural
no dia a dia das escolas e da sala de aula provoca muitas
questões para a didática relacionadas com a seleção
dos conteúdos escolares, as estratégias de ensino, o
relacionamento professor-aluno e aluno-aluno, o sistema
de avaliação, o papel do professor, a organização da
sala de aula, as atividades extraclasse, a relação escola-
183Vol I - Subjetividades & Diferenças
comunidade, entre outras. Trata-se de temas sem dúvida
‘clássicos’ no campo da didática, que necessitam ser
revisitados e ressignicados a partir deste novo olhar.
(CANDAU; ANHORN, 2000, p. 14-15).
Além de modicar os temas “clássicos” da didática, a implemen-
tação do interculturalismo na educação e no currículo não é algo simples
e requer vigilância permanente para evitar a reedição de novas formas de
sujeição. Segundo Fleuri (2017), o interesse pelo tema tem levado à pro-
moção do reconhecimento da diversidade cultural, mas, muitas vezes, esse
reconhecimento acontece como uma nova tendência multicultural sem sen-
tido crítico, político, construtivo e transformador: “[...] Contraditoriamen-
te, o esforço por promover o diálogo e a cooperação crítica e criativa entre
sujeitos socioculturais diferentes corre o risco de reeditar novas formas de
sujeição e subalternização” (FLEURI, 2017, p. 178).
Com base nessas teorizações curriculares, estabelecemos contato
com estudantes de Pedagogia e analisamos suas falas sobre o currículo e as
diferenças na perspectiva decolonial.
Um diálogo com estudantes de pedagogia
sobre currículo e diferença decolonial
Iniciamos destacando o que arma Candau (2008, p. 47): “[...] atu-
almente a questão da diferença assume importância especial e transfor-
ma-se num direito, não o direito dos diferentes a serem iguais, mas o
direito de armar a diferença”. A referência à armação de Candau (2008)
está profundamente relacionada ao processo educativo de modo geral e ao
currículo em particular. Entendemos, com a autora, que o direito à diferen-
ça, sem que esta signique inferiorização, é de suma importância para a
produção de um currículo crítico, inter/multicultural.
O acolhimento das diferenças no currículo escolar, ao ser abordado
com as estudantes de Pedagogia, produziu o consenso de que os currículos
devem abranger as diferenças, reconhecendo-as, respeitando-as e conside-
rando-as nos seus mais diversos aspectos.
Diferenças culturais, diferenças comportamentais, diferenças nas
formas de aprendizagem e diferenças de desenvolvimento, assim como
decorrentes de necessidades especiais, foram citadas pelas entrevistadas
184 Corpo, políticas e territorialidades
como contextos que se fazem presentes no currículo escolar e que devem
ser considerados. A armação de que parece que “[...] a escola sempre teve
diculdade em lidar com a pluralidade e a diferença. Tende a silenciá-las
e neutralizá-las. Sente-se mais confortável com a homogeneização e a pa-
dronização [...]” (MOREIRA; CANDAU, 2003, p. 161), está de alguma
forma sendo modicada nos cursos de formação inicial, ao menos no curso
de Pedagogia investigado.
A importância de considerar as diferenças foi percebida na fala das
estudantes e nos contextos por elas apresentados. Suas percepções de cur-
rículo também se mostraram inuenciadas pela realidade do meio em que
estão inseridas e nos quais vivenciaram e vivenciam suas experiências edu-
cacionais.
Juliana, única de nossas entrevistadas pertencente a uma etnia indí-
gena, vive sua experiência na escola da aldeia. Ela destaca a necessidade
de o currículo contemplar a realidade da escola, citando, em particular, o
caso da aldeia e a sua língua materna, que a distingue culturalmente e tam-
bém fortalece sua identidade. Na sua fala, “[...] o diretor, o coordenador,
poderia [mudar o currículo conforme] [...] é a realidade ali na escola [...]”
(Juliana). A estudante faz esta armação porque entende que na aldeia se
utiliza a língua materna, “porque aqui na [escola da] aldeia não é inserida
a língua materna nossa [...]” (Juliana).
A fala evidencia que o currículo escolar proposto pela política o-
cial ignora a realidade do idioma local. Conforme mencionado por Moreira
e Candau (2003), a escola tem diculdade para lidar com a pluralidade e
tende a neutralizá-la, e um dos fatores que provoca essa diculdade é a
própria política curricular ocial, que estabelece uma opressora padroni-
zação. A busca pela adequação do currículo à realidade do idioma local
representa a procura pelo acolhimento da diferença e, de certa forma, uma
insurgência, como argumenta Candau (2020) ao debater sobre as diferen-
ças, a educação intercultural e a decolonialidade.
Também nesse contexto é pertinente trazer a abordagem de Fleuri
(2000), quando menciona o multiculturalismo como meio que possibilita o
pensamento de alternativas para as minorias e, portanto, o acolhimento de
suas diferenças:
[...] o multiculturalismo reconhece que cada povo e cada
grupo social desenvolve historicamente uma identidade
e uma cultura próprias. Considera que cada cultura é
185Vol I - Subjetividades & Diferenças
válida em si mesma, na medida em que corresponde às
necessidades e às opções de uma coletividade. Ao enfatizar
a historicidade e o relativismo inerentes à construção das
identidades culturais, o multiculturalismo permite pensar
alternativas para as minorias (FLEURI, 2000, p. 5).
Para as entrevistadas Gabriela e Valentina, as diferentes formas
de aprendizagem de cada criança justicam a necessidade de os currícu-
los considerarem e abrangerem as diferenças. Gabriela diz que “[...] cada
criança tem um jeito de aprender. Tem criança que, cantando uma música,
aprende; tem criança que você [tem que] sentar e fazer uma atividade com
ela, [daí] ela aprende. Então, eu acho que no currículo deveria ter essas
várias experiências [...]”. Valentina arma que “[...] existem crianças que
aprendem com muito mais facilidade, existem crianças que vão saber as
letras e tem outras que vão demorar muito mais. Tem criança que demora
mais para aprender e tem criança que só de olhar já sabe”.
Curiosamente, Gabriela enfatiza o acolhimento da diferença no cur-
rículo escolar, mas acredita que o currículo deveria apresentar exemplos
para os professores seguirem em determinados contextos, o que, em si, não
deixa de constituir uma forma de roteirização da prática e uma padroniza-
ção.
Eu acho que deveria colocar no currículo, especicar que
cada criança é diferente e fazer determinadas atividades,
dar alguns exemplos para os professores seguirem, dar um
exemplo: “Ah! Vocês podem fazer isso, tal criança age de
uma maneira, vamos tentar trabalhar desse jeito”. Eu acho
que dando alguns exemplos de forma formal (Gabriela).
Sua fala evidencia um aspecto contraditório. Essa contradição pode
estar relacionada à própria trajetória desta estudante e suas múltiplas rela-
ções com a escola, seja quando se constituía como aluna nos diferentes ní-
veis de ensino, seja quando se torna uma estudante que reete criticamente
sobre o próprio processo. A estudante Gabriela demonstra certa transição
de um currículo tecnocrático, que pode e deve apresentar um roteiro para o
currículo escolar; ao mesmo tempo, percebe que o currículo é algo dinâmi-
co e plural, quando diz que “cada criança tem um jeito de aprender”. Não
é possível a criação de “roteiros” para dar aula. Somente uma abordagem
inter/multicultural possibilita ao professor atender às inúmeras diferenças
presentes no currículo escolar. Conforme armam Akkari e Santiago,
186 Corpo, políticas e territorialidades
Uma proposta de educação que considere a pluralidade de
valores, de tempos e ritmos não se limita em introduzir,
na prática educativa, novos conteúdos e novos materiais
didáticos. Mas compreende que tratamento igual não
signica tratamento homogeneizante, que apaga as
diferenças. A promoção da igualdade signica dialogar com
a diferença. Enquanto a diferença for um obstáculo para
o êxito escolar, não haverá reconhecimento às diferenças,
mas produção e reprodução das desigualdades (AKKARI;
SANTIAGO, 2015, p. 35)
Para a estudante Maitê, “então, no currículo poderia se colocar isso,
trabalhar as diferenças, principalmente dentro de sala de aula, para que as
crianças aprendam a se respeitar, entender que em algum momento o cur-
rículo vai atender à especicidade dela”. Na fala de Maitê, é interessante
observar como o reconhecimento da diferença passa pela compreensão e
respeito de um com o outro, o que se aproxima de uma perspectiva de um
currículo inter/multicultural, ou seja, a preocupação de que toda criança
será atendida, de que todas as crianças devem ser respeitadas nas suas di-
ferenças.
Fabiana diz que “[...] a escola, a comunidade, tem que levar em
consideração [as] etapas do desenvolvimento e [o] tempo que as crianças,
que cada criança tem para se desenvolver”, isto é, a escola deve conside-
rar a singularidade de cada um. Fátima, por sua vez, dirige o olhar para as
diferenças daqueles que têm necessidades especiais e suas inclusões no
contexto educacional, fazendo, inclusive, um relato de sua própria experi-
ência.
[...] o currículo, ele tem que se adaptar à escola, o currículo
também se adaptar ao aluno. Por exemplo, tem um menino
com Síndrome de Down, quer dizer que no currículo não
vai ter nada sobre inclusão? Pode ser que haja! Então, tem
que fazer o currículo de acordo com o que está acontecendo
na escola, então, há exibilidade. Na sala de aula, tem que
haver essa troca. Essa experiência que eu tive na sala, era
bonito, pois as outras crianças ajudavam. Por exemplo,
quando eu entrei, as crianças vieram e falaram: “Professora,
ele é assim, assim, assim. Com ele, não pode fazer isso”.
Se as próprias crianças têm esse amor, é a mesma coisa as
professoras da escola e o currículo da escola (Fátima).
187Vol I - Subjetividades & Diferenças
A fala de Fátima leva-nos a pensar um currículo em que “[...] a in-
clusão daqueles que por muito tempo eram considerados com ‘comprome-
timentos’ pode caracterizar um processo de escolarização mais democráti-
co e de reconhecimento da diferença [...]” (UHMANN; SCHWENGBER,
2020, p. 798).
As falas das estudantes, portanto, demonstram preocupação com as
diferenças e com o acolhimento destas pelo currículo escolar, principal-
mente em relação às minorias e suas realidades. Embora as estudantes não
citem de forma explícita em sua fala, elas nos lembram de que uma
educação intercultural, pautada nas culturas e em currículos
como um espaço/tempo de diálogo, requer a ruptura com
as diferentes concepções curriculares construídas desde o
início das teorias curriculares. Isso porque elas não trazem
no seu bojo a preocupação com as diferenças, e a maioria
delas (com exceção da teoria crítica, que reconhece que o
currículo veicula o saber da classe dominante) nem sequer
questiona os processos seletivos que marcam os currículos,
inclusive em relação aos conhecimentos considerados
válidos, porque os vê como universais (NASCIMENTO;
BACKES; PAVAN, 2012, p. 98-99).
As estudantes demonstram, ainda que não utilizem os termos mais
especícos, iniciativas de rompimento com um currículo engessado, pa-
dronizado e imposto. De alguma forma, coloca em xeque a perspectiva
monocultural de currículo e parecem estar atentas ao grande desao que as
escolas e os professores encontram para “[...] abrir espaços para a diversi-
dade, a diferença e o cruzamento de culturas [...]” (MOREIRA; CANDAU,
2003, p. 161).
Outro foco da pesquisa foi compreender se a presença de diferentes
culturas no currículo escolar contribui no processo pedagógico. Candau
(2011, p. 253), com base em Emília Ferreiro, entende que a diferença cul-
tural presente no currículo escolar pode ser transformada em “vantagem
pedagógica”.
Assim como em relação à presença das diferenças nos currículos, as
contribuições que ela traz para o processo educativo também geraram um
consenso, isto é, todas as entrevistadas entendem que ela contribui, sim,
para o processo pedagógico, principalmente pela interação de um com o
outro e pelas aprendizagens que esta proporciona. A estudante Fabiana diz
188 Corpo, políticas e territorialidades
que acredita em tal contribuição “[...] porque a criança, ela aprende pela
interação, então, ter várias culturas a ajuda expandir o conhecimento dela,
a abrir um leque maior para o desenvolvimento”. Nesse mesmo sentido,
Maitê diz acreditar que as multiplicidades culturais auxiliam o processo
educativo “[...] porque a criança aprende a conviver com o outro, uma
outra realidade que não é dela. Ela sai daquele mundinho ali [...] conviver
com uma cultura diferente da sua faz com que você cresça enquanto estu-
dante, enquanto ser humano, em todos os seus aspectos”.
Em um cenário em que eventualmente a multiplicidade cultural ain-
da é ignorada como elemento presente no currículo escolar, não é possível
deixar de perceber que o reconhecimento dessa importância por todas as
estudantes é um avanço. Em suas falas, observamos, como apontava
Candau (2011, p. 245), que, apesar de inúmeros entraves, “nos últimos
anos, a discussão sobre as diferenças culturais nas práticas pedagógicas
vem se armando”.
As entrevistas efetuadas levaram-nos a entender que, embora o
currículo tradicional/tecnocrático tenha “predominado na história da edu-
cação, sempre houve processos de resistência fazendo com que outros
currículos (interculturais) fossem forjados” (NASCIMENTO; BACKES;
PAVAN, 2012, p. 101). Nesse sentido, nas falas das estudantes, há indícios
de uma educação preocupada com a diferença, o que é fundamental para a
construção de um currículo inter/multicultural. Por outro lado, desconside-
rar a diversidade presente no currículo escolar é distanciar-se dos coletivos
de crianças, adolescentes e jovens que frequentam a escola. Não os ouvir,
certamente, é uma forma de expulsá-los do ambiente escolar. “Ter presente
a dimensão cultural é imprescindível para potenciar processos de apren-
dizagem mais signicativos e produtivos para todos os alunos e alunas”
(CANDAU, 2011, p. 242).
Não é demais retomar a fala da estudante Fabiana, quando arma
que “a criança aprende pela interação, então, ter várias culturas a ajuda a
expandir o conhecimento dela”, e também a da estudante Maitê, ao dizer
que “a criança aprende a conviver com o outro, uma outra realidade que
não é dela”. As estudantes corroboram o que abordamos anteriormente,
com base em Candau e Emilia Ferreiro: que a diferença pode ser uma “van-
tagem pedagógica”.
Também podemos dizer com Freire e Shor (1986, p. 64-65) que o
diálogo com diferentes grupos signica “[...] o momento em que os seres
189Vol I - Subjetividades & Diferenças
humanos se encontram para reetir sobre sua realidade tal como a fazem
e refazem [...] Através do diálogo, reetindo juntos sobre o que sabemos
e não sabemos, podemos, a seguir, atuar criticamente para transformar a
realidade”.
Juliana destaca a relevância do professor para o processo educativo
e para que as multiplicidades culturais existentes possam trazer sua con-
tribuição. Para ela, depende “[...] da linguagem do professor, que ele vai
falar com a sua turma [...] porque ele, ali dentro da sala de aula, ele vai dar
exemplo”. Valentina, indiretamente, também relaciona a contribuição das
multiplicidades culturais ao professor, mas apontando-as como facilitado-
ras do processo educativo, “[...] porque você consegue guiar melhor os
estudantes de um determinado assunto”. As estudantes aproximam-se da
armação de Cortesão (2012) quando a autora se refere aos professores,
defendendo que eles
[...] não sejam daltónicos culturais: os daltónicos culturais
são os professores que adotam como hipótese de partida
para o desenvolvimento do seu trabalho que o arco-íris de
culturas presente na sala de aula é, para eles, uma massa
homogénea de alunos, homogénea quanto a saberes,
valores, problemas, interesses (CORTESÃO, 2012, p. 726-
727).
Assim como ocorre entre muitos estudiosos do tema, apesar de ha-
ver consenso entre as estudantes entrevistadas quanto às contribuições que
a multiplicidade cultural traz ao processo educativo, a relação dessa plura-
lidade com o currículo escolar pode ainda ser considerada como um desa-
o. Conforme menciona Candau (2016, p. 30), “[...] o diálogo intercultural
se faz cada vez mais desaante nos diversos âmbitos em que se desenvol-
ve. Na escola representa um desao chamado a ressignicar currículos,
práticas [...] orientado a reinventar as culturas escolares”.
O diálogo intercultural é, portanto, um convite à ressignicação em
determinados contextos, mas, em muitos pontos, ainda incipiente. Como
os próprios autores destacam, o currículo multi/intercultural que lida com
a diferença na perspectiva decolonial é um projeto em construção ele
nunca está dado, é uma conquista cotidiana.
190 Corpo, políticas e territorialidades
Considerações nais
Como vimos, nas últimas décadas no Brasil, movimentos sociais,
teóricos do currículo e professores têm problematizado o currículo mono-
cultural/colonial e mostrado as suas vantagens, seja para a construção de
um processo pedagógico mais signicativo, seja para relações humanas
sem processos de discriminação e inferiorização, seja para uma sociedade
que saiba conviver com as diferenças sem pretender eliminá-las ou estig-
matizá-las. Enm, percebe-se que outros mundos, outros currículos e ou-
tras formas de ser, saber, viver e conviver são possíveis, indo além do que
a lógica ocidental impõe.
Nossa pesquisa mostra que, apesar de tênues, as mudanças estão
presentes no curso de Pedagogia investigado. Todas as estudantes entre-
vistadas mostraram-se favoráveis à presença das diferenças no currículo
e veem-na como uma possibilidade de os alunos aprenderem uns com os
outros, se a professora souber lidar com a diferença cultural dos alunos.
Ainda que essa percepção, por si só, não signique que a diferença
está ou será efetivamente trabalhada nos currículos, dada as condições e as
sobredeterminações que afetam a prática pedagógica, com destaque para a
colonialidade do currículo (PAVAN; TEDESCHI, 2021), ela não deixa de
ser um sopro de esperanças nestes tempos sombrios que vivemos. Tempos
em que o ódio ao diferente tem se intensicado, não raras vezes propagado
pelos próprios agentes públicos responsáveis pelas políticas de educação.
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Felipe Santana Criste
Ueberson Ribeiro Almeida
QQuem precisa da identidade...
para “tornar-se” professor de
educação física escolar?
197
Quem precisa da identidade... para
“tornar-se” professor de educação física escolar?
Este capítulo compõe a nossa dissertação de mestrado denomina-
da “Identidade docente na Educação Física Escolar: análises e diálogos
com o conceito de subjetividade de Félix Guattari” (CRISTE, 2021). A
pesquisa analisou como a identidade docente é formulada e estudada por
autores que discutem a Educação Física Escolar (EFE) nas principais Re-
vistas acadêmicas Área. O interesse no estudo sobre a identidade docente
surge, inicialmente, por notarmos a circulação, no campo acadêmico da
Educação Física (EF), de pesquisas que buscam entender e/ou encontrar
o “elo perdido” de uma identidade docente para a EFE. Esse interesse por
“encontrar” uma nova/outra identidade docente para a EFE surge de forma
mais intensa a partir da crítica de caráter epistemológico produzida pelo
Movimento Renovador da Educação Física (MREF), entre os nais das
décadas de 1970 e 1980.
O MREF inaugurou na década de 1980 um debate que solicitava
uma ruptura com a identidade epistemológica baseada nas ciências biomé-
dicas de cunho positivista. Emblema desse movimento, em 1990, o pro-
fessor João Paulo Medina, em seu icônico livro “Educação Física cuida do
corpo e... ‘mente’”, declarou que a Educação Física deveria “se pensar”,
ou seja, “entrar em crise”. Para o autor, a “crise” signicava o necessário
exercício reexivo sobre a identidade epistemológica que a EF deveria en-
frentar diante do processo de redemocratização do país e da educação.
Nas décadas de 80 e 90 o campo da EF foi o palco de intensos
debates de caráter epistemológicos alicerçados, sobretudo, nas Ciências
Sociais e Humanidades. De acordo com Pich e Albano (2010), a produ-
ção de diversas abordagens pedagógicas passou a fazer parte do cenário
acadêmico da Educação Física, bem como foi possível observar o surgi-
mento de entidades acadêmicas que buscaram aglutinar a massa crítica da
área. As diversas propostas de constituição de uma nova ciência, área de
conhecimento ou campo pedagógico, geraram ao mesmo tempo um reno-
vado impulso que permitiu qualicar a área, bem como uma vertiginosa
profusão de propostas que apresentaram, em alguns casos, diculdades de
comunicação sobre um objeto comum “Sendo limitada ou nula a tendência
58 - Título inspirado pelo famoso texto de Stuart Hall intitulado ‘Quem precisa da identidade?’.
58
198 Corpo, políticas e territorialidades
a compartilhar de uma compreensão mais ou menos consensuada em torno
da identidade acadêmica da Educação Física” (PICH; ALBANO, 2010, p.
1).
A crítica de cunho mais epistemológico produziu, com efeito, um
amplo e intenso debate em âmbito pedagógico sobre a exigência de ques-
tionar os processos de formação dos professores de EF e das identidades
docentes. Nesse sentido, O MREF – ao imprimir o que se convencionou
denominar de “virada culturalista” na Educação Física – guardadas suas
nuances e diferenças internas, fez/faz forte crítica à identidade docente
tecnicista, biologicista, esportivista e, principalmente, a todas aquelas que
não levavam em consideração a dimensão cultural e histórica das práticas
corporais e da EF como componente curricular, engajada com o projeto
emancipatório educacional da escola na sociedade democrática.
Passados mais de cinco décadas do início da “crise de identidade”
(MEDINA, 1990) da EF e da “virada culturalista”, nos interessou investi-
gar: como a identidade docente na EF é pensada pelos autores que discu-
tem a EFE? Quais problemas e desdobramentos políticos-pedagógicos se
engendram ao conjecturarmos o sujeito da EFE a partir da “reivindicação
identitária” (ROLNIK, 1997)?
De modo bastante sucinto, na obra “Identidade e Diferença” (2014),
os autores Tomaz Tadeu da Silva, Stuart Hall e Katrhryn Woodward nos
localizam no debate e compartilham do argumento de que o conceito de
identidade pode ser compreendido por duas formas distintas, uma que par-
te de uma ideia essencialista, principalmente da retomada de um passado
histórico heroico fundado na dimensão biológica naturalizada e imutável.
E outra, inclinada sobre a compreensão identitária como produção de mu-
danças a partir de movimentos sociais que emergem em momentos históri-
cos singulares e por lutas políticas para armar modelos identitários dife-
rentes dos vigentes e hegemônicos. No sentido que os autores atribuem ao
debate, identidade e diferença foram, historicamente, concebidas como fa-
ces distintas de uma mesma moeda, portanto, dimensões interdependentes.
Similar à proposta acima colocada pelos supracitados autores, na
qual a identidade pode ser compreendida por um viés essencialista/univer-
59 - Lopes e Lara (2018), apresentam que o conceito de cultura torna-se central na área, principalmente, relacionado à
Educação escolar a partir de uma entrevista com Valter Bracht, onde este autor postula que conceito de ‘cultura corporal’
e, mais tarde, o de ‘cultura corporal de movimento’ promovem uma ‘virada culturalista’ na educação física no momento
em que o debate na área entendeu que o objeto da Educação Física faz parte do mundo da cultura.
59
199Vol I - Subjetividades & Diferenças
sal, bem como por um entendimento de sua provisoriedade e dinamicidade,
Bauman (2005) corrobora dessa ambiguidade conceitual na problematiza-
ção da identidade na Modernidade Líquida. O autor mostra que a noção de
uma “crise” da identidade está relacionada à concepção de uma identidade
essencialista e primordial, e a crise está vinculada a essa sua fragilidade
de ser “eterno” e natural, todavia “A fragilidade e a condição eternamen-
te provisória da identidade não podem mais ser ocultadas” (BAUMAN,
2005, p. 22).
Como aponta Bauman (2005) a ideia de identidade e sua produção
foram ancoradas em uma falsa noção de estabilidade, produção de iden-
tidade que esteve vinculada à formação dos Estados-nações, na qual es-
tes ofereciam por meio de uma pluralidade simbólica, insumos para essa
formação identitária. Bauman (2005, p. 26) mostra que “Nascida como
cção, a identidade precisava de muita coerção e convencimento para se
consolidar e se concretizar numa realidade [...], e a história do nascimento
e da maturação do Estado moderno foi permeada por ambos.” Identidade
essa, portanto, fortemente ancorada em processos de sentimento de perten-
cimento nacionalista. Similar às concepções de Silva, Hall e Woodward
(2014), a identidade nacionalista necessita da diferença, do outro para se
fazer existir, já que [...] a identidade nacional objetivava o direito mono-
polista de traçar a fronteira entre “nós” e “eles” (BAUMAN, 2005, p. 28).
O supracitado autor mostra que essa ideia de uma identidade calci-
cada e estática, fortemente vinculada a um Estado-nação foi se modican-
do e ruindo com as mudanças da contemporaneidade e das novas formas
de interações socioeconômicas mundiais. Para Bauman (2005, p. 35), “Em
nossa época líquido-moderna, em que o indivíduo livremente utuante,
desimpedido, é o herói popular, ‘estar xo’ ser ‘identicado’ de modo
inexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto”.
Na esteira desta problematização, nos interessou analisar como a
produção das identidades docentes é concebida no âmbito dos estudos so-
bre a EFE. Estabelecemos o diálogo com o conceito de subjetividade e do
paradigma ético-estético-político proposto por Félix Guattari no sentido
de pensar o sujeito docente da EF e sua formação como armação da di-
ferença, para além das compreensões clássicas da identidade como lugar
xo, estável e seguro. Para Guattari e Rolnik (1996), a noção clássica e
essencialista de identidade acaba por dicultar os processos de criação de
constelações referenciais e despotencializa a luta pelo deslocamento das
relações de poder na sociedade.
200 Corpo, políticas e territorialidades
Metodologia
O método escolhido para obter os dados de análise foi o de revisão
bibliográca, dispositivo de pesquisa que “[...] recupera o conhecimen-
to cientíco acumulado sobre um problema” (RODRIGUES, 2007, p. 4).
Dessa maneira, na revisão bibliográca realizamos um levantamento de
artigos acadêmicos em periódicos no campo da Educação Física Escolar,
com o objetivo de compreender como o conceito de identidade vem sendo
abordado pela área.
Foram escolhidas nove revistas eletrônicas da área da Educação Fí-
sica, sendo elas: Revista Movimento; Revista Brasileira de Ciências do
Esporte (RBCE); Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (RBE-
FE); Revista Motriz; Revista Brasileira de Ciência e Movimento (RBCM);
Revista da Educação Física UEM; Revista Pensar a Prática; Revista Motri-
vivência; e Arquivos em Movimento (revista eletrônica da Escola de EF e
Desportos da UFRJ). O descritor utilizado foi “identidade docente”.
Após essa seleção, realizamos a busca diretamente na base de dados
de cada periódico. Posteriormente produzimos etapas de triagens para que
chegássemos de forma mais assertiva nos artigos que discutissem o cerne
da temática da pesquisa, com isso, alcançamos o montante nal de 26 ar-
tigos, os quais apresentavam a questão da identidade docente como ponto
central de pesquisa. As buscas nas plataformas dos periódicos foram feitas
no primeiro semestre de 2020. Inicialmente, zemos buscas apenas por
meio dos descritores, sem estabelecer recorte temporal. Percebemos, no
entanto, que todos os artigos encontrados e, posteriormente selecionados,
são datados do período entre 2008 a 2020.
A partir das leituras feitas de forma integral desses artigos, produ-
zimos nossas categorias de análises. Na categoria “Experiências do su-
jeito e produção de identidades docentes na Educação Física Escolar”,
percebemos que a identidade é compreendida pelos autores a partir da
dimensão cronológica das experiências socioculturais. Identicamos que
para produzirem e formularem como se desenvolve a formação da iden-
tidade docente na EFE, os autores trabalham por vias de três passagens
temporais progressivas, estabelecidas como: “Identidade anterior à forma-
ção inicial em EF”, “Identidade durante a formação inicial em EF” e, por
m, Identidade após a formação inicial em EF”. Todavia, para o espaço
deste capítulo, especicamente, analisaremos a subcategoria “Identidade
201Vol I - Subjetividades & Diferenças
durante a formação inicial em EF”, pois vericamos que é nessa etapa que
os autores dos artigos se comprometem, de forma mais intensa, em suas
análises, relacionando a questão da aprendizagem/formação docente com a
construção da identidade prossional para atuação na EFE. Para mais bem
apresentar os artigos e seus respectivos autores que se constituíram como
fonte de análise nessa categoria, elaboramos o Quadro abaixo:
Quadro 1 - Artigos selecionados para subcategoria
“Identidade Docente docente durante a Formação Inicial em Educação Física”.
Título do artigo Autor(s)
Importância do PIBID para a formação da
identidade do professor de educação física
Fonte - Elaborado pelos autores, 2021.
Ano
O processo de construção da identidade
prossional docente antes e durante um
curso de licenciatura em educação física
O PIBID e o percurso formativo de
professores de educação física
Entre o ofício de aluno e o habitus de
professor: Os Desaos do Estágio
Supervisionado no processo de
iniciação à docência
Identidade docente no ensino superior de
educação física: aspectos epistemológicos
e substantivos da mercantilização
educacional
Fonseca e Torres
Identidade docente e educação física:
Um estudo de revisão sistemática
Trajetória de estudantes na formação inicial
em educação física: o estágio curricular
supervisionado em foco
PIBID educação física: experiências
na formação de professores
Kronbauer e Krug
Glates e Gunther
Souza Neto et al.
Neira e Vieira
Pires et al.
Pereira et al.
Matter et al.
2013
2014
2015
2016
2016
2017
2018
2019
Dentre os temas e assuntos que compõem a subcategoria, elegemos
os três pontos principais para a organização deste capítulo, a saber: “O
PIBID e a produção da identidade docente”; O estágio curricular supervi-
sionado: entre o discurso identitário e a aprendizagem inventiva; “O currí-
culo: produção de subjetividade e a identidade.
202 Corpo, políticas e territorialidades
O Pibid e a produção da identidade docente
Neste subtópico, “O PIBID e a produção da identidade docente”,
mostraremos e analisaremos como o PIBID é utilizado para pensar e en-
tender a construção da identidade docente na EF. O Programa permite um
momento no qual o discente terá a oportunidade de entrar em contato, de
forma supervisionada, com o cotidiano escolar e experimentar de maneira
inicial as práticas do ser/fazer docente.
Os autores e os seus respectivos artigos que utilizaremos neste sub-
tópico são: Fonseca e Torres (2013) “Importância do PIBID para a for-
mação da identidade do professor de educação física”, Glates e Gunther
(2015) “O PIBID e o percurso formativo de professores de educação físi-
ca” e Matter et al. (2019) “PIBID educação física: experiências na for-
mação de professores”. Fonseca e Torres (2013), Glates e Gunther (2015)
e Matter et al. (2019) utilizam das experiências dos discentes por meio do
PIBID como elemento na construção da identidade docente da EFE. Os
autores mostram como as vivências em espaços escolares são relevantes
para fornecer subsídios e nutrir a identidade docente. Isso signica armar
que com a experiência no PIBID “[...] os egressos conseguem se ‘encontrar
enquanto professor’, diferente das condições previstas no currículo da gra-
duação que não oportunizam uma imersão no universo da escola de forma
a captar toda a sua complexidade” (GLATES; GUNTHER, 2015, p. 63).
Apesar de entendermos a importância política para a educação e
os benefícios obtidos quando o discente entra em contato com o espaço
escolar e experimenta o exercício da docência, percebemos que a leitura e
a proposta que os autores Glates e Gunther (2015) formulam para analisar
como se desenvolve a dinâmica entre o sujeito discente, o espaço escolar e
o seu fazer, estão estruturados por uma proposta pautada na “recognição”
(KASTRUP, 2005), em que os fenômenos externos expressam-se em re-
presentações e formas universalizadas a serem reproduzidos.
Na passagem acima os autores estruturam essa relação por meio de
uma leitura dicotômica, dentro/fora, sujeito/ambiente, discente/escola, na
direção da maturação de uma determinada identidade docente via obten-
60 - O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) é um programa da Coordenação de Aperfeiçoa-
mento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e tem por objetivo fomentar a formação inicial e continuada de prossionais
do magistério básico, numa ação que articula a participação de estudantes dos Cursos de Licenciatura das Universidades
Públicas nas escolas da Educação Básica sob a supervisão de professores da Universidade.
60
203Vol I - Subjetividades & Diferenças
ção/captação da complexidade simbólica que sustenta o fazer/ser docente
e a escola. Podemos perceber o modelo de recognição na passagem “uma
imersão no universo da escola de forma a captar toda a sua complexi-
dade”. Ou seja, aqui os autores trabalham com a ideia de que o sujeito
irá obter, tomar para si em uma compreensão dicotômica do “dentro/fora”
todo os modos denidos do que é o fazer docente, a escola e sua com-
plexidade.
Com o intuito de pensarmos o sujeito docente para além de um exer-
cício de captações/absorções dos conjuntos de códigos e símbolos xados
na escola e, de modo a fazer uma análise a partir da subjetividade pensada
por Guattari sobre os uxos dinâmicos dos contextos, convidamos um de
seus importantes conceitos para o diálogo com os autores da Educação
Física sobre o tema da constituição do sujeito docente: o de agenciamento
coletivo de enunciação (DELEUZE; GUATTARI, 2011).
Guattari e Rolnik (1996, p. 381) citam que o conceito de agencia-
mento coletivo de enunciação é “[...] uma noção mais ampla do que as de
estrutura, sistema, forma etc. Um agenciamento comporta componentes
heterogêneos, tanto de ordem biológica, quanto social, maquínica, gnosio-
lógica, imaginária”. Os agenciamentos, em contexto geral, se dão na jun-
ção dos conjuntos materiais com os signos, que tencionam e unem diferen-
tes grupos materiais e simbólicos que emergem em um plano de imanência.
O conceito de agenciamento coletivo nos ajuda a pensar a relação
sujeito/escola e o fazer docente para além uma leitura verticalizada, por
meio da simples captação das representações universalizadas sobre o que
é o ser docente. Como revela Zourabichvili (2004, p. 9), a ideia de agen-
ciamentos “Mais do que a um uso equívoco, ela remete então a polos do
próprio conceito, o que interdita, sobretudo, qualquer dualismo do desejo e
da instituição, do instável e do estável”.
Portanto, o mencionado autor nos indica uma custosa indissociação
entre o que se coloca na esfera do sujeito docente e da escola, que acaba
por contrapor a ideia da recognição, no qual o sujeito irá somente interna-
lizar os modelos, representações e “verdades” encontradas na escola, para
assim ser tornar professor. Desta maneira, nossa proposta é pensar o sujeito
docente e os ambientes escolares formulados e produzidos de formas indis-
sociáveis, em processos de transversalização.
A ideia da política de recognição é observada novamente quando
Fonseca e Torres (2013, p. 2) citam que “Esta inserção no cotidiano das
204 Corpo, políticas e territorialidades
escolas, [...], propicia conhecer a rotina diária da escola, observar como são
estabelecidas as relações entre os diferentes protagonistas deste contexto”.
Na passagem supracitada os autores trabalham com a compreensão de que
preexiste de maneira “natural” e xa certa rotina escolar, uma concepção,
ideia pré-concebida do que é a escola, o fazer docente e suas dinâmicas,
restando assim ao sujeito discente conhecer/capturar esses modos já exis-
tentes. Corroborando com esse modo de formar professores de EF, Glates
e Gunther (2015, p. 61-62), armam que o contato com a docência durante
a formação inicial serve para “[...] introduzir o acadêmico na escola e lhe
oportunizar o conhecimento sobre as rotinas escolares”.
Para pontuarmos de forma mais precisa a manutenção do modelo
da recognição, notamos tanto na passagem dos autores Fonseca e Torres
(2013), quanto dos autores Glates e Gunther (2015), a utilização da palavra
“rotina”. Destacamos essa palavra, pois ela remete a algo que se repete,
aludindo a algo xo. Quando os autores trabalham com a ideia de aprender
uma “rotina escolar” podemos inferir que estão pontuando que há certo
modo que não se altera muito do que é a escola, xados por parâmetros
que sustentam e denem o ser/fazer docente. E aqui, quando trabalhamos
a relação sujeito docente/espaço escolar via os agenciamentos coletivos
de enunciação partimos da ideia de certa precariedade das coisas xadas e
armamos os acontecimentos na sua provisoriedade. Como assinala Kas-
trup (2005, p. 1276), “Os processos de subjetivação e de objetivação fa-
zem-se num plano aquém das formas, plano de forças moventes que, por
seu agenciamento, vêm a congurar formas sempre precárias e passíveis
de transformação”.
Portanto, quando buscamos trazer a noção dos agenciamentos co-
letivos de enunciação para pensarmos a dinâmica entre o sujeito/escola, a
intenção se direciona a analisarmos o processo que se estabelece entre o
sujeito e os conjuntos de multiplicidades semióticas que o atravessa. Como
mostra Zourabichvili (2004, p. 9)
Na realidade, a disparidade dos casos de agenciamento
precisa ser ordenada do ponto de vista da imanência,
a partir do qual a existência se mostra indissociável de
agenciamentos variáveis e remanejáveis que não cessam
de produzi-la.
Buscamos, desse modo, se afastar de esquemas do funcionamento
da aprendizagem pautados por processos verticalizados, nos quais o sujeito
205Vol I - Subjetividades & Diferenças
é compreendido como captador de informações disponíveis no território
escolar, o qual guardaria os segredos e verdades do que é ser/fazer docente.
Partilhamos da ideia de que o sujeito está posto em uma multiplicidade he-
terogênea de vetores que o atravessa, que não se xam em ordens de causa
e efeito em um desenvolvimento ordenado. E que, portanto, a aprendiza-
gem do sujeito é conduzida pelos agenciamentos e seus códigos diversi-
cados, indissociando a instituição dos processos de produção de desejo do
sujeito (ZOURABICHVILI, 2004).
Notamos, assim, que para os autores Glates e Gunther (2015) e Mat-
ter et al. (2019), quando o sujeito discente (futuro professor) está em conta-
to com o conjunto de códigos e condutas que sustentam o “mundo” do ser/
fazer docente, ele aprenderá por meio da captura de representações sobre
a docência e acabará por constituir e nutrir uma identidade docente. Perce-
bemos que essa ideia ganha coro quando os autores Matter et al. (2019, p.
15) dizem que o PIBID é “[...] um programa onde a escola é protagonista
do processo formativo, se transformou em conhecimentos que possibilitam
a formação inicial de professores contextualizados com campo de atuação
futura, favorece a construção da identidade docente”. Essa armativa se
consolida também na passagem dos autores Glates e Gunther (2015, p. 53)
no qual “o PIBID representa um importante espaço formativo e que pro-
picia a antecipação da experiência docente, incidindo sobre a socialização
prossional e construção da identidade docente desses acadêmicos”.
Para trabalharmos outra forma de aprendizagem do sujeito e forma-
ção docente, trazemos ao debate o conceito de “aprendizagem inventiva”
(KASTRUP, 2005). Esse conceito critica os modelos representacionais de
cunho cognitivista, o qual se limita a resolução de problemas. Em conjunto
com a ideia de agenciamento coletivo de enunciação, propomos pensar o
processo de formação docente por outra dinâmica, a da criação, de uma
aprendizagem na qual “[...] a invenção é sempre invenção do novo, sendo
dotada de uma imprevisibilidade que impede sua investigação e o trata-
mento no interior de um quadro de leis e princípios invariantes da cogni-
ção” (KASTRUP, 2005, p. 1274).
Portanto, apoiados pela premissa de uma “aprendizagem inventiva”,
apostamos na potência da cognição produtora, de produzir diferenciação,
da sua capacidade geradora de se diferenciar de si mesma, uma inven-
ção de problemas. Como assinala Kastrup (2005, p. 1276) “[...] este modo
de entender a cognição encontra ressonância nos estudos da produção da
206 Corpo, políticas e territorialidades
subjetividade de Deleuze e Guattari. Neste contexto, subjetividade e ob-
jetividade não são entidades preexistentes, mas efeitos de agenciamentos
coletivos.” Isso signica que
[...] a invenção não é um processo que possa ser atribuído
a um sujeito. A invenção não deve ser entendida a partir
do inventor. O sujeito, bem como o objeto, são efeitos,
resultados do processo de invenção (KASTRUP, 2005, p.
1275).
Com base no conceito de aprendizagem inventiva, apostamos pen-
sá-la via arranjos de criação, invenção, que o sujeito situado em um terri-
tório inundado por um conjunto heterogêneo de símbolos, códigos e con-
dutas possa criar alianças e negociações para produzir diferenciação, outro
modo de ser/fazer docente, em que o sujeito (docente) e o mundo (escola)
são coengendrados pela prática, imbricados em uma dinâmica de constan-
te mudança, em que não há uma escola anterior, tampouco uma forma de
ser docente preexistente e totalizada a ser copiada. Pensamos a formação
docente e a escola por processos inventivos, no qual o aprender está agen-
ciado ao processo de criação e de mudanças nas práticas, nos discursos, nas
instituições, nos sujeitos.
O estágio curricular supervisionado:
Entre o discurso identitário e a aprendizagem inventiva
Outro ponto que circula sobre a questão do contato com a docên-
cia e que ganha importância para a formação da identidade docente são
as disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado (ECS), vivenciadas
pelos estudantes de Licenciatura em EF durante sua formação inicial. Para
discutir essa problemática, selecionamos os seguintes artigos: “O processo
de construção da identidade prossional docente antes e durante um curso
de licenciatura em educação física” de Kronbauer e Krug (2014); “Entre
o ofício de aluno e o habitus de professor: os desaos do estágio supervi-
sionado no processo de iniciação à docência”, de Souza Neto et al. (2016)
e; “Trajetória de estudantes na formação inicial em educação física: o
estágio curricular supervisionado em foco”, de Pereira et al. (2018).
Mesmo que o contato com o território escolar seja mediado pelo
professor da disciplina e que o discente ainda esteja em um regime for-
207Vol I - Subjetividades & Diferenças
mativo, os autores veem que estar em proximidade com o espaço escolar
é fundamental para o aluno ganhar experiência de atuação na sua futura
prossão. Nesse sentido, Souza Neto et al. (2016, p. 312) armam que o
estágio supervisionado propõe um diálogo com os conhecimentos
[...] que compõem a aprendizagem da docência para que
os estudantes da licenciatura possam construir um habitus
especicamente docente (PERRENOUD, 1993), entendido
como um conjunto de maneiras de atuar e de perceber a
realidade na situação de ensino escolar.
Para Pereira et al. (2018, p. 11), o ECS é de suma importância para
a construção identitária, já que “[...] no decorrer dos estágios, o estudante
estagiário adquire e desenvolve não só competências e habilidades para
docência como também sua identicação prossional”. Em culminância
ao valor dado à disciplina de ECS para a formação identitária docente,
Kronbauer e Krug (2014, p. 403) citam que a
[...] identicação como futuro professor durante a realização
do curso, citada pelos acadêmicos [...], está relacionada
ao fato dos Estágios Curriculares Supervisionados
possibilitarem uma maior identicação como professor
docente.
Para Pereira et al. (2018, p. 7), esse aspecto relacionado à formação
identitária e ao ECS se intensica, pois “[...] o momento do ECS é desen-
cadeador de fazeres e saberes pedagógicos que proporcionam o conheci-
mento da realidade escolar, da dimensão das relações políticas e internas
da escola”. Assim, o que vericamos tanto no contato com o PIBID quanto
no ECS é que os autores Fonseca e Torres (2013), Glates e Gunther (2015),
Matter et al. (2019) Kronbauer e Krug (2014), Souza Neto et al. (2016) e
Pereira et al. (2018), quando pensam a formação da identidade docente,
armam que o período da formação inicial que envolve o contato com a
docência se faz como um dos fatores de maior impacto sobre a identidade
dos futuros professores.
Para os autores, à medida que o discente entra em contato com o
espaço escolar via PIBID ou ECS, ele se depara com as miríades de sím-
bolos, códigos e condutas relacionadas à cultura escolar. Junto a isso, o
aluno nesse espaço passa a compreender o que é o fazer docente. Segundo
os autores citados, estar no território escolar, agora não mais como aluno,
208 Corpo, políticas e territorialidades
faz com que esse discente incorpore, entenda e absorva toda a múltipla e
ampla gama semiótica localizada nesse espaço.
Faz-se necessário, porém, voltarmos nossa atenção para as questões
e problemáticas encontradas nos modelos explicativos dos autores, anali-
sando o PIBID e o ECS, principalmente sobre a relação entre discente e o
contato com a docência, a m de percebermos os desdobramentos causados
por tais premissas. Com isso, podemos produzir algumas questões, como:
Quais os fatores limitantes que essas proposições podem gerar? Basta estar
nesse espaço e absorver os conjuntos simbólicos para se desenvolver como
um prossional docente? A própria amálgama semiótica provocada pela
escola que diz o que é ser/fazer docente nos permite produzir intervenções
para além desses conjuntos de códigos denidos e pretendido pela escola?
Inicialmente, entendemos que os aspectos que abrangem o “contato
com a docência” são questões relevantes para a formação do discente e o
futuro exercício da prática de intervenção na EFE. É importante não des-
qualicarmos o destaque que o contato com a docência tem para a consti-
tuição da docência e do futuro prossional, já que nesse espaço o discente
pode se relacionar com um acervo de saberes e práticas que o ajudará em
suas intervenções.
Todavia, colocamos em análise a forma como se articulam e são
pensadas tais tomadas de saberes pelos discentes, xadas no complexo
contexto escolar. Assim, o que queremos problematizar e investigar por
meio da subjetividade são os sistemas teóricos/analíticos nos quais os au-
tores dos artigos se orientam para pensar a formação desse sujeito e as ar-
madilhas nas quais se pode cair quando articulam uma criação identitária.
Há certa intencionalidade, uma noção do que é o fazer/ser docente,
que circula e é produzida no espaço escolar. Sobre essa questão, propomos
um cuidado. Perceber até que ponto os conjuntos de códigos, estruturas de
regras e formas de orientar o fazer docente, que permeiam a cultura escolar
e que provocam um determinado “eu docente”, é limitador ou potencia-
lizador para esse sujeito em formação. Partindo dessa premissa, destaca-
mos alguns fragmentos dos artigos dos autores Souza Neto et al. (2016) e
Pereira et al. (2018). Esses nos serviram de base para perceber em quais
argumentos os autores se sustentam para pensar essa identidade e para po-
dermos, posteriormente, articular e fornecer discussões referentes a tais
ideias com o conceito de subjetividade de Guattari.
Souza Neto et al. (2016) pensam/analisam que estar em contato com
209Vol I - Subjetividades & Diferenças
o espaço escolar e a docência produz um “habitus especicamente docen-
te” que seria uma determinada coleção de modos de praticar e assimilar a
realidade no cenário de ensino escolar. Essas armações se repetem, como
vistas no PIBID, em uma compreensão de que o discente/futuro professor
deve ser um receptor de códigos, símbolos e modos de fazer que constitui
o campo da docência da realidade escolar.
Esse caráter consumidor de identidades reforça a negação, em cer-
ta parte, de meios singulares e criativos que possam se desenvolver nas
dinâmicas estabelecidas nesses espaços. Entra para o jogo de análise com
pouca força o sujeito afectador e os múltiplos atravessamentos nele esta-
belecidos. Podemos perceber no trecho “construir um habitus especica-
mente docente”, um modo de compreensão que reproduz uma noção bi-
nária (dentro/fora) dos uxos afetadores ao qual o sujeito está exposto na
escola. Outro momento que podemos perceber o esquema de captação dos
planos dessa forma já existente é quando os autores Pereira et al. (2018, p.
7, grifo nosso) dizem que o “[...] ECS é desencadeador de fazeres e sabe-
res pedagógicos que proporcionam o conhecimento da realidade escolar,
da dimensão das relações políticas e internas da escola e o sentimento de
ser docente”. Tal compreensão parte de concepção preexistente do fora e
posiciona o sujeito como capturador de certo modo já estabelecido de ser/
fazer docente através de uma relação organizada de um eu “consciente”,
entendido como o foco, a essência e condutor dos modos de se obter o sa-
ber (KASTRUP, 2005).
Para avançarmos nas análises e pensarmos para além de modelos
que trabalham via realidades já dadas, novamente convidamos o conceito
de agenciamento coletivo de enunciação. Pensado por meio dessa compre-
ensão, o agenciamento coletivo de enunciação está dado na ordem da lin-
guagem em seu caráter de desdobrar modos de ação, práticas em posição
de imanência, pois, para Deleuze e Guattari (2011, p. 23),
[...] um tipo de enunciado só pode ser avaliado em função
de suas implicações pragmáticas, isto é, de sua relação com
pressupostos implícitos, com atos imanentes [...], que vão
introduzir novos recortes entre os corpos.
Com isso a escola está tomada por esses processos dos agenciamen-
tos coletivos de enunciação, pois é por meio de um conjunto heterogêneo
de signos e símbolos ancorados na sua materialidade, que se faz e consolida
210 Corpo, políticas e territorialidades
sua existência quanto uma instituição escolar, em um processo imanente.
Assim, o sujeito docente e a instituição escola não se encontram em
espaços opostos, em uma delimitação fortemente xada, as duas instâncias
se articulam e vão se produzindo de forma constante, em uma dinâmica
nunca nita. Zourabichvili (2004, p. 9) acrescenta que “[...] o indivíduo
por sua vez não é uma forma originária evoluindo no mundo como em um
cenário exterior [...] aos quais ele se contentaria em reagir: ele só se cons-
titui ao se agenciar, ele só existe tomado de imediato em agenciamentos”.
Esta apreensão nos ajuda a compreender a relação profunda e não
fracionada nos procedimentos da constituição do indivíduo e a “realida-
de”. Este sujeito agenciado se encontra xado no complexo maquinário
criativo de existência nunca nalizado. Desse modo, “[...] para o pros-
sional do social tudo dependerá de sua capacidade de se articular com os
agenciamentos de enunciação que assumam sua responsabilidade no plano
micropolítico” (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 38). Assim, o estudante
da licenciatura em EF não está no campo “fora”, que se congura somen-
te em sujeito receptor de estímulos, mas sim compondo e afetando esses
movimentos de agenciamentos na/da instituição escolar, portanto, “Cada
indivíduo deve lidar com esses grandes agenciamentos sociais denidos
por códigos especícos, que se caracterizam por uma forma relativamen-
te estável e por um funcionamento reprodutor [...]” (ZOURABICHVILI,
2004, p. 9).
Com isso, esse tipo de análise/leitura extrapola e se opõe à dinâmica
estabelecida entre o sujeito e o espaço escolar proposta pelos autores dos
artigos estudados, visto que não há separação entre sujeito discente/escola
no momento de articular e compreender os procedimentos de afetações e
no modo de engendrar a produção do indivíduo, por isso buscamos nos
afastar da “[...] política da recognição, que toma o conhecimento como
uma questão de representação” (KASTRUP, 2005, p. 1281).
Por m, ressaltamos novamente que esse ponto do contato com a
docência se faz importante, mas temos que ter cuidado para não sermos ab-
sorvidos pelos processos codicadores dos agenciamentos enunciativos da
escola e produzidos mediante uma subjetividade fabricada. Desse modo,
junto com os agenciamentos de enunciação coletiva, trazemos novamente
a ideia de “aprendizagem inventiva”, para pensarmos e propormos outras
maneiras de conceber a produção do sujeito docente e sua formação. Em
relação à aprendizagem inventiva, Kastrup (2005, p. 1280) arma que so-
211Vol I - Subjetividades & Diferenças
mente compreendendo a cognição como invenção podemos perceber que
nossas práticas podem resultar em “[...] subjetividades que encarnam o
funcionamento inventivo, e outras resultam em subjetividades recogniti-
vas, que se limitam a tomar o mundo como oferecendo informações pron-
tas para serem captadas.”
O currículo: Produção de subjetividade e a identidade
Neste subtópico iremos trazer o currículo para debatermos sobre a
questão da identidade. Mostraremos e posteriormente analisaremos como
os autores dos artigos selecionados na pesquisa pensam a temática do cur-
rículo em suas relações com a identidade docente na EFE. Os artigos e res-
pectivos autores utilizados neste subtópico foram: “Identidade docente no
ensino superior de educação física: aspectos epistemológicos e substan-
tivos da mercantilização educacional”, de Neira e Vieira (2016) e; “Iden-
tidade docente e educação física: um estudo de revisão sistemática”, de
Pires et al. (2017).
Uma das questões que se destaca na composição da formação da
identidade docente nos artigos estudados é o currículo do curso de gradu-
ação/formação em EF. Para Neira e Vieira (2016) e Pires et al. (2017), o
currículo ganha destaque, pois nele está inserido a dimensão política do
curso e, com isso, o tipo de formação que o currículo planeja para o sujeito.
Por essa via Neira e Vieira (2016, p. 784) entendem que os currículos
[...] agregam conceitos e conhecimentos sobre como deve
ser a prática pedagógica, a relação com os alunos, seleção
de conteúdos e instrumentos de avaliação, além da condição
político-pedagógica – em suma, sua forma de ensinar.
Com base no que foi dito pelos autores na citação, visualizamos
que o currículo fornece ao sujeito docente formas de pensar e organizar as
ferramentas para lidar com o conjunto de arranjos necessários para as suas
práticas. Há também no currículo disputas, conitos e interesses de inten-
ções políticas, vide que a ação docente é, por excelência, uma prática de
cunho social, em que não há neutralidade.
Segundo Neira e Vieira (2016, p. 786), “[...] o currículo que forma
futuros professores é produto de tensões, descontinuidades, rupturas e dis-
212 Corpo, políticas e territorialidades
putas culturais, sociais e políticas”. Desse modo, esse conjunto de embates
políticos-pedagógicos se desdobra nos moldes e formas com as quais esse
discente irá organizar suas aulas e, por consequência, atinge a formação
de sua identidade docente. Em seguida, para Neira e Vieira (2016, p. 786)
“Investigar a identidade docente é atentar para o contexto, desde aspectos
da gestão do Estado até as especicidades do componente curricular, pas-
sando pela visão de rede de ensino, cotidiano da escola e interação com os
alunos”. Concomitante aos argumentos dos supracitados autores, Pires et
al. (2017, p. 48) salientam que “[...] a partir da denição do currículo, das
bases teóricas, do perl do egresso e dos objetivos do curso é que se con-
gura a identidade do professor estabelecida em cada proposta”.
É, então, nesse campo de tensões, conitos e interesses que o sujei-
to discente se encontra diante do currículo, o qual estruturará suas futuras
intervenções no espaço escolar. Por consequência, o currículo planeja uma
postura/forma diante do fazer docente, reforça um determinado modo de
atuação, e, com isso, nutre e cria uma identidade docente. Desse modo, o
currículo funciona como pano de fundo estruturador para organizar, propor
e intentar um determinado fazer político-pedagógico do professor, no qual
esse fazer/prática constitui a criação de um território identitário do docen-
te, já que os discursos e práticas traçam as posições político-pedagógicas
do sujeito. Partindo dessa ideia de currículo, inclinamo-nos a pensar como
essa relação currículo/sujeito armada pelos autores pode contribuir para
formação do futuro docente. Como a dinâmica entre discente e o currículo
pode ser entendida para além de um olhar binário, currículo afetador/sujei-
to afetado?
Por essa razão, para guiar uma análise desse tema com o conceito de
subjetividade, trazemos Neira e Vieira (2016, p. 784) quando armam que
os currículos “[...] agregam conceitos e conhecimentos sobre como deve
ser a prática pedagógica, a relação com os alunos, seleção de conteúdos
e instrumentos de avaliação”. Armando a noção do currículo como uma
estrutura provocadora e com objetivos geracionais, Pires et al. (2017) sa-
lientam que é por meio do currículo e suas bases teóricas que os objetivos
do curso são alcançados, bem como a produção da identidade do professor.
Nesses fragmentos podemos estabelecer que os autores fazem a
apreciação dos efeitos referentes aos sistemas e procedimentos intenciona-
dos pelo estatuto curricular do curso. O currículo, a partir de sua estrutura
oferece um arcabouço semiótico que direciona princípios que englobam o
213Vol I - Subjetividades & Diferenças
fazer/ser docente, que por consequência, auxilia a compor uma subjetivi-
dade de educador. Diante desse ponto, é importante sublinhar que há um
movimento intencional de provocar afetações no discente. Contudo, temos
que nos atentar como esse diálogo entre o sujeito e o currículo se estabe-
lece.
Para ajudarmos a pensar sobre tal questão, Guattari e Rolnik (1996)
questionam o modelo do sujeito meramente receptor. Guattari e Rolnik
(1996, p. 35) armam que
[...] o sujeito, tradicionalmente, foi concebido como
essência última da individuação, como pura apreensão pré-
reexiva, vazia, do mundo, como foco da sensibilidade, da
expressividade, unicador dos estados de consciência.
Esse tipo de decifração do sujeito-razão criticado por Guattari e
Rolnik, dado como sujeito fora do mundo e receptor de estímulos externos
de perl neutro, se espalhou e inltrou nos modelos de pensar o sujeito
nos campos das ciências sociais e humanas. Desse modo, a EF, ao utili-
zar o formato empregado pela losoa da consciência/mente para pensar/
compreender a formação do sujeito docente, também sustenta esse olhar do
sujeito-razão. Colaborando com essa crítica ao sujeito receptor, Soares e
Miranda (2008, p. 411) pontuam que “[...] um sujeito a um só tempo pen-
sante e autobiografável, que conhece o mundo, é um objeto dado a priori
que espera ser desvelado em sua intimidade pelo primeiro”.
Assim, para Guattari (1992), a dinâmica estabelecida na formação
do sujeito não será em uxos de vetores verticalizados, dentro/fora, de
caráter emissor-receptor, mas sim em uma relação de diálogos múltiplos e
heterogêneos. As estruturas simbólicas que compõem o estatuto curricular
e que provocam perturbações não serão tomadas por um desenho limpo
em um vínculo direto de absorção, mas sofrerão em seus modos, captações
diversicadas e plurais, em que os indivíduos também são produtores e
agenciadores de si.
O sujeito, portanto, responsável de si e do seu fazer, e como pro-
ssional do social, deve estar ciente que suas intervenções produzem e
engendram processos de subjetivações que respondem a uma direção/pos-
tura de caráter político. Por essa razão, para Guattari e Rolnik (1996) todo
o sujeito que ocupa uma posição de trabalho no campo social se encontra
em um dilema, ou vão se pautar por via de reprodução de modelos que
214 Corpo, políticas e territorialidades
inviabiliza os processos de singularização ou, ao contrário, vão trabalhar
para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades
e dos agendamentos que consigam pôr para funcionar. E para tal condição
de processualidade do sujeito e o fator de gestação de si, Guattari (1992, p.
21) arma “[...] que cada indivíduo, cada grupo social veicula seu próprio
sistema de modelização da subjetividade, quer dizer, certa cartograa feita
de demarcações cognitivas, mas também místicas, rituais, sintomatológi-
cas [...]”.
Esses argumentos de Guattari e de seus intercessores nos proporcio-
nam pensar uma análise que estabelece a dinâmica processual que compõe
o sujeito. Esta, dada por meios múltiplos, amplos, não possuindo domínio
de substratos individuados ou coletivos, pois “[...] é neste mundo ‘híbrido’
de ‘quase-sujeitos’ e ‘quase-objetos’ (LATOUR, 1994), nesse ‘entre’, que
as coisas se engancham, se acoplam e agenciam elementos vários” (SOA-
RES; MIRANDA, 2009, p. 417).
Visto desse modo, notamos que o currículo provoca certa subjeti-
vidade, promovendo com seus arranjos normativos-prescritivos uma mul-
tiplicidade semiótica que engendra processos de subjetivação de um fazer
docente. E aqui, novamente, não desejamos negar os desdobramentos e
a importância que o currículo como prescrição possui no que se refere a
produzir docência, mas sim almejamos fomentar um debate pelo qual pos-
samos ampliar as discussões de como os conjuntos normativos-prescritivos
expressos no currículo são capazes de efetuar regimes de subjetivação e
entender quais subjetividades apostamos efetuar em nosso fazer docente.
Situado e engendrado pela máquina de enunciação coletiva escolar,
é necessário pensarmos maneiras e arranjos que permitam ao sujeito do-
cente produzir práticas educacionais para além das prescritas e propositi-
vas, ancoradas nos aparatos semiológicos compostos pelos corpos norma-
tizadores que sustentam uma ideia de ser/fazer docente. Portanto, apoiados
em Rolnik (1995, p. 9), apontamos que é “[...] necessário deslocar-se do
ponto de vista de um sujeito, mesmo que descentrado, escravo de sua gu-
ra, para o ponto de vista da processualidade do ser”.
Desse modo, quando trazemos a questão da formação docente e das
perspectivas que apostamos no fazer/ser docente, ela se compõe e dialoga
com a noção de currículos nômades. Tal noção arma que o “curricular”
reside no reconhecimento de que os sujeitos produzem “mundos” quando
trabalham, ou seja, é,
215Vol I - Subjetividades & Diferenças
A capacidade que os professores e alunos possuem de
reinventar a escola a cada dia. A potencialidade de produzir
currículos nômades por meio de suas vibrações, sensações,
emoções, artistagens, contorcionismos, equilibrismos e
invencionices (HOLZMEISTER et al., 2016, p. 420).
É nesse sentido que pleiteamos as intervenções docentes via pro-
cessos de emergência e aberturas para a efetivação das potencialidades,
na perspectiva dos encontros e seus processos afectantes capazes “[...] de
produzir uma composição entre corpos aprendentes, a partir dos quais ou-
tras linhas vão sendo tecidas, expandidas ou bloqueadas, criando outras
bifurcações [...]” (HOLZMEISTER et al., 2016, p. 424). Compreendemos
como esses encontros, e a partir deles, os processos de aprendizagem emer-
gem, se inventam e reinventam, em constantes aberturas para novos e ou-
tros modos de aprender e inventar o mundo, em permanente estado de fazer
e refazer cartograas docentes.
Ou seja, trata-se de propor uma aprendizagem e suas relações dire-
cionadas para as aberturas das potencialidades de emergir e produzir sabe-
res, pautada por uma política de invenção cognitiva, na qual “[...] a aprendi-
zagem inclui a experiência de problematização e a invenção de problemas.
A aprendizagem não se submete a seus resultados, mas faz bifurcar a cog-
nição, mantendo acessível seu funcionamento divergente” (KASTRUP,
2005, p. 1282). Assim, para ajudarmos a pensar uma formação docente em
EFE para além de modelos universalizantes de mundo, Kastrup (2005) nos
mostra que no que se refere à formação, se faz necessário encontrarmos
meios de nos afastar do professor que somente transmite saberes. Por outro
lado, é necessário apostarmos nas trajetórias docentes que se fazem nas
desaprendizagens e aprendizagens permanentes, por meio das quais seja
possível armar e produzir políticas cognitivas da invenção.
Considerações nais
Neste capítulo mostramos que os autores dos artigos selecionados
como fonte da pesquisa que discutem a identidade docente pontuam que
a construção de identidade se intensica quando o sujeito começa a sua
formação inicial no curso superior em Licenciatura em EF, principalmente
quando se familiariza com a prática docente via PIBID ou ECS, momentos
216 Corpo, políticas e territorialidades
em que iniciará seus primeiros contatos com o “mundo” da docência.
Outro fator que auxilia nessa formação identitária durante a forma-
ção inicial é o currículo do curso, o qual provoca no sujeito certos modos
de ser/fazer docente parametrizado por via de uma pluralidade semiótica
que estrutura os currículos. Nesse conjunto de passagem temporal, a ex-
plicação organizada para a formação da identidade é a de que esse sujeito
deverá internalizar esses conjuntos de códigos, condutas, práticas particu-
lares remetidas à função docente.
Para pensar tal formação identitária, os autores dos artigos recor-
reram à premissa dualizante na relação sujeito/escola/identidade, em um
modelo de captura e obtenção de identidade pautada na recognição (KAS-
TRUP, 2005). Tal organização explicativa é amparada por arranjos no qual
o sujeito docente irá capturar com seu aparato sensório-cognitivo a profu-
são de códigos/condutas, normas, maneiras de ser docente encontradas no
espaço escolar.
Particular modelo foi notado ser redutor dos processos de forma-
ção e aprendizagem, pois imputa ao sujeito docente a responsabilidade de
internalizar essa identidade como uma espécie de “selo de garantia” para
o sucesso futuro como docente de EFE. E além desse problema, notamos
que a formação da identidade pautada por uma simples absorção de modos
de ser docentes xados no cotidiano escolar abre pouco ou nenhuma alter-
nativa para a inventividade ou possibilidades das que já foram postas de
maneira anterior no espaço escolar, cercando e encurtando o raio de ação
das intervenções pedagógicas.
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220 Corpo, políticas e territorialidades
Amanda Marques
CCorpos em aliança:
Uma análise do coletivo drag queen
sisters of perpetual indulgence
e ocupações de territórios
221
Os movimentos sociais no mundo começaram a tomar forma prin-
cipalmente com reivindicações sobre a liberdade, corpos, sexualidades e
gêneros; as pessoas clamavam liberdade para assumirem a identidade que
quisessem. Desta forma, apesar de ter sua origem contestada, o termo drag
queen já existia desde 1870, mas somente no século 19 o termo foi associa-
do a homens que se vestiam de mulher para ns teatrais. Mesmo que com
ns teatrais, os homens naquela época não podiam performar a arte drag
fora dos palcos, pois era considerada sodomia e poderiam ser presos.
Mais tarde, no século 19, em Londres, surgiram os primeiros casos
de homens que saíam nas ruas vestidos de mulher. Frederick Park e Ernest
Boulton foram os primeiros aderindo os nomes Fanny e Stella e, por con-
sequência, a polícia abriu um inquérito investigativo na tentativa de barrar
este tipo de comportamento que era visto como um crime extremo. Esta
prática foi ganhando cada vez mais espaço; mesmo que não fosse proibido,
o cross-dressing ainda era visto como um comportamento inaceitável e
criminoso.
Com o tempo, quando foi associada diretamente às práticas teatrais,
foi ligada à comédia e tornando-se mais normalizada. Além de tudo, é im-
portante ressaltar que a sexualidade não estava ligada aos homens vesti-
rem-se de mulher; esta era considerada uma brincadeira popular.
Em 1920, a arte começa a alinhar-se à comunidade LGBTQ, prin-
cipalmente, por causa dos drag balls no Harlem em Nova Iorque. Este
lugar era o momento de segurança e liberdade para todos; os homens iam
vestidos de mulher, havia diversos shows drag, dança, lipsync e concurso
de modelo. Os drag balls não eram somente dedicados à arte drag, mas
também lésbicas, gays, heterossexuais e mulheres eram bem-vindas. Os
escritores Charles Henri Ford e Parker Tyler são alguns dos exemplos de
pessoas que frequentavam estes espaços e depois compartilharam suas ex-
periências no livro “The Young and the Evil” (2005), no qual detalham tudo
o que viveram.
Mesmo que alguns balls fossem integrados entre si, os juízes sem-
pre eram brancos e as drags negras eram sempre injustiçadas. O historiador
George Chauncey aponta que estes bailes foram de grande importância na
61 - O autor traça a história da cena gay na cidade de Nova Iorque em um universo masculinista durante os anos 1890-
1940 em seu livro: “Gay New York: Gender, Urban Culture, and the Making of the Gay Male World, 1890-1940”, publi-
cado em 1995 pela editora Basic Books (AZ) e reimpresso em 2019.
61
222 Corpo, políticas e territorialidades
época para visibilidade, manutenção e criação da comunidade LGBTQ.
Além disso, arma que o Harlem aumentou a solidariedade em relação à
comunidade gay e assinala a contínua centralidade da inversão de gênero
na cultura gay. Mesmo com as perseguições e prisões na época, o Harlem
tornou-se uma meca homossexual, os políticos e a polícia não tinham mais
“controle” sobre a situação, não havia nada que eles podiam fazer para
tentar conter a cena dos bailes drag; era algo que já estava consolidado
no condado do Harlem. Com isso, ao invés de abandonar a cena, os par-
ticipantes do baile usaram este cenário como oportunidade de mudança.
Desde o começo dos bailes, a força e a persistência dos patrocinadores
diante da diversidade da cena dos bailes drags se tornou imparável. E foi
este espírito de luta que permitiu que os bailes prosperassem, e este mesmo
espírito permanece até hoje na comunidade LGBTQIAP+.
Como fenômeno de contracultura, a persistência em continuar e vi-
sibilizar os movimentos se tornou cada vez mais importante. Conforme a
comunidade LGBTQIAP+ foi se expandindo, as resistências também se
expandiram. Em 1968, a voz de Marsha P. Johnson, mulher trans, eclodiu.
Diante de mais uma batida feita no Stonewall Inn, no Greenwich Village
em Nova Iorque, em 28 de junho, o que poderia ser mais uma vez um ato
de abuso policial se tornou um dos maiores movimentos de resistência da
época.
A polícia invadiu o local, acendeu as luzes e desligou o som. O que
era comum nestas batidas era que as pessoas que estavam presente no local
se alinhassem para que a polícia pudesse checar os documentos, mas todos
se negaram, criando um grande tumulto do lado de fora do bar, atraindo os
espectadores que estavam do lado de fora. A confusão começou aumentar,
garrafas foram atiradas contra a polícia, eles começaram a atirar contra os
manifestantes presentes, o camburão da polícia chegou; pouco depois, o
bar começou a pegar fogo, os bombeiros chegaram; a multidão começou a
cantar e fazer danças e, enquanto alguns eram presos, os outros resistiram.
Durante mais ou menos cinco dias a mobilização se tornou cada vez maior.
Tão grande que se assemelha ao Movimento Negro pelos direitos civis e a
Revolução Feminista dos anos 1960. Stonewall cou marcado como palco
de revolução e resistência e, assim, o dia 28 de junho de 1971 foi marcado
pelas primeiras marchas do orgulho gay nos Estados Unidos.
Em contrapartida, o Brasil, um dos primeiros países a descrimina-
lizar a homossexualidade, é, entretanto, um dos países que mais mata pes-
223Vol I - Subjetividades & Diferenças
soas LGBTQIAP+ no mundo. Durante o tempo do Império, em 1830, a
homossexualidade era reconhecida e não vista mais como um crime, o
que nos leva a crer que existe uma discrepância entre o avanço do reco-
nhecimento de pessoas LBGTQIAP+ e o crescente número de assassinatos
contra as mesmas pessoas. A parada LGBTQ em São Paulo começou a
acontecer em 1997, mas logo se transformou em uma das maiores atrações
do mundo, e reúne um dos maiores públicos. E é justamente por causa dos
eventos de junho no Stonewall que praticamente todos os eventos ligados
ao orgulho LGBTQIAP+ acontecem nesta época.
Dito isso, pode-se perceber que este evento mudou radicalmente a
história das pessoas lésbicas e gays na época; o que era somente para ser
violência e exclusão somente se tornou orgulho e luta. Marsha P. Johnson
após tudo que aconteceu na revolta de Stonewall começou a perceber o
quão importante e necessário era dar visibilidade a causa trans também.
Mesmo que não se identicasse com o gênero feminino, se vestia e perfor-
mava o “ser mulher”. Por trabalhar nas ruas, Johnson conhecia a força po-
licial e os abusos das autoridades; portanto, começou a advogar em favor
de seus companheiros trans para impedir prisões de inocentes.
Dado o contexto histórico-cultural, precisamos lembrar que a arte
drag queen continuou sendo um tabu, mas com o tempo foi ganhando es-
paço, que guras como Johnson seguiram dando voz a todas essas mino-
rias e abrindo o espaço que elas mereciam por direito. Desta forma, obser-
va-se que, por mais que a homossexualidade crescia como uma ameaça na
sociedade, as drags permaneciam como entretenimento. A arte drag queen
aponta para manifestações artísticas culturais que buscam romper as cate-
gorias binárias do sujeito, armando assim que o indivíduo pode performar
outras identidades além de sua identidade biológica e sexual.
A relação da drag está diretamente ligada ao território dramático
artístico que emerge justamente pelo corpo; a teatralidade está presente
desde sempre, já que a ocupação dos palcos sempre foi algo essencial. Em
suma, este artigo pretende analisar a forma que o coletivo Drag Queen
Sisters of Perpetual Indulgence” caminham pela cena teatral e conduzem
um pensamento artístico de forma a despolarizar os territórios aos quais
transitam. Desta forma, a partir da análise historicocultural, pode-se ob-
servar que as questões de gênero, de certa forma, abriram visibilidade para
corpos vulneráveis que resistem de forma artística, já que, infelizmente, a
arte drag não é estudada amplamente e muito se especula sobre o seu sur-
224 Corpo, políticas e territorialidades
gimento, nomenclatura e historiograa.
No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos a arte drag queen tem
ganhado espaço cada vez maior; este tipo de performance artística con-
quistou casas noturnas, peças de teatro, manifestações carnavalescas e até
mesmo programa de televisão como Drag me as a Queen”, apresentado
por três drag queens brasileiras: Rita Von Hunty, Penélope Jean e Ikaro
Kadoshi, tendo por objetivo transformar mulheres cisgênero em drags, de
forma a incentivar a enxergar a própria aparência e identidade e libertar a
queen” que há dentro delas.
Como abordado anteriormente, com o avanço e visibilidade da cau-
sa LGBTQIAP+, a possibilidade de comunicação nos espaços também
cresceu, e com isso a abertura para entendimentos sobre as identidades. E
é importante rearmar que a drag queen não está ligada à identidade se-
xual, mesmo que, para algumas pensadoras como Judith Butler e Guacira
Lopes Louro, elas possam enquadrar-se na Teoria Queer. Em vista disso, o
gênero seria a fabricação do que é verdadeiro em cima da instituição fan-
tasiosa do que se inscreve nas superfícies dos corpos; não é que exista um
verdadeiro ou um falso, mas sim, efeitos produzidos em cima de verdades
discursivas e identidades primárias (BUTLER, 1990, p. 136).
Então, pode-se armar que o gênero é uma grande encenação. Se
pensarmos no que a autora fala sobre performatividade, como o conjunto
de repetições de atos que enfatizam e determinam discursos corpóreos, a
m de subverter a categoria compulsória de gênero, entenderemos que a
drag é aquela que imita todas as identidades de gênero (SALIH, 2017, p.
93). Dito isso, o gênero caminha para uma sequência de atos, um estilo que
o corpo adota e, a partir deste reconhecimento, a performance está ligada à
probabilidade radical, que por sua vez é associada diretamente ao próprio
gênero o qual é imitado. Butler (1990) aponta que para existir a repetição
dos atos não se necessita de uma lógica pré-existencial para que uma pa-
ródia ou imitação seja feita, já que a própria categoria inicial já está sendo
parodiada desde o começo. Para Louro (2016), queer é tudo aquilo que é de
sexualidade desviante, que não se enquadra na norma, que foge da regra,
principalmente binária:
Queer é um jeito de pensar e de ser que não aspira
o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e
de ser que desaa as normas regulatórias da sociedade, que
225Vol I - Subjetividades & Diferenças
Nesta mesma direção, a autora ainda arma que a política queer
está diretamente ligada a um grupo de intelectuais dos anos 1990, que se
reuniram para debater e entender a diversidade do termo e assim dar base
e perspectiva teórica a ele, de forma a possibilitar a emergência do movi-
mento que ultrapasse somente a teoria. Portanto, o termo queer se localiza
na não normatização do indivíduo. O alvo imediato é a heteronormativi-
dade compulsória, além de ir à contramão da identidade homossexual que
acaba muitas vezes sendo denominada como queer. Porém, a identidade
queer representa outra diferença, que vai em direção de ser perturbadora
e transgressiva e que não quer ser tolerada ou assimilada a outro tipo de
identidade (LOURO, 2016, p. 39).
O Coletivo Sisters of Perpetual Indulgence
O grupo Sister of Perpetual Indulgence (SPI) ou Order of Perpetual
Indulgence (OPI) é uma instituição de caridade, protesto e de performance
artística que ocupam as ruas vestidas de drag combinadas com a imagem
religiosa, de forma que chamam atenção para as questões da intolerância
sexual e satirizam também o gênero e moral. Além de sua fundação ser
em São Francisco, o grupo também se espalhou por grande parte dos Esta-
dos Unidos e também, Canadá, Europa, Austrália e América do Sul, sendo
considerado um grupo de inuência internacional, que organiza eventos
de arrecadação de fundos em prol ao combate a AIDS ao redor do mundo.
A história do coletivo começa no bairro Castro em São Francisco, o
qual cou amplamente conhecido por ser um dos maiores locais que abri-
gava homens gays durante os anos 1960. Por conta disso, diversos homens
começaram a se mudar para o bairro por causa da mudança sociocultural.
Assim, diante de tantas mudanças que aconteceram, foi possível pela pri-
meira vez na história um homem assumidamente gay ser eleito para ocupar
um cargo público, Harvey Milk foi eleito como supervisor do Estado da
Califórnia. E foi neste mesmo bairro, em um domingo de Páscoa em 1979,
que o grupo de drag queens toma forma. O coletivo é composto por ho-
mens gays e tem por objetivo quebrar os padrões dos homens masculinos
226 Corpo, políticas e territorialidades
assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”,
do indecidível. Queer é um corpo estranho, que incomo-
da, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2016, p. 7-8).
viris do bairro que usavam longos bigodes e jaquetas de couro. Então, as
“irmãs” vestiam seus hábitos de freira de segunda mão e saíam deslando
pelas ruas do bairro e, ocasionalmente, oferecendo abraços.
Em 1982, o país era marcado pela epidemia de AIDS; os bares gays
e lésbicos, naquele ano, cavam cada vez mais vazios porque as pessoas
acreditavam na ideia de que aquele seria o lugar onde se contrairia facil-
mente AIDS e HIV. As irmãs, então, de olho na crise que as rondavam,
passaram a chamar atenção cada vez mais para estas questões, usando há-
bito ou não. Então, as irmãs Florence Nightmare e a irmã Roz Erection,
ambas enfermeiras licenciadas e ativistas contra AIDS, juntaram-se com
mais um grupo de irmãs e enfermeiras para criar o Play Fair!, materiais e
folhetos educativos com intuito de conscientizar as pessoas LGBTQIAP+
sobre educação sexual. Elas utilizavam linguagem coloquial e tom humo-
rado de forma a chamar atenção para um assunto extremamente sério, e a
mensagem tornou-se muito clara. Ao longo das décadas, o grupo partici-
pou de diversas campanhas, anúncios, marchas, distribuição de materiais e
preservativos para a população LGTQIAP+.
Em 1983, a irmã Florence Nightmare foi capa da revista Newsweek
se auto intitulando como “o menino do pôster da AIDS”. No ano seguin-
te, em 1984, a doença acabou matando a irmã, e mais algumas na mesma
época. As irmãs se reuniram e zeram o AIDS Candlelight Memorial, para
honrar todas as outras parceiras que morreram por conta da AIDS, que
se alastrou pela comunidade LGBTQ. As irmãs que faleceram recebem
o nome de “nuns of aboveque seriam, em tradução direta, “as irmãs de
cima”; os nomes delas foram expostos em uma grande colcha de retalhos
em frente da Casa dos Representantes dos Estados Unidos, em Washington
D.C. Estas foram as primeiras “colchas” a serem vistas pelo presidente Al
Gore e sua esposa Tipper Gore. Nela estavam bordados todos os nomes das
pessoas que haviam falecido em decorrência da AIDS.
Neste período, as irmãs encenaram um exorcismo da homofobia,
racismo e classicismo na escadaria que leva à Casa dos Representantes dos
Estados Unidos, juntamente com a Aliança contra a AIDS, para liberar o
poder. Até hoje, o coletivo tem como missão lutar pelos direitos humanos e
manter o legado de respeito e igualdade a todos. Hoje, elas estão espalha-
das pelo mundo, e seguem com o objetivo de manter a história queer viva,
por meio de um movimento transgressor e quase que ecumênico.
A irmã Roma, conhecida também como Michael Williams, armou
227Vol I - Subjetividades & Diferenças
em uma entrevista para a NBC que elas estavam cansadas dos homens que
se vestiam igual os homens das propagandas de cigarro Marlboro e jun-
taram-se como drags para romper com essa normatividade; elas gritavam
com as pessoas nas ruas e observavam suas reações, e conforme elas iam
andando, pararam na praia de Castro e viam que as reações das pessoas
eram diversas. Muitas pessoas cavam muito espantadas em ver homens
com barba, vestidos de freira; ali elas perceberam que existia algum tipo de
potência. E assim o nome “Sisters of Perpetual Indulgence” surgiu. E elas
acreditam que, 40 anos depois, as quatro freiras queer mudaram os rumos
do mundo. A cada dez anos, as irmãs se reúnem para discutir quais são as
pautas que as interessam naquele ano, e maneiras nas quais elas podem
protestar em torno disso.
Em 1989, as pessoas queer ainda estavam lutando por justiça e
igualdade social. Lançaram a campanha de “chega de violência”, direcio-
nada aos crimes homofóbicos que aconteciam em São Francisco naquele
ano. Neste período, elas estavam tentando ter reconhecimento como seres
humanos que fazem parte do mundo. Então, elas perceberam que a luta
contra a AIDS e HIV eram fundamentais, principalmente, porque o discur-
so da época era que essas doenças estavam matando as “pessoas certas”.
Foi neste mesmo ano que as Sisters of Perpetual Indulgence viraram uma
organização sem ns lucrativos.
Em seu aniversário de 20 anos, em um domingo de páscoa, elas fe-
charam a Rua Castro com uma grande celebração, o que gerou uma grande
euforia, mas também uma grande confusão, porque muitos ainda achavam
que elas eram religiosas de fato, e aquilo era uma celebração pensada nas
doutrinas da igreja, mas, com o apoio de muitos moradores e de políticos,
todos entenderam o intuito e tornou-se uma grande festa gay. Neste dia,
elas criaram uma competição chamada hunky jesus” que escolhia o “je-
sus” mais atraente da festa. Esta competição acontece até hoje. A oposição
não cou muito contente com a grande festa, e a sua publicidade negativa
atraiu mais público ainda, somando em torno de 20.000 - 30.000 mil pes-
soas num único evento. A irmã Roma arma que esta foi provavelmente
a maior celebração que elas tiveram na história do coletivo. Nesta época,
membros da Igreja Católica criticavam os métodos do coletivo, e neste
evento especíco, a Arquidiocese pediu que o evento não acontecesse na-
228 Corpo, políticas e territorialidades
62 - Disponível em: https://www.nbcnews.com/feature/nbc-out/drag-troupe-sisters-perpetual-indulgence-mark-40-years-
-dragtivism-n996701. Acesso em: 13 out 2021
62
quela data. E a publicação que saiu no jornal da Arquidiocese comparava as
Sisters com os eventos neonazistas, em relação ao feriado judeu do Pesach
. Após estas acusações, a Liga contra Difamação se posicionou dizendo
que as alegações feitas pela Arquidiocese eram infundadas e que banaliza-
vam os discursos de ódio de certos grupos. Outras publicações armavam
que estas eram ofensas gratuitas contra as irmãs, e outras não entendiam o
motivo pelo qual emitiram tal nota tão sem fundamento.
O foco da comemoração dos 30 anos foram as questões políticas em
relação à comunidade LGBTQ e casamento entre pessoas do mesmo sexo,
adoção, homens gays no serviço militar, etc. Então, mais uma vez, as irmãs
reuniram pequenos baldes e saíram em direção a coletar dinheiro para cha-
mar atenção a estas questões.
Em seu aniversário de 40 anos, em 2019, elas decidiram debater e
protestar pelos direitos dos imigrantes e pessoas transgêneras, bem como a
criminalização da homossexualidade em alguns países como Brunei, mas
dando visibilidade também para o país que elas vivem (EUA), lutando para
cada dia mais fazer com que fosse um bom lugar seguro de se viver. Este
foi o mesmo ano que se marcou o aniversário de 50 anos da revolta de
Stonewall em Nova Iorque e o começo do movimento do orgulho interna-
cional LGBTQ. O grupo classica este período como a época da “cultura
do orgulho”.
Em 2019, o prefeito Pete Buttigieg foi perseguido no Estado do Iowa
por religiosos anti-gays, quando ele admitiu ser homossexual. As pessoas
que protestavam contra ele armaram que ele foi contra seu batismo e
contra Deus quando declarou sua identidade sexual e sua posição sobre o
aborto. A irmã Roma arma que depois deste incidente, elas perceberam
que o drama religioso e sexual impactava fora da comunidade LGBTQ.
Desta forma, percebeu o quão deveria ser debatido o estilo performativo de
vida das pessoas fora da própria comunidade.
As irmãs sempre deram atenção às ondas conservadoras na cidade
de São Francisco. Uma de suas missões era promulgar a felicidade univer-
sal e expurgar a culpa estigmatizada. Dito isso, elas sempre performavam
exorcismos públicos; um deles aconteceu quando uma das irmãs se vestiu
63 - Festa de tradição judaica que também cou conhecida como “Festa de Libertação”, esta celebração seria a Páscoa
judaica, na qual eles comemoram a fuga do povo judeu que vivia como escravos do Egito. A palavra Pesach vem do
hebraico e signica: “passar além”. Disponível em: https://www.thejc.com/judaism/features/what-is-pesach-1.435631.
Acesso em: 28 out 2021
63
229Vol I - Subjetividades & Diferenças
imitando a líder anti-feminista, autora, conservadora e advogada Phyllis
Schlay durante a Convenção Democrata Nacional, em 1984, que ocupou
a Union Square em São Francisco, evento que debate e escolhe os futuros
líderes políticos para corrida presidencial. Uma das irmãs subiu ao palan-
que vestida de Schlay e outra falou com a multidão, enquanto as outras
irmãs tiravam cobras de borracha da roupa da imitadora da Schlay. Neste
mesmo evento, zeram uma imitação de Jerry Falwell, líder do Fórum pela
Família, o qual condenava a homossexualidade, pornograa e aborto. Uma
das irmãs, vestida de Falwell, foi tirando sua roupa, revelando um corsete e
meia-calça, e devagar foi revelando uma mulher embaixo da roupa do líder
conservador em frente a uma multidão de 2.000 mil pessoas.
Quanto mais ativo e combativo o coletivo cava, mais atenção elas
chamavam. Até o momento que a Igreja Católica se pronunciou contra elas
dizendo que sua manifestação era ofensiva aos membros da Igreja, prin-
cipalmente, as mulheres católicas frequentadoras assíduas. Membros da
Igreja também armaram que os hábitos que as Sisters usavam, a maneira
que falavam, a organização e seus nomes eram tudo uma grande afronta
contra a Igreja.
Em 1995, as irmãs organizaram uma espécie de passeata, certa
intervenção no domingo de páscoa para celebrar o aniversário delas. O
evento contou com paradas em 13 pub crawls, que parodiavam o caminho
percorrido por Jesus em Jerusalém, incluindo onde aconteceu sua cruci-
cação. Durante o evento, existiam atores que encenavam Maria Madalena e
a Virgem Maria, e elas continuavam durante todo evento a ensinar e enfati-
zar sobre a educação sexual e também distribuíam camisinhas; ao nal da
marcha, elas brindavam com pequenos copos de Jagermeister e pequenos
waes de baunilha, representando o vinho e a hóstia.
Ao longo dos anos, elas conseguiram arrecadar milhares de dólares
em prol da causa LGBTQ e ao combate da AIDS. Por exemplo, no even-
to de 1999 que celebrou os 20 anos do coletivo, foi arrecadado cerca de
13.000 mil dólares para grupos LGBTQ e centros de pesquisa em AIDS
por São Francisco.
Em 2008, elas lançaram um livro que se chama “Queer and Ca-
tholic”, em que elas contam que se vestem e como se vestem, não para
parodiar ou ofender as instituições católicas, mas sim para fazer alusão aos
cuidados que elas pretendiam ter diante da sua própria comunidade; além
de terem a intenção de honrar a memória e trabalho das freiras católicas
230 Corpo, políticas e territorialidades
romanas que cuidavam de seus vizinhos. O coletivo, ao longo destes anos,
utilizou da arte drag para levantar atenção não para gêneros e sexua-
lidades uídas, mas também para identidades em constante construção e
assuntos de saúde pública, que dizem respeito a todos.
Suas intervenções ocuparam espaços públicos e apontaram para mo-
dicações nas formas binárias de pensamento dos habitantes e governantes
em São Francisco. Desta forma, Verónica Gago (2020) explica que o corpo
é o território de batalhas, e quando se sente ameaçado, entra em conito
de forma a solucionar os problemas que o cercam. O corpo possibilita o
desacato, que viabiliza dentro das lutas, outros modos de vida, e a partir
desses saberes encontrar o seu “devir território” e assim, mesmo que inde-
terminado, o corpo-território é capaz de atingir uma ideia-força que surge
justamente de lutas apontando para potência de migrar, ressoar e compor a
outras lutas e batalhas que somam a outros corpos-território (p. 110).
A autora nos elucida que o corpo-território nos outra noção de
posse, fora da total individualidade; o corpo é como território extenso de
afetos, memórias e trajetórias que se nutre das lutas e produzem este corpo
neste território mencionado, ou seja, deslocar o indivíduo como sujeito
privilegiado sem tomar o eu como ponto de partida, signica observar a
questão de posse que pode ser mobilizada pelo conceito de despossessão
de Judith Butler e Athena Athanasiou (2017).
A potência do feminismo vai observar as diversas formas de possuir
o território, e não somente a carência de um. Para as autoras, a desposses-
são é o que designa a condição fundamental da racionalidade que marca
a emergência da condição humana. Elas ainda armam que, todos es-
tão despossuídos pelo encontro do outro em alguma instância, e sinaliza
a autossuciência de cada indivíduo, o que signica que o que interessa
às autoras é a relação entre a forma performativa dos corpos reunidos em
protesto e a força que eles assumem. Desta maneira, a despossessão não
é a privação por ela mesma, mas sim a exposição à alteridade, e então a
forma ccional fantasiosa do sujeito se dilui e constrói-se a racionalidade
e relação nos processos de subjetivação.
O conceito é explorado por outros autores como Edward Said em
The politics of dispossession” (1994), no qual ele observa a resistência
palestina e a documenta de forma a explorar a perda de território e a vio-
lência israelense. Butler e Athanasiou (2017) vão somar a essa discussão
ao observar as formas de agência crítica pelas quais se manifestam a partir
231Vol I - Subjetividades & Diferenças
da política performativa da qual emergem os corpos. As autoras não negam
que a despossessão, em um primeiro momento, está ligada ao sofrimento,
a total vulnerabilidade e a privação de direitos e formas de controle psíqui-
co. Logo após esta reexão, elas partem para uma segunda denição, que
marcará a relacionalidade humana e sua condição. E assim, o indivíduo
expõe suas próprias ruínas e adquire poder de apropriar-se do mundo que
o cerca, a partir do deslocamento do “eu” de maneira que promove o viver
em conjunto.
Outro ponto importante a ser destacado é se somos em alguma ins-
tância despossuídos do outro, o que signica abandonar de forma gra-
dativa a lógica individual neoliberal, nos tornamos cada vez mais abertos
a agenciamentos coletivos. E então, a lógica feminista do “meu corpo é
meu” deveria ser questionada, não no sentido de desmoralizar o movimen-
to feminista - nem as autoras fazem isto -, mas sim nos atentar a retórica
que subscreve este discurso.
O que torna esta investigação cada vez mais intrigante é como po-
demos romper a lógica individual de si mesmo, fundada no século XVII,
do qual somos todos donos dos nossos corpos e capacidades. Por isso,
torna-se cada vez mais essencial expandir a alteridade para o coletivo e se
despossuir de nós mesmos em certas instâncias. Neste caso, a despossessão
torna-se um conceito fundamental para manifestações públicas, ativismos
políticos e artísticos. Isto posto, a despossessão também caminha lado a
lado com a performatividade, de forma que o rompimento da lógica com-
pulsória binária acontece pelo gênero e sexualidade, que desaam a nor-
matividade de corpos regulados pelo gênero, raça e sexualidade.
Primeiramente, os corpos que são vistos como não passíveis de vida,
se deslocam da regulação normativa e armam seu direito à vida. Ainda
assim, corpos em agenciamento e assembleia pública podem não articular
um conjunto preciso de mudanças, mas, podem performar demandas pelo
m da precariedade da vida e condições insuportáveis de vida. Ou seja, o
ponto que devemos nos atentar, de acordo com as autoras, é a condição de
desigualdade estrutural e as formas que apontam para possíveis mudanças.
Butler (2016) aponta que, somente pelas manifestações feministas e
de gênero, a partir da performatividade, estas mudanças podem acontecer.
A performatividade pode rearmar as formas iniciais reguladoras de polí-
ticas e reconhecimento das formas institucionalizadas de vida, mas apon-
tam também para a mudança do pensamento que ultrapasse estas formas
232 Corpo, políticas e territorialidades
Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos
gerais, são performativos, no sentido de que a essência
ou identidade que por outro lado pretendem expressar
são fabricações manufaturadas e sustentadas por signos
corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo
gênero ser marcado pelo performativo sugere que ele não
tem status ontológico separado (BUTLER, 2016, p. 194).
reguladoras, de maneira a subverter a lógica binária compulsória. Então, a
repetição da performatividade de gênero seria uma das formas para rom-
per com a norma. Para Butler (2016), a performatividade constitui-se pela
constituição do gênero em atos; representações e gestos que se constituem
de maneira ordinária. Os atos, gestos e desejos são produzidos na super-
fície do corpo, e seu efeito é de substância interna, mesmo que algumas
ausências sejam signicantes, elas sugerem, sem revelar que a identidade é
o princípio organizador e, portanto, a causa.
E assim, a noção de gênero deve ter uma ação performativa repetida,
como se fosse um ritual. Esta repetição é uma reencenação e experiência
de um conjunto de signicados que foram estabelecidos previamente como
uma forma ritualizada de legitimação pelo caráter social. Desta forma, os
corpos individuais encenam estas ações, e estiliza seus signicados por
meio do gênero, o que torna cada vez mais esta ação pública. Ações que
possuem dimensões coletivas e também temporais são atos consolidadores
e fundadores do indivíduo (BUTLER, 2016, p. 200). E assim, a autora ar-
ma que o gênero não pode ser considerado como uma identidade xa ou até
mesmo um locus de ação que decorre de vários atos. Ao contrário disso, o
gênero é uma identidade construída ao longo dos anos, que é instituído de
maneira externa por uma sequência estilizada e repetida de atos.
O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e
deve ser entendido, consequentemente, como a forma
corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos
corporais dew vários tipos constituem a ilusão de um eu
permanente marcado pelo gênero (BUTLER, 2016, p. 200).
Ou seja, a autora arma que o gênero desloca-se da concepção car-
tesiana de um modelo moldado e substancial de identidade e desloca-se
para outro lugar que requer uma “temporalidade social constituída” (idem),
que ao longo do tempo corporica-se ao longo de repetições e assim mar-
233Vol I - Subjetividades & Diferenças
ca-se o gênero. Então, parte-se do ponto de que a singularidade do gênero
acontece a partir de atos performativos, e assim, constitui-se a identidade
que se pretende revelar. Desta forma, o gênero é constituído mediante per-
formances, atos performativos que evidenciam e produzem sua cultura,
portanto, não identidade preexistente que não seja constituída nestes
atos que são impossíveis de serem medidos, não existem atos verdadeiros
ou falsos, mas, mediante a estas performances pode-se dizer que a própria
noção de sexo essencial, seja masculino ou feminino, também são consti-
tuídas, o que faz parte das estratégias de ocultação do caráter performativo
e suas possibilidades, bem como o caráter performativo do gênero que pro-
liferam em direção às congurações genericadas, fora da estrutura restri-
tiva de dominação masculinista, binária e também de heterossexualidade
compulsória (ibidem).
É importante ressaltar a presença desses atos performativos na es-
fera pública, pois quando estes atos unicam-se, o indivíduo deixa de lado
sua própria individualidade e assume a posição coletiva para agir em con-
junto com outros corpos, que têm as mesmas reivindicações, de forma que
a mudança seja coletiva.
Precisamos pensar na ação plural, ou seja: [...] uma pluralidade de
corpos que representam os seus propósitos convergentes e divergentes de
formas que não obedecem a um único tipo de ação ou se reduzem a um úni-
co tipo de armação” (BUTLER, 2018, p. 174). A questão que se instaura
é como a política muda quando a ideia dos direitos que é reivindicada pelo
indivíduo dá lugar a uma ação da assembleia corporicada que representa
o conjunto de reivindicações, principalmente pela linguagem.
Claro que não existe ação que seja feita em totalidade com o con-
ceito de “povo”, Butler (2018) elucida isso ao armar que nenhuma ação é
feita pelo povo como um todo, mesmo que todas as ações a assembleia se
auto denomina “somos o povo”. Desta forma, não se pode dizer que uma
parte da assembleia representa o todo, mas sim os esforços para construção
de um levante de mobilização o qual gera articulações e negociações a
partir da reunião de corpos no espaço público. Isto posto, o território-corpo
torna-se o lugar onde a ação acontece, quando se unem em assembleia,
mesmo que uma parte do povo, ali rma-se uma aliança que aponta para
formas de subverter a lógica patriarcal. Neste caso, a comunidade drag
queen vem transformando espaços públicos com seus corpos queer.
Ações como do coletivo Sisters of Perpetual Indulgence traz à tona
234 Corpo, políticas e territorialidades
a potência de corpos que não estão inseridos na lógica binária e subvertem
essas lógicas apontando para novas formas de olhar o corpo, principalmen-
te o corpo queer. A teoria queer, além dos estudos que Judith Butler fez
sobre gênero e sexualidade, que foram citados aqui anteriormente, a auto-
ra foi fortemente inuenciada por Michel Foucault (1976) que iniciou os
estudos sobre os impulsos sexuais, liberdade de gênero e opressão sexual,
exercidos nas civilizações avançadas. Desta forma, a teoria queer surge a
partir de uma aliança de teorias feministas, psicanalíticas e pós-estrutura-
listas, que faziam investigações sobre a categoria datada do sujeito; assim
a consequente desestabilização das categorias binárias de gênero. E então,
para possibilitar o agenciamento dos corpos, tendo em mente a identidade
intrinsecamente política, a subversão acontece desde o interior do discurso
preexistente, já que é isso tudo que existe (BUTLER, 2003).
A subversão apontada pela autora mostra que todo gênero é paródi-
co, mas a paródia por ela mesma não é subversiva (SALIH, apud BUTLER;
ATHANASIOU, 2017, p. 95). Portanto, o que seria então, essa desestabili-
zação que a autora pontua ao longo de sua obra até hoje, se não uma série
de agenciamentos coletivos que culminam em ações como a das Sisters of
Perpetual Indulgence?
Ações como as do coletivo citado, não reforçam as bases hetero-
normativas de gênero, mas sim a repetição de uma fórmula original que
também já é parodiada em uma primeira instância. Seria legítimo dizer que
o gênero, em geral, é uma forma de paródia, mas que algumas performan-
ces de gênero são mais paródicas do que outras. Na verdade, ao destacar a
disjunção entre o corpo do performer e o gênero que está sendo encenado
[performed], algumas performances paródicas tais como o drag, revelam
efetivamente a natureza imitativa de todas as identidades de gênero; “[...]
ao imitar o gênero, o drag revela, implicitamente, a estrutura imitativa do
próprio gênero - bem como a sua contingência” (SALIH, apud BUTLER;
ATHANASIOU, 2017, p. 93). Em virtude disso, quando as bases são ques-
tionadas, as ações tornam-se subversivas, justamente no momento no qual
os corpos em assembleia reúnem-se com o objetivo de subverter a ordem
binária.
Assim, o coletivo Sisters of Perpetual Indulgence seria essa “par-
cela do povo”, que utiliza do espaço público como fonte primordial de
discussão. Quando se ocupa o território, as bases de pensamento mudam,
de forma que os corpos se tornam visíveis em um espaço que tentamos ani-
235Vol I - Subjetividades & Diferenças
quilar todo tempo. Então, “[...] o corpo-território é uma imagem-conceito,
surgida a partir de lutas” (GAGO, 2020, p. 109), é o campo de batalha que
se forma quando o corpo se sente agredido, e se refaz diante destes enfren-
tamentos ao mesmo tempo em que tece alianças que culminam em ações
coletivas.
A reivindicação corporicada leva o sujeito a criar coligações que
são necessárias para ocupação do espaço público. Claro que este espaço
não é somente as praças, ruas e centros das cidades, mas também o domí-
nio virtual torna-se importante quando os indivíduos unem-se, pois exis-
te solidariedade nos atos. O que signica que hoje, celulares e redes de
comunicação expõem brutalidade policial e documentam instituições que
mantêm estes corpos vulneráveis cada vez mais passíveis de uma vida que
não deve ser vivida. É como um ciclo de corpos-territórios que se apoiam
para valer o direito de que toda vida é passível de ser vivida, mesmo que
algumas instâncias governamentais as façam acreditar no contrário.
Por conseguinte, a composição do som falado na esfera pública de-
nomina uma autoconstituição como condição de aparecimento; ou seja, a
assembleia é uma grande amálgama de interações de performance, sons,
imagens e diversas tecnologias que denem quem é este o povo e ajudam
em sua autoconstituição (BUTLER, 2018, p. 26). Esta condição de apa-
recimento é uma forma de lutar contra as formas precárias de vida, sendo
a performatividade como a forma primeira de subversão. Em vista disso,
quando corpos não binários que transgridem a norma reúnem-se em as-
sembleia, pode-se enxergar uma nova potência sendo rmada a partir de
atos performativos, que tem característica de enunciados linguísticos, que
no momento da ação enunciativa carregam consigo um fenômeno de exis-
tência, algo acontece a partir deste ato (BUTLER, 2018).
E então, se o objetivo é questionar as bases heteronormativas com-
pulsórias a partir da ocupação da esfera pública, o corpo dotado de seu
discurso, ina esta esfera com ações performativas que reorganizam, a par-
tir da linguagem enunciada, situações que acionam um conjunto de novos
efeitos. Com isso, uma das primeiras formas de questionar estas bases é a
negação do gênero que nos foi dado no momento do nascimento. A rejeição
dessa binariedade culmina com o momento que confronta-se com a norma
atribuída desde quando um indivíduo nasce.
Aqui parece que somente pela subversão da norma que se consegue
modicar a esfera pública, claro, como foi explicado anteriormente, este
236 Corpo, políticas e territorialidades
é um ponto de partida para ramicações extensas na esfera pública, mas,
neste caso especíco, precisamos nos atentar também a política de apareci-
mento que o coletivo emprega, neste caso, a indumentária drag que revela
um sinal de pertencimento e ação. A exposição do “existimos, resistimos”
faz deste coletivo uma parcela de “povo”, que atinge outras micro parcelas
de “povo” e assim gera reconhecimento, apontando cada vez mais para zo-
nas de fortalecimento de grupos dentro da esfera pública. E assim busca-se
[...] instalar em posições permanentes de poder para representar os des-
providos de poder(BUTLER, 2018, p. 158). Não é o mais forte falando
pelo mais fraco, mas sim o menos vulnerável utilizando de outras formas
psíquicas de poder para agenciar os mais vulneráveis, e assim gerar força
conjunta e fazer valer a categoria social do corpo.
Em suma, o coletivo drag queen Sisters of Perpetual Indulgence,
vestidas de freira, utilizam de seus corpos de duas formas: tanto para ques-
tionar as bases da heteronormatividade compulsória e assim, chamar aten-
ção para casos como a AIDS que atingia grande parte da população LGB-
TQIA+, tanto como forma de protesto e ocupação da esfera pública para
visibilizar corpos que estão vulneráveis.
É importante observar que a assembleia formada por um coletivo
drag queen teve grande relevância, tanto para a visibilidade do corpo queer,
quanto para as formas performativas de gênero, que culminaram com uma
série de lutas, assembleias e reivindicações para toda comunidade LGBT-
QIA+, principalmente, para a causa transexual. Ou seja, é a expansão cada
vez mais necessária do corpo-território, da imagem, que revela as batalhas
que estão acontecendo aqui agora; “[...] além de assinalar um campo de
forças e torná-lo sensível e legível a partir da conituosidade” (GAGO,
2020, p. 107). Então, se o corpo-território é o lugar onde as batalhas acon-
tecem, é por meio dele que os conitos de gênero são explorados; por isso,
a performatividade torna-se a forma primeira de expor estes conitos,
questionar as lógicas compulsórias e criar novos modelos de pensamento.
Também se precisa pontuar, brevemente, o que Foucault (2019)
aponta quando fala da moral que a Igreja emprega ao longo dos anos, que
prescrevia relações a partir dos status dos indivíduos, suas próprias apari-
ções e suas sexualidades normativas. Por esse motivo, também a vestimen-
ta empregada pelo coletivo torna-se um ponto essencial na construção per-
formativa da assembleia na esfera pública. Conectar todas estas questões:
a performatividade que contraria as bases de gênero, o corpo-território
237Vol I - Subjetividades & Diferenças
que transgride e busca novos agenciamentos e assim subverter a norma na
esfera pública, o questionamento das formas violentas que os corpos são
colocados pela estrutura estatal. O modo enraizado de violência faz com
que corpos feminizados não vejam o fenômeno violento que os cerca, mas
a diversidade dos corpos e a territorialidade que se forma, cria uma expan-
são e nutre a assembleia, a partir de uma linguagem comum (GAGO, 2020,
p. 74).
Não menos importante, a assembleia não será contida, o corpo-ter-
ritório assume uma composição de afetos e possibilidades que vem ao
longo do tempo despossuídas de uma lógica compulsória. Assim, “[...] a
assembleia já está falando antes mesmo de qualquer palavra ser pronun-
ciada(BUTLER, 2018, p. 173), os corpos estão falando, as pessoas
queer também tem falado, o território por sua vez só exprime a voz perfor-
mativa de pessoas que não podem mais ser vulnerabilizadas.
Referências
BUTLER, J. Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Identi-
ty. Nova Iorque: Routledge, 1990.
BUTLER, J. Problemas de Gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasi-
leira, 11ª ed, 2016.
BUTLER, J. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identi-
dade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
BUTLER, J. Corpos em Aliança e a Política das Ruas: Notas para
uma teoria performativa de Assembleia. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2018.
BUTLER, J.; ATHANASIOU, A. Dispossession: The Performative in
the Political. Cambridge: Polity Press, 2017.
FOUCAULT, M. A História da Sexualidade: O uso dos prazeres. 7. ed.
Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2019.
GAGO, V. A Potência Feminista ou o Desejo de Transformar Tudo.
São Paulo: Editora Elefante, 2020.
238 Corpo, políticas e territorialidades
LOURO, G. L. O Corpo Estranho: Ensaios sobre sexualidade e Teoria
Queer. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2016
SALIH, S. Judith Butler e a Teoria Queer. 1. ed. Belo Horizonte: Au-
têntica editora, 2017.
239Vol I - Subjetividades & Diferenças
Cláudia Madruga Cunha
Leomar Peruzzo
CCorpo-pesquisador:
Duas elaborações metodológicas
em arte educação
241
Proposta aqui como epígrafe, esta imagem marca a presença de
um corpo, que traz a representação, dele reunida ou desdobrada, da multi-
plicidade de sentidos que o habitam. Por isso corpo laminado, esfacelado,
corpo do sentido. A gura ousa explorar certa tonalidade que envolve os
corpos ativados por um processo de experimentação sensível em arte edu-
cação. Resulta de uma vivência de pesquisa que será descrita posterior-
mente. O vermelho intenso que se apresenta entre signos fragmentados,
corrompidos, dispersos sonoriza a textualidade dos conceitos que sugerem
possíveis devires, o tom aberto diz da capacidade da cor de corporicar e
capturar intensidades, múltiplos arranjos que se estabelecem quando se dá
atenção ao corpo-pesquisador, corpo dos professores de arte, do performer
professor, aquilo que ativa à docência e ao ensino da arte.
Corpo [pesquisador], performer professor [de arte] e o ensino de
arte formam, aqui, uma tríade ou um ponto de partida para se relatar duas
experiências de pesquisa, uma concluída e outra em andamento, que se de-
têm a buscar propostas conceituais e metodológicas que sejam insensíveis
à atuação do corpo do artista na construção de sua pesquisa, na constitui-
ção de sua docência e na composição de suas práticas de ensino enquanto
performer professor. Entendemos aqui que o corpo é ltro, registro e ex-
Imagem 1 - Por cor no corpo.
Fonte - Acervo dos autores, 2019.
64 - Essa fotograa é parte do acervo que agrupa dos achados de uma pesquisa de mestrado, realizada no ano de 2018, no
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau/FURB, intitulada: Mediação Cultural
no Museu: ressonâncias da experiência estética no corpo [em performance] de professores de arte.
64
242 Corpo, políticas e territorialidades
plorador de sensibilidades, é verbo e extra-verbo; é linguagem e afasia, é
visual e é capaz de se invisibilizar, tanto na construção de sua arte como na
criação de linguagens corpóreas e extracorpóreas, com as quais estabelece
os modos de realização de suas experimentações didáticas no ensino da
arte. Ao pinçarmos essa imagem retirada de processo do qual retomamos
provocações estéticas experimentadas, que produziram dados em per-
curso de formação docente, envolvido com as Artes Visuais.
Este artigo traz duas experiências de pesquisa em arte educação
que buscaram metodologias alternativas, para ns de construir processos
investigativos que considerassem a subjetividade e o corpo do professor
artista e pesquisador, como elementos que participam desse processo. O
corpo do professor de arte é instância sensível, corpo pesquisador, que
participa ativamente e atualiza constantemente seu modo de compreender,
sensibilizar, manifestar e ensinar em arte educação. As intencionalidades
de um corpo expressam sensibilidades, expõem sentidos que tatuam sua
pele, inscrevem nela a materialidade do extra sentido, forma e performance
capazes de expressar e criar linguagens. Sim, o corpo fala! E o que ele diz
não se quer ver codicado ou escrito e reunido, por meio de categorias e
registros analíticos.
A imagem acima resulta de um processo de pesquisa que quis pro-
vocar múltiplos sentidos, explorar a sobreposição de intensidades, criadas
a partir da mutação da captura de um corpo intenso em performance arte. O
movimento da imagem quer comunicar ao/à leitor/a à indeterminação com
a qual nos defrontamos, quando se pensa a relação corpo e pesquisa da e na
docência em performance arte.
Trazemos abaixo duas concepções metodológicas que não ignoram
a interferência do corpo do professor como produtor de arte e de sentido,
que opera transversalmente na forma de sua docência entendendo-o como
parte de uma subjetividade doadora de sentidos. São dois modos de fazer
pesquisa, a A/R/Tograa e a cartograa, que atuam permitindo que o corpo
do performer professor seja produto e produção de sentido nos movimen-
tos propostos como atos de pesquisa. E sendo o corpo em sua expressivi-
dade elemento que compõe a pesquisa, convocá-lo para atuar no processo
da investigação, convida simultaneamente a uma superação dos dualismos
das tradições metodológicas que vem desde Descartes e separam sujeito e
objeto, alma e corpo, espírito e matéria.
Nosso objetivo com tais metodologias é apontar caminhos para que
243Vol I - Subjetividades & Diferenças
a pesquisa em arte educação vá além da codicação dos gestos, da descri-
ção reducionista que se costuma fazer de muitos dos fenômenos vividos
em arte educação. São mutações que vão se apresentando de modo ex-
perimental tateando processos menos rígidos para falar da presença, dos
cenários, das linguagens entre os quais um corpo pesquisador fala, pensa
e se expressa, manifestando suas sensibilidades e inquietações. Trazemos
abaixo duas experiências investigativas que permitem em sua concepção
teórica e prático-metodológica a criação de modos de ação de pesquisa
criativa capazes de expressar e envolver o corpo do professor no processo
de criação da pesquisa em arte educação. Uma das experiências de pesqui-
sa, já concluída (cf. PERUZZO, 2018), fez uso da A/R/Tograa (CARVA-
LHO; IMIANOVSKY, 2017), colada à Pesquisa Educacional Baseada em
Arte / PEBA; e a outra, em andamento, vem se utilizando da cartograa
ou da pesquisa rizomática. Ambas as metodologias envolvem processos
de análises experimentais capazes de exibilizar modos investigativos que
não ignorem as manobras intuitivas e criativas de um corpo-pesquisador.
A Experiência com A A/R/Tograa
O procedimento de pesquisa intitulado A/R/Tograa compõe um
tipo de análise em Educação Baseada em Arte/PEBA, que no entender de
Carvalho e Imianovsky (2017), pode se apresentar como abordagem me-
todológica que permite a adoção de processos criativos e artísticos, pro-
vocações estéticas, para pesquisar e compreender as questões ligadas à
educação e arte. A A/R/Tograa surge da oportunidade de abordagem do
corpo do próprio pesquisador, uma vez que o corpo do pesquisador não é
esquecido, ignorado ou somatizado durante a vivência da pesquisa, visto
que esta metodologia compreende que investigar é uma prática viva (cf.
DIAS; IRWIN, 2013). Logo, através de compreensões, experiências e re-
presentações artísticas e textuais, o sujeito e a forma da investigação estão
em constante troca. As questões vividas pelo professor performer quando
experimenta práticas e poéticas artísticas, tornam-se nesses atos, modos de
aperfeiçoar e até mesmo criar novos formatos pedagógicos. O corpo, ativo
na experiência educativa, se faz componente extra-material, permeado de
sentido, acompanhado do que é de outras dimensões do fazer artístico, per-
meia a pesquisa educacional, dá retornos de sensibilização ou de bloco de
sensações e orienta a escrita que expressa o vivido (CARVALHO; IMIA-
244 Corpo, políticas e territorialidades
NOVSKY, 2017).
Podemos dizer que a A/R/Tograa é uma metáfora para estabelecer
o entrelaçamento dos planos de artista (artist), pesquisador (researcher),
professor (teacher) e “graa” de grasmo, visualidade ou modo de re-
presentar conhecimento em arte (CARVALHO; IMMIANOVSKY, 2017;
DIAS; IRWIN, 2013; HERNANDÉZ, 2013; OLIVEIRA, 2013). Trazemos
abaixo uma imagem que resulta da experiência que fez uso dessa metodo-
logia.
Imagem 2 - Por cor no corpo.
Fonte - Acervo dos autores, 2019.
A imagem apresenta, ainda que parcialmente, o território de expe-
rimentação no Museu de Arte de Blumenau. Traz além de um fragmento
de uma obra de uma artista local que foi exposta a oito professores de
arte pertencentes a rede municipal da cidade na qual se localiza o museu.
A imagem reproduz um momento sensível de conexão entre o corpo dos
professores e o corpo como objeto de arte, que é recortado e ressignicado
por Elke Hering . A obra desta artista foi elemento escolhido para sensibi-
lizar participantes de um estudo, que através de um conjunto de práticas
descritas abaixo, quis sensibilizar a relação do corpo do professor com o
ensino de arte.
65 - A obra possui título de Memória Arqueológica e foi criada em 1990. Elke Hering nasceu em 1940 na cidade de
Blumenau e, tendo oportunidade de conhecer e praticar arte, buscou formação no exterior para então consolidar uma
trajetória artística versátil, modernista, marcada pela experimentação de diversos materiais e técnicas. Seu falecimento
precoce, em 1994, deixou um extenso legado na escultura contemporânea e na pintura que dialoga com o movimento
modernista brasileiro.
65
245Vol I - Subjetividades & Diferenças
A imagem serve para mostrar um corpo que visualiza outro cor-
po, tendo por mediação o resultado de um processo artístico que elaborou
sensações, fragmentando e recortando o próprio corpo em obra de arte.
Traz uma obra de arte, em seu modo de presença, fazendo convívio com
os corpos e afetos dos professores que participaram de uma proposta de
formação experimental. A obra que aparece na imagem é uma composição
em gesso, presa em caixa retangular de metal, em que a artista fez uso de
diversas partes de seu corpo tornando objetos que marcam as presenças das
formas vistas.
O encontro com a arte de Hering (cf. PERUZZO, 2018), se realizou
como uma das atividades organizadas para ns de produção de dados em
uma pesquisa que fez uso da A/R/Tograa, para tratar de uma proposta de
atualização docente. A abordagem pressupôs a captura de novos sentidos
na produção de conhecimento em arte educação e se desenvolveu vincu-
lada a Pesquisa Educacional Baseada em Arte (PEBA). Próxima à pers-
pectiva de poesia visual, buscou provocar afetos sensíveis entre os corpos
(professores e pesquisadores) que vivenciam, criam e apreciam a obra de
arte para fazer desta o conteúdo que permeia sua didática.
Ambas, A/R/Tograa e a Pesquisa Educacional Baseada em Arte
(PEBA), adotam a arte como principal território para a produção de co-
nhecimento em arte educação. Por esse motivo, o envolvimento do corpo
do pesquisador com a criação artística marca presença nesse percurso de
investigação. As oscilações do sensível que atuam na esfera corporal do
professor e atravessam o que ele tem para ofertar como educação em arte,
em sua espontaneidade, denem os rumos sempre exíveis da geração de
dados, da discussão conceitual, que reunidas dão forma a dimensão criati-
va do ato pesquisar em/com a arte.
A experiência aqui retomada se fez em 2018, com o auxílio da Se-
cretaria Municipal de Educação de Blumenau. Por meio de um aplicativo
eletrônico, disponível na página da SMED/Blumenau, se selecionou oito
professores de Arte que atuavam nas escolas públicas da cidade e região.
O processo de seleção começou como um convite disponível em grupo de
trabalho administrado pela coordenação do componente curricular de Arte;
ou seja, a SMED facilitou a divulgação desta ação e os professores foram
convidados a discutir as ressonâncias entre a experiência estética e o corpo
do prossional que atua na educação com o componente arte. Tais rever-
berações implicavam em um processo de mediação cultural que se daria
246 Corpo, políticas e territorialidades
no museu local. Em resumo, a proposta teve como objetivo sensibilizar o
corpo desses professores, através de uma experiência estética organizada
em três momentos: i) o primeiro consistia em aproximá-los do Material
Educativo Elke Hering; ii) o segundo, em provocá-los a escrever cartas
para esses corpos visuais e; iii) o terceiro e último momento, em discutir
e descrever como essa obra que expõe partes do corpo da artista convoca
a uma performance que desdobra essa obra/corpo em outras criações per-
formáticas.
A ideia de fazer da arte Elke Hering um material educativo que en-
volve o corpo dos docentes no processo investigativo, surgiu da prática de
estágio em Artes Visuais no Ensino Médio, realizada durante a graduação
em Artes Visuais e tornou-se efetivamente projeto de pesquisa durante o
Mestrado em Educação (PERUZZO, 2018). Os professores foram instiga-
dos a estabelecer relações com o material e a selecionar uma das imagens
para realizar uma aproximação descritiva e ao mesmo sensível. Neste mo-
mento, as percepções dos docentes foram registradas em fotograa e em
escritas. As imagens geradas durante a ação compuseram o relatório da
pesquisa . Entre essas imagens, Peruzzo (2018) registrou o próprio corpo
por meio de fotograa e as guras geradas foram editadas para criar visu-
alidades que compõem a poesia visual do relatório. Nesse sentido, anali-
samos esta experiência de pesquisa como uma análise vinda de um corpo-
-pesquisador.
Foi uma experiência singular, na qual oito professores da rede muni-
cipal de educação participaram. Esse grupo era formado por sete mulheres
e um homem, cujas idades variavam entre 29 e 59 anos. Possuíam forma-
ção acadêmica diferenciada, compondo, quando reunidos, uma diversida-
de artística interessante. Um deles era graduando do curso de licenciatu-
ra em Artes Visuais, outras duas possuíam graduação em música e cinco
em Artes Visuais. Um dos docentes atuava como professor em projeto de
musicalização e outros sete professores atuavam na rede de educação de
Blumenau. O objetivo dessa ação de formação cultural foi o de provocar
deslocamentos sensíveis no corpo dos professores docentes, para que esses
corpos atuassem com as dimensões e sensações que, em contato com arte,
mobilizavam-se constantemente, embora muitas vezes passassem desper-
cebidas.
66 - Aqui, nesta iniciativa, apresentaremos algumas das imagens que compõem a pesquisa e parte dos registros das in-
tensidades encontradas.
66
247Vol I - Subjetividades & Diferenças
O começo, meio e m dessa atividade com os professores de arte
envolvia o corpo e os dados colhidos dessa experiência resultaram em
performances visuais e narrativas corporais. Os performers professores
desenvolveram as seguintes ações: tomaram conhecimento do Material
Educativo; descreveram a obra de arte visualizando uma imagem da obra;
escreverem uma carta para o seu corpo; apresentaram a mesma obra posta
em exposição; criaram performances com as cartas; expuseram e discuti-
ram o percurso.
Cada professor escreveu uma carta direcionada à concepção de
corpo que o perpassava e após a divisão do grupo em dois, se realizou
a socialização ou a partilha do conteúdo das cartas. Após o contato com
essas impressões sobre o corpo, ainda foram desaados a criar duas per-
formances em sequência. Toda essa produção performática foi registrada
em vídeo. Do início ao m do percurso, os professores eram convidados a
expressar impressões sobre a experiência do próprio corpo em contato com
outra arte corpo, a performance, e suas conexões vinham e retornavam ou
reverberavam em corpo-pesquisador, corpo que não se separa de certa do-
cência que estabelece com arte, sendo ao mesmo tempo artista, professor
e pesquisador.
Trazemos dois registros de fala vindos de duas das cinco parceiras
dessa experiência que movimentou a tríade antes exposta: o corpo-pesqui-
sador, o performer professor e a docência em arte. Uma das professoras
de arte disse: “[...] a gente teve uma vivência e a gente experimentou, nos
colocamos a fazer”; outra expressou “E essa parte de a gente olhar, de ter
olhar é... [pausa] para si mesmo, para o corpo porque até no nosso corpo
ali nós questionamos um pouquinho [...]” (PERUZZO, 2018). Estas ex-
pressões nos conduzem a pensar que a arte assumiu a perspectiva de poe-
sia visual, provocando afetos sensíveis em linhas de intensidade entre os
corpos (professores de arte) e a obra de arte. O contato com uma obra que
envolvia o corpo como instância de tensão permitiu sensibilidades e cone-
xões extracorporais que desencadearam matérias visuais e de pensamento,
permeadas de vibrações e percepções singulares.
Todo esse processo se realizou orientado pela A/R/Tograa e pela
e Pesquisa Educacional Baseada em Arte (PEBA) que, em seus modos de
compreender e incentivar outras formas de pesquisa em arte, pressupõe
uma abordagem conceitual que se relaciona com uma estética pedagógica
em arte tal que possibilite a exploração de efeitos de uma pesquisa viva,
248 Corpo, políticas e territorialidades
produtora de sentidos e criadora de novos conhecimentos em arte educa-
ção. No contato com a obra de arte, as conexões desencadearam experiên-
cias de pensamento, vibrações e percepções singulares, que se expressam
no corpo do pesquisador e reverberam com maior ou menor intensidade na
forma como esse organiza e dispõe de conteúdos e práticas que, vibráteis,
compõem sua arte educação.
Da A/R/Tograa à Cartograa –
Reverberações em um Corpo-Pesquisador
A experiência de pesquisa organizada em 2018 através da meto-
dologia da A/R/Tograa deixou abertas lacunas que buscam agora ser
preenchidas por novo processo de pesquisa, que ousa se aproximar das
análises deleuzianas-guattarianas para ns de sustentar novos modos de
apropriação do corpo do pesquisador e outras possibilidades de percurso
epistêmico e metodológico para criação de uma pesquisa em arte educa-
ção. Entendendo que esse corpo, envolve e movimenta intensidades artís-
ticas e participa dos procedimentos nos quais uma didática artística produz
reverberações, explora na investigação nuances éticas e estéticas e outros
modos de produção de sentidos. Esta segunda investigação em processo,
vem se desenvolvendo como parte de um percurso de doutoramento, que
entre outras atividades de teor empírico e experimental, propôs até este
momento, a escrita de cartas ao corpo, entendendo que tal graa aciona
uma zona de produção de sentido capaz de manifestar, por meio da escri-
ta, as intensidades de um corpo pesquisador outras atividades de cunho
experimental, vem sendo organizadas, ocinas estão sendo propostas e
tensionarão um corpo pesquisador intensivo, um corpo CSO pesquisador,
serão desenvolvidas em 2022.
Contudo, a necessidade de isolamento social provocada pela pan-
demia 2020 e 2021, nos obrigou a quase total paralisação das atividades
de ensino, pesquisa e extensão. A dinâmica do distanciamento trouxe ins-
tabilidade aos modos de viver e sobreviver. Esse movimento de pausa se
associa ao descaso com a educação e com a cultura, exercido pela gestão
67 - O projeto de extensão EXPERIMENTAÇÕES COM O RIZOMA: cartografar, pensar e criar um corpo intensivo, or-
ganizado e proposto pelo Grupo Rizoma/UFPR, colaboradores e convidados está em desenvolvimento desde 2020, nesse
ano, segundo semestre já realizou cinco ocinas
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do Estado brasileiro que acua o meio social e o fragmenta no desamparo
econômico e sanitário, trazendo desmobilização à formação prossional
em todos os níveis. Vimos-nos temporariamente impedidos de ativar uma
experimentação docente que permitisse, no ambiente institucional no qual
se desenvolve a pesquisa, a troca de novas sensibilidades, assim como o
contato com novas linguagens e percepções do corpo pesquisador, tradu-
ções que podem surgir quando um professor performer movimenta sua arte
educação.
Logo, essa pesquisa pelos motivos acima expostos, vem sendo te-
cida através de estudos que atravessam o campo da arte educação, quando
tenciona a tríade corpo [pesquisador], performer professor [de arte] e o
ensino de arte, nos arranjos de uma composição teórica e postura losóca
que vem de Deleuze e Guattari (1995). Estes autores no desenvolvimento
de um pensamento rupturante ousam rachar com as bases da racionalidade
moderna alicerçadas na raiz iluminista; ao mesmo tempo em que rompem
com as concepções metodológicas subjacentes à virada linguística, espe-
cialmente as propostas pelo estruturalismo, desenvolvidas na segunda me-
tade do século XX.
Ao se aproximar deste pensamento plural e intenso, desenvolvido
por estes pensadores, a proposta de um corpo-pesquisador revela-se próxi-
ma ou em diálogo com uma lógica do sentido (DELEUZE, 1974). Lógica
que começa uma desconstrução dos contornos operativos, com os quais se
costuma representar um corpo ético-estético e político, heteronormativo,
branco e cristão, corpo organizado pelas representações do capital, que
não funcionam mais, enquanto e nas instituições de connamento. Es-
tamos vivendo em uma sociedade de controle, dizem Deleuze e Guattari
(1997), cujos modos de organização social não funcionam mais em con-
namento, mas através de um controle contínuo das formas de expressão e
comunicação (NEGRI, 2019).
A pandemia da Covid-19 intensicou este controle. Professores, ar-
tistas, performers tiveram que se reinventar, criar novas formas de expres-
sar seu ser, sua arte, sua pesquisa, sua sala de aula – ao passo que se encon-
travam restritos às limitações das plataformas digitais, dos eletrônicos, das
câmeras e das redes de internet.
Segundo Deleuze e Guattari (1997) as formas de controle social, na
sociedade atual, funcionam em espaço aberto, espaço ocupado por agen-
ciamentos coletivos e por máquinas, que nada mais são que formas de or-
250 Corpo, políticas e territorialidades
ganização da comunicação, as quais controlam os modos de pensar e do
agir das pessoas e o fazem em conjunto com outras formas que se oferecem
a este contexto, ora de resistência ora de delinquência. Deslocando a A/R/
Tograa para uma concepção de corpo artauniana (cf ARTAUD, 1993),
Deleuze e Guattari trazem a noção de Corpo Sem Órgãos/CSO, corpo que
não se permite, divide-se em partes, corpo que não se rotula por categorias
analíticas ou psicanalíticas, corpo esquizo que atualizado em corpo-pes-
quisador refere-se mais a processo do que a projeto de pesquisa; diz mais
respeito às singularidades do que ao sujeito, quando traduz a composição e
a organização das atividades artísticas - com as quais propõe estratégias e
modos de participação - que não o enclausuram no sistema aberto, sistema
em que funciona e opera a máquina abstrata do capitalismo, a qual o estru-
turalismo conseguiu apenas revelar as formas de enunciação, os conjuntos
discursivos e a encarnação de territórios existenciais, adequando o que é
vivo as ordens do abstrato.
Nesse atravessamento sem imitações, sem receita, o devir losóco
mapeia, pinça, amplia passagens, denuncia agenciamentos, perpassa de um
ponto a outro em movimentos innitos, que agora atuam em um corpo-pes-
quisador.
Corpo que é ato de criar, marca presença, provoca velocidades es-
téticas e pode ter a potência de transmutar movimentos de isolamento em
possibilidade de vida. As imagens sobrepostas substituem a presença do
corpo e as forças, afetos e o calor de outro corpo que foi substituído por
telas. A imagem substituiu a presença, as forças, os afetos e o calor do ou-
tro corpo. Cor pó, por cor no corpo. Corpo tela, corpo texto que pode ser
visto, mas permanecer atroado. Corpo cor denida pelos pixels e pelos
enquadramentos das câmeras. Corpo sons, palavras e gestos compartilha-
dos, roubartilhados. Corpo que se desfaz da própria presença, a extirpa,
engole, planica, a traz através de dispositivos eletrônicos e de outros la-
birintos do capitalismo. Corpo submetido ao isolamento ânsia, desfoca,
borra, tenta movimentar-se pelos espaços vazios da casa e retornar a ser
corpo do sentido!
Na primeira pesquisa narrada, o corpo-pesquisador, enquanto ele-
mento participativo da análise investigativa, traçou um percurso que partia
de uma obra artística que sensibilizava algo sobre um corpo fragmentado
e objetivava movimentar as estéticas e sensibilidades que se apresentavam
inoperantes ao performer professor. Trouxe para tanto o movimento das
251Vol I - Subjetividades & Diferenças
guras e imagens, percorreu a arte escultórica de uma artista local, orga-
nizou encontros que resultaram em performance arte no objetivo de ativar
um corpo do sentido desdobrado do performer professor.
Na pesquisa atual em processo, o corpo como elemento e plano de
composição e de produção de saberes, faz de si um mapa, composto por
linhas que o explodem como linguagem. Ainda parte desdobrada do pro-
fessor performer, esse corpo-pesquisador pretende reformar trajetos, des-
montar normatividades, remover estagnações, xidezes de sentidos que
enrijecem as expressões e experimentações, que vindas do sentido, povo-
am esse corpo e sua produção pré-pessoal. Libertar as expressões e escapar
dos procedimentos lineares que enquadram uma arte educação envolve li-
bertar um corpo artesão, criador de processos mutantes, que o revelam para
além de uma matéria objetiva e uma forma subjetiva e o lança para fora das
linhas que reconhece limítrofes.
O corpo pesquisador se faz mapa ou rizoma, no qual o pensamento
e a materialidade do corpo são dados que se deslocam, mergulhado em
sensações, em percursos que podem ser sempre reabertos desmontáveis,
conectáveis, reversíveis, construindo e desconstruindo relações que podem
ser modicadas, ter múltiplas entradas e saídas para inúmeras linhas de
fuga, de sobrevoo ou de composição (DELEUZE; GUATTARI, 1995b).
Trazemos, no primeiro plano de sobreposições desse rizoma, resultados
inacabados ou dados não xos, que não pressupõem revisitar os efeitos re-
gistrados, como produto de uma sensibilização artística, colhidos em uma
pesquisa acadêmica em movimento.
A cartograa explora para além da A/R/Tograa um corpo pesqui-
sador, que revira a postura do professor-performer, do artista pesquisador,
quando busca um mapeamento dos modos de existência e de resistência
que envolve planos de composição dos afetos e de outros elementos hete-
rogêneos ou de uma heterogenética, política do pensar. “Um plano de dife-
renças e plano do diferir frente ao qual o pensamento é chamado menos a
representar do que a acompanhar o engendramento daquilo que ele pensa”
(PASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 10).
É preciso revelar que a cartograa é, antes de qualquer coisa, uma
postura estética de produção de conhecimento, que atua, conforme propu-
seram Deleuze e Guattari (1995), buscando desvelar os regimes de poder e
saber, que compõe e decompõe a subjetividade, com o intuito de entender
as maneiras com as quais hoje reinventamos as formas de inteligência e da
252 Corpo, políticas e territorialidades
sensibilidade, que estruturam o mundo contemporâneo. Como a subjetivi-
dade capitalista que nos ronda “é a mais vertiginosa devido a seu vazio, sua
banalidade, sua vulgaridade, seu estado de coisas demasiadamente prosai-
co” (NEGRI, 2019, p. 133), é preciso romper com certa imobilização do
pensar-sentir.
A cartograa permite um corpo-pesquisador intensivo, que se esta-
belece tal um bulbo ou um rizoma, que aciona uma proposição conceitual-
-metodológica com a qual forma um plano de linhas intensas e intensivas,
que se desdobra em identicar territórios subjetivos maquinados por uma
estética do capital e, na busca de subverter uma arte serviçal, pretende
ousar práticas desterritorrializantes, que alcancem um corpo-pesquisador,
corpo de um pesquisador performer professor, que se reterritorializa para
criar novas congurações, dinâmicas e experimentais do ensino da arte. A
cartograa opera metodologia desejante, com a qual um corpo-pesquisa-
dor experimenta percursos, processos de criação e recriação das conexões
entre redes, e é identicado como um rizoma (CUNHA, 2019; PASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015).
O rizoma permite criar um campo de interconectividade entre con-
ceitos que operam na medida em que os corpos interagem com as proposi-
ções de criação de Arte. A principal base teórica do plano rizomático está
na losoa da diferença, a partir da obra de Gilles Deleuze na parceria com
Félix Guattari. Estas vozes de uma losoa prática baseada na vida pro-
vocam rasgos nas tradições, oferecem reverberações intensas e instigam
um pensamento que explora as éticas e estéticas para a criação de corpos
sensíveis e vivíveis. Com essas superfícies provocadoras das velocidades
de pensamento, a losoa de Deleuze e Guattari busca explodir com os
padrões da tradição para que as linhas de composição desencadeiem di-
álogos, conexões e innitas potências com as áreas da Arte (DELEUZE;
GUATTARI, 1996).
Esse corpo-pesquisador se envolve com a Performance Arte para
traçar um plano de conexões e linhas, que forma um território do qual
pode emergir encontros com outros corpos que investigam e experimentam
novos sentidos em traçados colaborativos. Corpos em movimento disso-
nantes e ressonantes, que escrevem cartas, deslocam as estruturas da lin-
guagem em rasgos performativos que quebram noções espaço-temporais,
que condicionam o corpo à determinada normatividade. Como uma tríade
criadora, que se distinguem e ao mesmo tempo que se assemelham, com-
253Vol I - Subjetividades & Diferenças
põem, transcriam, rizomatizam-se para provocar as congurações de um
corpo contemporâneo que grita por expressividade da vida.
Um corpo, meu corpo, corpo estético desta segunda pesquisa, no de-
sejo de conectar-se com a losoa deleuziana-guattariana, caminha rumo
ao desconhecido. Corpo que vem sendo ativado pela performance arte e
com ela, com essa estética e prática reorientadas losocamente, tenta
romper com os modos de pensar autoritários que interceptam sua subjeti-
vidade docente. Busca uma expressão corporal nômade e rizomática, com
a qual a Performance Arte possa surgir pressupondo o corpo como ator,
que autônomo na construção de sua presença, não se restringe à materiali-
dade física nem às estruturas subjetivas socialmente propostas. As criações
artísticas e os estudos que abarcam a Performance Arte, suas noções e lin-
guagem artística, a consideram um aporte de saberes que se estabelece em
três campos distintos, a saber: as Artes, a Antropologia e a Filosoa. Essas
áreas de conhecimento (ICLE, 2010) podem se apresentar como planos
sobrepostas em uma abordagem metodológica cartográca, compondo um
caráter interdisciplinar e indisciplinado ao percurso de pesquisa. A carto-
graa permite que o percurso de pesquisa se construa e se reconstrua, na
medida em que o caminho é trilhado, assim as diversas abordagens concei-
tuais exigidas pelos estudos da performance podem convocar novo arranjo
ao corpo-pesquisador.
A cartograa dá forma ao conteúdo dessa segunda pesquisa e dese-
nha um plano de imanência no qual se organiza a sobreposição de multipli-
cidades que se fazem entre losoa (deleuziana-guattariana), performan-
ce arte e a educação. Esse plano de conexões próximo a uma artistagem,
conceito proposto por Corazza (2006), busca reunir as dimensões de uma
estética-ética, que junto a uma política acionam um pensar a ação docente
como uma produção de arte e processo de criação de sensibilidades em de-
vir. O agir docente como ação inventiva persegue o invisível, o impensável,
o indissociável em experimentação artística e corporal, ousamos que seja
o vivido em experiência em sua produção de sentido (CORAZZA, 2006).
Outros conceitos que demarcam a vizinhança que se arranja nessa
pesquisa cartográca são o devir, o corpo sem órgãos e a Performance
Arte. Deleuze, junto a Guattari, ao criar conceitos para compor uma loso-
a experimental, buscou nomenclaturas em outras áreas do conhecimento.
Ambos rompem com as margens do pensamento losóco na intenção de
atualizar esse pensar e povoá-los de novos sentidos, Deleuze (1992), es-
254 Corpo, políticas e territorialidades
pecialmente, faz uso de muitas das criações vindas de várias especicida-
des artísticas, chama de intercessores esses elementos que pinça em outros
campos e passam a operar como disparadores de intensas experiências de
pensamento.
A intenção é aproximar a Performance Arte de certa irregularidade
e espontaneidade do devir, entendendo que o devir e o ato de performar
estão em processo constante de imanência, são o que está sempre em vias
de ser, vivido ou percebido, que supõe ultrapassar a própria realidade que
de algum modo condiciona sua efêmera existência.
Conclusões de uma pesquisa em processo
Apresentamos neste artigo dois movimentos de pesquisa, duas abor-
dagens metodológicas, que podem dar suporte à criação de investigações
que se debrucem em processos e produtos artísticos com a nalidade de
organizar a produção de conhecimento em arte e educação. A A/R/Tograa
busca ter como estratégia acompanhar a produção de processos e produtos
artísticos, ações de natureza estética, que associadas a experiências que
envolvem o ensino da arte, exigem que sejam investigados, problematiza-
dos e compreendidos como experiências educacionais sensíveis. (CARVA-
LHO; IMMIANOVSKY, 2017, p. 226). Enquanto a cartograa opera com
o “entre”, áreas, campos, estados de ser e suas conexões, a A/R/Tograa
na esfera dos procedimentos de pesquisa atua na e pela arte, delimita seu
território investigativo às pesquisas que traduzem questões entre a arte,
docência e experiências artísticas. Ambas oportunizam a experimentação
de linguagens artísticas, mais espontâneas, ações de um corpo pesquisador.
A A/R/Tograa, porém, não se preocupa em romper com os dualismos da
modernidade e com outros elementos que compõem a tradição da pesquisa
cientíca, partilhados na pesquisa-ação.
O desao de pesquisa atual que faz uso da abordagem cartográca
é fazer funcionar um corpo pesquisador que foi deslocado de si no ato de
olhar para a composição das subjetividades que atuam no performer pro-
fessor. Corpo que se observou em devir, em um estado geográco inde-
nido, uma vez que os devires são geograas, orientações, direções; há um
devir losóco que atravessa um corpo pesquisador e sua pesquisa em arte
e educação.
255Vol I - Subjetividades & Diferenças
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257Vol I - Subjetividades & Diferenças
Evanildo F. Vasco Viana
Débora dos Reis Silva Backes
Dinamara Garcia Feldens
DDevir-Orixá:
Processos de
transformação do corpo
259
Um dos traços que caracterizam a pós-modernidade é a subjetivação
dos corpos, que por sua vez denotam uma concepção de realidade que se
relaciona com a dissolução das fronteiras entre o que pode ser chamado de
alta cultura - o que pode ser associado com os valores vigentes e aceitos
como adequados pelos grupos hegemônicos e cultura popular - o resultado
das ações dos grupos menores, inferiorizados ou dominados (BHABHA,
2007). Nesse sentido, nossas buscas acadêmicas tendem a um retorno às
práticas singulares enquanto portadoras de uma importância peculiar, fu-
gindo do referencial iluminista modernista que desqualicava as potencia-
lidades singulares, regionais e locais como possibilidades.
O Candomblé tem uma forma muito particular de narrar o mundo.
Músicas, rituais e uma forte tradição compõem e caracterizam as vivên-
cias, as relações e o entrelaçamento entre arte, crença e realidade que, so-
madas nesse jogo de forças acabam por caracterizar essa religião afro-bra-
sileira. Para o candomblé, o desenvolvimento pleno de seus iniciados se dá
a partir das vivências das experiências apreendidas a partir da perspectiva
religiosa, cuja ideia central seria a de conhecer, explicar, valorar e criar
uma perspectiva do mundo através dos seus conceitos, dos seus mitos, da
sua cosmogonia e de sua ritualística especíca.
Partindo dessas considerações, as interlocuções mobilizadas nesse
texto discutem universos de seus ritos, encobertos através dos segredos e
sabedorias, nomes e cantigas toadas em línguas desconhecidas e misterio-
sas , passos de danças que se transformam em louvação à divindades, num
jogo relacional que envolve aspectos ligados à cultura de vários povos,
suas raízes culturais e processos de educação não-formal expressos num
mundo novo de ritos e gestos que expressam uma maneira diferenciada de
se ver e fazer religião. Araújo (2008) nos remete às articulações do corpo
que estabelecem consonâncias com as múltiplas conexões da sua realidade
religiosa.
68 - Os iniciados referem-se às línguas Banto como fomentadoras do mistério que ajudou a preservar o candomblé quando
da necessária sincretização.
68
Constituído e plasmado de modo biocultural, como
constitutivo ontológico que une o bio-psico-químico e
os repertórios culturais/simbólicos, como amálgama de
signicados e sentidos existenciais polifônicos, o corpo, em
nosso processo civilizatório, é concebido e compreendido
mediante cosmovisões bastante diversicadas em
consonância com os uxos de cada contexto cultural
(ARAÚJO, 2008, p. 63).
260 Corpo, políticas e territorialidades
Entre os diversos momentos ritualísticos e os múltiplos signos que
constituem e caracterizam a religião dos santos, buscamos, através da es-
crita deste trabalho, compreender as transformações do corpo a partir dos
processos de iniciação no Candomblé de nação Angola, já que são consi-
derados como nascimentos ou renascimentos, do lho de santo iniciático,
na condição agora de membro iniciado e em constante evolução, ou seja,
na qualidade imanente de ser em transformação, de um devir-orixá, onde o
iniciando, conhecido após esse primeiro processo como iaô, passa a inte-
ragir, através das manifestações em seu próprio corpo, com o orixá, perso-
nicando-o. Todos os ensinamentos são feitos e referenciados através dos
mitos e ritos que embasam suas práticas, através dos ensinamentos de um
líder, do pai de santo.
Os processos de iniciação
Compreendidos como uma cadeia composta de diversos rituais es-
pecícos, independentes e inter-atuantes, tais processos são referendados
como marcos determinantes da entrada, cooptação e aceitação dos novos
membros à sua nova comunidade (família) religiosa.
Os processos iniciáticos ressaltados em nosso trabalho são destaca-
dos pelos entrevistados como formados de dois principais processos de ini-
ciação: O bori e o feitorio. Tais percursos determinam em nossas tessituras
o processo de construção de uma subjetividade especíca, denotada pela
relação entre iniciado-orixá, criando o devir-orixá, marco teórico que cita-
mos como responsável pelo desenvolvimento da subjetividade inerente ao
lho de santo imbricado ao seu deus orixá. Em relação ao devir, Deleuze e
Guattari (2008c) nos remetem:
O que é real é o próprio devir, o bloco de devir, e não os
termos supostamente xos pelos quais passaria aquele
que se torna. O devir pode e deve ser qualicado como
devir-animal sem ter um termo que seria o animal que se
tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja real
o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-
outro do animal é real sem que esse outro seja real. É este
ponto que será necessário explicar: como um devir não tem
sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não
tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado
261Vol I - Subjetividades & Diferenças
num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que
faz bloco com o primeiro. É o princípio de uma realidade
própria ao devir (DELEUZE; GUATTARI, 2008c, p. 18).
O conceito de devir não naliza nem termina o que quer que seja
relacionado a ele. No caso dos lhos de santo e sua relação com os ori-
xás, o devir-orixá não constitui um m em si mesmo, mas uma passagem,
uma transformação que se dá na relação do iniciado com as características,
peculiaridades, sutilezas, próprias do orixá, sem que o mesmo tenha que
efetivamente incorporar em seu corpo . A noção que damos à incorporação
revalida o conceito de devir-orixá quando nos remete a um estado passa-
geiro, não nalizado, de interação entre iniciado e orixá. Os membros da
casa, os iniciados rodantes ou não, são determinados pelas relações entre
seus próprios orixás e o orixá do pai de santo.
Encontramos algumas referências sobre a relação que se cria na es-
pritação dos santos e sua relação com o devir presente em suas possibilida-
des. Nas palavras de Deleuze e Parnet (2004, p. 12):
Devir nunca é imitar, nem fazer como, nem uma sujeição
a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um
termo de que se parte, nem um ao qual se chegue ou ao qual
se deva chegar. Também não dois termos imutáveis.
A questão “o que é que tu devéns” é particularmente
estúpida. Porque à medida que alguém devêm, aquilo que
devêm muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são
fenômenos de imitação nem de assimilação, mas de dupla
captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois
reinos.
A relação que se estabelece entre o iniciado e o orixá constitui-se em
uma multiplicidade, um rizoma. É criação de um novo signo, o devir-orixá,
representante da união, do novo lugar de saber do iniciado. Uma possibili-
dade que se dá na espritação, que formas novas e únicas vivências, que cria
aprendências novas e exclusivas. “O corpo aprende aos poucos através do
aprendizado do santo, de abiã a iaô” conforme cita o babalorixá em nos-
sa primeira entrevista. A espritação gera um elemento novo formado pela
69 - Existem na casa pessoas (lhos de santo) que não incorporam, não espritam. Geralmente eles recebem um cargo,
ekédis, e cam responsáveis pelos lhos incorporados ou espritados (rodantes).
70 - Os rodantes são os lhos de santo que incorporam.
69
70
262 Corpo, políticas e territorialidades
apropriação dos signos mundanos e sagrados, dos signos do homem e do
orixá.
A resistência dos grupos religiosos afro-brasileiros, especialmente
no Candomblé de Angola, dá-se através da possibilidade de se manter el
às suas tradições, mesmo que estas sejam instáveis, que estejam em cons-
tante transformação, dada a instabilidade derivada do próprio ambiente de
cultura em que estão relacionadas. As culturas vivas absorvem e são absor-
vidas pelos diversos ambientes em que estão inseridos. A manutenção das
tradições religiosas afro-descendentes em modelos apócrifos possibilita
uma postura complexa e ambivalente em relação às suas tradições: em pri-
meiro lugar, uma busca de manutenção dessas mesmas tradições e depois
uma possibilidade de mudança de seus próprios conceitos e afetos, dadas
as transformações que se dão na transmissão dos confetos transmitidos e
dos mitos no passar dos tempos, em tradições vinculadas pela palavra, pe-
los contatos com outros ambientes culturais. Gauthier (2005) falando em
nome da sociopoética nos remete ao conceito de confeto:
Na Sociopoética, pensar é coisa onde interferem afetos e
conceitos. Os afetos não são as emoções individuais, e sim
intensidades que percorrem corpos, potencializando-os,
separando ou compondo-os. Quando o grupo pesquisador
está exercendo-se no pensamento, ele trabalha segundo
um estilo próprio, ele cria uma personagem original [...]
Com a noção de confeto, instalamo-nos no ‘entre-dois’,
no espaço-tempo diferenciador, ou seja, criador de cultura,
como esses ‘gênios híbridos’, poetas, pintores, músicos
que [...] modicam de maneira decisiva o que pensar
signica, apresentando uma nova imagem do pensamento
povoando-o de entidades artísticas (GAUTHIER, 2005, p.
258-259).
Dado que o grupo em que realizamos a nossa pesquisa é de nação de
angola, ele segue algumas indicações rituais próprias às suas origens: utili-
za os ritos de angola em suas manifestações religiosas, usa a língua iorubá
nesses rituais e segue os ensinamentos incorporados e desenvolvidos pela
sua mitologia. Entretanto, esse grupo eventualmente utiliza a língua banto
71 - Alguns autores, especialmente Prandi (2001), nos remetem às diversas línguas que compõem o repertório dos bantos,
sendo o yorubá, o suahili, apenas duas delas.
71
263Vol I - Subjetividades & Diferenças
em determinados momentos do ritual, conforme nos reporta um dos entre-
vistados num dos trechos descritos, assim como efetua diversos rituais de
acordo com os procedimentos de outras nações. Como a religião se tornou
semi-independente em regiões diferentes do país, entre grupos étnicos di-
ferentes evoluíram diversas “divisões” ou nações, que se distinguem entre
si principalmente pelo conjunto de divindades veneradas, o atabaque e a
língua sagrada usada nos rituais. O que descrevemos como semi-indepen-
dência, na verdade deve ser entendido como uma exibilidade existente
entre os diversos seguidores de uma dada nação de Candomblé quando
alocado nas diferentes áreas e concentrações de outras populações e grupos
culturais. Nesse processo de construção cultural, as línguas de diferentes
nações foram amalgamadas, desterritorializadas e incorporadas em uma
nova forma de traduzir os diferentes conceitos e passos ritualísticos absor-
vidos de outras manifestações que compuseram a religião dos santos.
Entretanto, como qualquer manifestação cultural, mecanismos di-
versos de absorção e transmutação criaram subdivisões das formas primá-
rias originais. O Candomblé atualmente é conhecido como uma religião
derivada principalmente dos ritos religiosos tribais africanos, aprimorada
no Brasil como forma de resistência cultural contra a escravidão, contra a
dominação e a imposição de uma outra cultura dita superior em relação a
sua. Ainda assim, temos no território brasileiro diversas manifestações do
Candomblé com algumas variações nos rituais, conceitos, ritos, nomes e
nomenclaturas diferentes. Prandi (1997, p. 06) relata que:
Basicamente, as culturas africanas que foram as principais
fontes culturais para as atuais “nações” de Candomblé
vieram da área cultural banto (onde hoje estão os países da
Angola, Congo, Gabão, Zaire e Moçambique) e da região
sudanesa do Golfo da Guiné, que contribuiu com os iorubas
e os ewê-fons, circunscritos aos atuais território da Nigéria
e Benin.
Pensando a respeito de uma denição sobre religião, encontramos
em Silva (2004) tratar-se de um sistema comum de crenças e práticas re-
lativas a seres sobre-humanos inseridos em universos históricos e cultu-
rais especícos. Considerações importantes acerca de tal sistema podem
ser observadas através dos estudos de Moraes (2011), ao ressaltar que a
religião, assim como a cultura, é capaz de expressar sentimentos, denir
mundos e orientar um determinado grupo, através de dimensões simbóli-
264 Corpo, políticas e territorialidades
cas, modelando dessa forma a ordem social, já que através dos símbolos,
mitos e ritos, a religião formula e reforça disposições capazes de modicar
o homem com o respaldo de valores sociais e orientação de condutas indi-
viduais.
Por conseguinte, devemos fazer uma pequena digressão e esclarecer
um detalhe na conceituação das religiões: uma religião precisa ter, segun-
do as nossas referências, um clero, um credo e uma liturgia, o que efeti-
vamente nos reporta que o Candomblé, assim como diversas outras ma-
nifestações religiosas afro-brasileiras, pode ser considerado efetivamente
uma religião. No candomblé, entretanto, podemos vericar um clero que
se apresenta com uma gama enorme de diversidade em relação às fun-
ções existentes em sua hierarquia; vemos um credo fortemente arraigado
na crença dos orixás, antepassados que guardam uma semelhança com os
santos católicos (dado que os mesmos foram vivos e conviveram entre os
humanos em um dado tempo histórico); e a liturgia do Candomblé que se
apresenta de uma pluralidade de mitos e ritos que sustentam simbólica e
conceitualmente os aspectos representados pelos iniciados quando das ma-
nifestações especícas.
Em consonância com os preceitos estabelecidos pela pós-moder-
nidade, cultura, processos culturais, vêm signicar uma relação entre di-
versos elementos que se transformam, relacionam-se de forma constante,
interativa e modicam-se à medida que se entrelaçam padrões, comporta-
mentos, signos, sentidos, elementos, corpos. Percebemos que os processos
religiosos que estiveram se desenvolvendo no Brasil foram fermentados
com particularidades presentes em nosso território, uma mescla de singu-
laridades que se misturaram, como africanidades, europeizações ocidentais
e indianidades nacionais, que resultaram num amálgama de criações e cria-
turas representadas e constituídas como uma das formas de manifestação
religiosa presente em nosso contexto e cada vez mais considerado em nos-
so meio sócio cultural.
Com a incorporação da divindade, chamado por alguns de “santo”
no corpo iniciado, desterritorialização dos elementos que agora são par-
tes que compõem o deus, o corpo que se modica, demonstrado também
através da postura corporal, assume gestos e movimentos que imitam as
atividades primárias que seriam mais destacadas pelos lhos de santo dos
seus orixás: imitam um caçador, um pescador, o vento, as águas, o tempo.
As voltas e giros, os passos de dança, os olhos cerrados, a posição dos
265Vol I - Subjetividades & Diferenças
corpos; os gritos também fazem parte, dependendo de quem está incorpo-
rando. Esses traços são incorporados pelos iniciados e repetidos em suas
incorporações quando da espritação lho-pai, ou seja, eles são absorvidos
como traços pertencentes a um deus pai que deve ser demonstrado pelo
lho quando for por aquele assimilado.
Os deuses ou divindades do Candomblé não são simbolizados e
nem entendidos como seguidores ou indicadores dos ideais de perfeição
que acompanham outras divindades judaico-cristãs, nem do ponto de vista
comportamental, nem moral, nem eticamente: são representados e tradu-
zidos em seus mitos com um grau de humanidade, com uma humanização
que associam sobremaneira homens e deuses com características comuns
que os aproximam mais à medida que aqueles conhecem e são incorpo-
rados por estes. Eventualmente felizes e tristes, bondosos e rancorosos,
malécos ou vingativos e benevolentes ou condescendentes, os deuses são
entendidos no Candomblé como se as emoções, sentimentos e aspectos
caracteriológicos fossem iguais aos dos homens. Sendo assim, os orixás
modicam seus comportamentos e suas emoções de acordo com as situa-
ções e circunstâncias mundanas, cotidianas e ou relacionais, especialmente
em decorrência dos pedidos dos lhos de santo.
Nos registros encontrados na fala dos sujeitos da nossa pesquisa, os
orixás representavam os valores encontrados nas terras africanas, sendo
caracterizados como seres divinos que foram alçados ao orum, o mundo
espiritual, por conta das ações efetivadas na terra, no aiye. Antigos reis,
rainhas, líderes espirituais, chefes de aldeias, guerreiros e líderes de na-
ções complexas em sua terra natal, os orixás formavam na religião africana
original, um grupo de entidades que eram adoradas como antepassados
mortos, termo hoje chamado de egunguns.
O processo de aprendizagem dentro do candomblé começa a acon-
tecer quando começa a haver alguma curiosidade sobre o tema. Sabemos,
por exemplo, que o lugar em que acontecem os rituais do Candomblé pode
ser chamado de roça, se perto dos centros urbanos e terreiros, se for loca-
lizado longe dos centros urbanos. Há uma mudança sutil, mas perceptível
com clareza pelos iniciados em relação à estrutura, à forma, à apresen-
tação, à conceituação, às passagens, à movimentação corporal, cinestési-
ca, ao tempo na linearidade, na lógica, nos rituais, nos ensinamentos, nas
aprendizagens, que compõe cada um dos chamados Candomblés. Segundo
um dos entrevistados:
266 Corpo, políticas e territorialidades
Se você vai falar pelo lado da religião, pelo lado da fé
que move o homem aí, ao Candomblé, primeiro lugar ele
é chamado através do próprio ou seja, nós normalmente
tem pessoas que procuram ser lho de santo porque está
passando por problemas, isso, vai pro jogo pra ver se é
cobrança do orixá, outros procura a casa de santo porquê
está doente, é uma cobrança, uma manifestação do orixá, lhe
chamando pra você ir, outras, procura o Candomblé porque
acha lindo, porque se encanta e vai ser lho, primeiros
passos que normalmente na vida cotidiana, cotidianamente
acontece isso, eles procuram por esse motivo, quando ele
dá esse primeiro passo, o pai de santo ou babalorixá vai
colocar ele no quarto da consulta e vai jogar búzios pra ele
pra ver quem é o orixá, que é tomar conta do ori dele, da
cabeça dele, quem é o orixá de frente dele, pra daí começar
a ver quem é esse orixá dele e começar a tratar, e o primeiro
tratamento dele é como falei é dar o obi de iniciação dele,
mas o primeiro passo que ele vai dar quando ele descobre
que nasceu ‘pra’ estar ali dentro do Candomblé, ele vai
procurar um pai de santo, ‘pra’ tratar, pra começar, vai
começar a dizer ao lho o que tá acontecendo na vida dele
e o pai de santo como é que ele vai acreditar ou ter um
direcionamento. É o jogo de búzios, então, os ifás que vai
dizer qual é o caminho que ele deve seguir com esse lho.
Se ele deve dar uma obrigação dele pra esse lho, se ele
deve dar uma obrigação só pra cuidar dele espiritualmente
só pra ele ir pra casa dele, aí, quem vai determinar é os ifás.
É o pai de santo que vai jogar ‘pra’ determinar qual é o
Caminho dele. Se for pra ser lho ele vai ter esse processo
de iniciação como eu lhe falei, mas isso pode fugir a regra.
Existem cobranças maiores que você pode e iniciar de obi,
você pode iniciar o processo de feitura mesmo, então isso
vai depender de como vai estar a sua situação espiritual.
E quem vai ver isso é o babalorixá mesmo no ifá. Tudo
no Candomblé parte dos ifás, o pai de santo sempre vai
consultar os ifás, ele, tudo que ele for fazer, ele vai lá nos
ifás. Se ele vai lhe dar uma obrigação, ele vai ‘pra’ ver se o
orixá está aceitando, pra ver se o orixá dele, que é o zelador
da casa está aceitando também. Se ele aceita você na casa.
Então tudo ele vai nos ifás. É o caminho do Candomblé,
tudo parte dos ifás (BABALORIXÁ, 2011).
267Vol I - Subjetividades & Diferenças
Os passos a serem seguidos na religião dos santos são suscetíveis
a mudanças de acordo com as determinações dos orixás, mediadas pelos
ifás, uma espécie de transmissor de suas vontades. Os rituais de iniciação
devem ser efetuados sempre de acordo com as prescrições estabelecidas
pelos ifás e de acordo com as vontades do seu orixá. As transformações que
se seguem aos fenômenos iniciáticos constroem a subjetividade inerente
ao grupo em questão e reforçam os aspectos que caracterizam os diversos
grupos em suas sutis diferenças.
Nesse momento da articulação devemos falar das múltiplas pedago-
gias do corpo, que trazem um signicado sobre elaborações historicamente
construídas no interior das múltiplas sociedades africanas para explicar as
diferentes formas de lidar e cuidar do corpo. É complicado falar em um
processo de iniciação no Candomblé, já que os iniciados passam por diver-
sos processos que são considerados movimentos de iniciação. Cada novo
evento a que se submetem, cada novo ritual apreendido, cada vez que ao
mesmo são demandados um aprimoramento constante de suas habilidades
em desenvolvimento, todos esses momentos são considerados pelos mem-
bros do Candomblé como momentos de iniciação, já que um novo início se
dá a partir das novas aprendizagens que se efetivam no corpo do iniciado.
O percurso do membro quando da sua pré-iniciação no Candomblé
passa por algumas ações distintas que denotam a interação que se inicia
entre a pessoa, o iniciando e o seu orixá, através de mediadores primeiros
como os ifás ou búzios. Quando de algum tipo de orientação para se buscar
o Candomblé, o iniciado busca o pai de santo para que este lhe jogue os bú-
zios e lhe responda as perguntas que se achem necessárias, estabelecendo
uma primeira relação entre os membros, numa construção hierárquica que
se inicia e se estabelece entre o novo membro e o pai de santo, os media-
dores dos orixás. Segundo nossos entrevistados:
72 - É importante salientar que não há uma formalização aguda do processo de pré-iniciação. Geralmente, os membros
passam por 3 rituais outros antes da iniciação em iaô, chamado feitorio, que seriam o obi, o bori e o bossé. Alguns não
passam por todos os rituais, dependendo da vontade do orixá expresso através dos ifás.
72
Todo o lho de santo ele passa pelo processo que lhe
falei de aprendizagem. Então dentro do quarto de santo
quando você vai pra camarinha, a gente fala camarinha,
você passa pelo processo de ensino, por exemplo, você
começa a pedir, a falar tudo dentro do Candomblé na
língua ioruba, tudo, tudo. Se você quer água, se você tá
268 Corpo, políticas e territorialidades
pedindo um prato, se quer uma faca, se você quer comer.
Então, esse processo que você é, vai passar, você tem que
se iniciar pra poder você ter uma orientação, um processo
educacional realmente, por que vai ter o zelador da casa ,
o pai de santo ou babalorixá, ou outro cargo dentro da casa
que vai sentar com o iniciado e vai explicar pra ele o que
é, por exemplo, se você quer água você vai pedir omi, não
vai pedir mais água, se você quer um prato vai pedir itibirí,
se vc quer a delunga, que é a caneca pra vc tomar água,
pede a delunga, se você quer pedir o fogo você vai pedir o
isô, vc não vai , você vai aprender a trabalhar, a utilizar as
linguagem do Candomblé. Por que se você tiver em outro
local, normalmente você pode ser testado. Fulano, me dê o
isô, se vc não sabe o que é isô, dentro do Candomblé, você
é iniciado e não sabe o que é isô, você já vai ser criticado.
Então você tem que entender. A linguagem que é utilizada,
a linguagem banto, que vai, trabalhar com essas duas, com
linha de ketu e com a linha de angola, né, então a linguagem
banto ela vai estar sempre trabalhando junto, ai você só
passa por esse processo quando você se inicia, aí você
aprende, quando você é iniciado, enquanto pesquisador
você vai compreender o que as pessoas vão lhe dizer, lhe
falar, mas você não vai ter a obrigação de conhecer, mas
os iniciados eles têm a obrigação de conhecer a linguagem
utilizada, ocial utilizada dentro do Candomblé (OGÂN,
06/04/2011.
Dentro da mitologia religiosa africana, as homenagens aos ante-
passados, aos seres divinos e aos transmissores de informação (escravos
dos orixás) se dão através de diversos elementos simbólicos e naturais.
Seja uma planta, uma comida, seja um ritmo tocado, ou mesmo o tipo
de material usado nas roupas, ou uma concha de algum animal marinho,
ou até mesmo uma determinada cor, cada um dos pequenos detalhes que
se apresentam vem representar a ligação dos orixás com os iniciados e o
uso desses elementos por parte dos seus lhos , modo comum a que são
denominados os adeptos de um dado orixá, vem simbolizar e representar
uma homenagem, que destaca no iniciado, no lho do santo, a liação,
o respeito e admiração deste por aquele. Destacamos o papel das danças
nos rituais, claramente ligados às homenagens que são feitas em relação
aos orixás.
73 - Cada um dos iniciados é considerado um lho do seu orixá.
73
269Vol I - Subjetividades & Diferenças
De acordo com a mitologia dos orixás, uma ordem ritualística deve
ser seguida pelos membros iniciados do Candomblé. Em nosso grupo, con-
forme citamos quando falamos de cada um dos orixás, o orixá Exu é o
primeiro a ser homenageado, representando uma hierarquia determinada
pelos mitos associados à religião. Segundo a ritualística e baseando-se em
sua mitologia, Exu representa o elemento de ligação, de transmissão dos
saberes dos orixás aos homens, localizados em planos distintos da exis-
tência. Exu, enquanto veículo relacional entre deuses e homens, merece
um destaque especial dentro da mitologia ritualística exatamente devido a
esse papel de poder acessar os dois planos sagrados: a existência divina e
a existência mundana.
Como homenagem a essa faculdade especial de ser de acesso aos
planos, o Exu deve ter o seu toque, a sua dança, a sua comida, todos os
aspectos das devoções devem ser oferecidos primeiro a ele, para que ele
não venha a atrapalhar ou impossibilitar os trabalhos restantes dentro do
grupo. Esse mesmo orixá tem um dia festivo exclusivamente em sua ho-
menagem, marcando exatamente o seu caráter especíco de destaque no
panteão dos orixás brasileiros. E também se faz referência ao papel de Exu
como escravo dos Orixás, sendo diversicado, tendo cada um dos orixás
vários Exus aos quais recorre quando na necessidade de interferência na
existência mundana.
O iniciado, o praticante do Candomblé, se não for um ekédi , pode
ser chamado de cavalo, no próprio entendimento dos seus adeptos. Se o
animal é historicamente considerado como uma ferramenta de trabalho e
de transporte, no Candomblé podemos situá-lo da mesma maneira. É ferra-
menta quando utilizamos seu corpo para transformar o ambiente e a natu-
reza, para se adaptar às necessidades dos Orixás, através da resposta a sua
demanda de alimentos e ou dos seus peculiares padrões de opção, gosto
e ou prazeres. É também ferramenta quando é utilizado para completar e
complementar a relação hierárquica necessária ao preenchimento dos di-
versos cargos existentes no Candomblé; é transporte quando serve de local
escolhido pelo orixá quando atravessa a relação espaço-tempo e incorpora,
em carne e osso, na gura do iniciado, vivendo, interagindo e representan-
do a ele mesmo no mundo real.
O processo de iniciação não tem que necessariamente passar pelos
74 - Um dos iniciados que não espritam, tendo o cargo de curador, ou cuidador dos espritados.
74
270 Corpo, políticas e territorialidades
diversos rituais que vão contemplar, responder e interagir com os mitos
ancestrais seguidos pelas diferentes linhas ou nações do Candomblé. Ape-
sar de suas singularidades, o obi e o bori, assim como o bossé são eventu-
almente desconsiderados se assim é explicitado no jogo de búzios. Cada
um dos iniciados segue os preceitos que são determinados pela sua própria
relação dentro da casa de santo em íntima conexão com os babalorixás que
por sua vez são orientados pelos búzios, representantes dos orixás.
Neste sentido, o Candomblé faz uso dos mitos e dos diversos rituais
que emprega em sua prática religiosa como instrumento de pedagogização,
ou, como preferimos utilizar nesse trabalho, de educação, mesmo que so-
bre bases não-formais. Além do aspecto apócrifo de suas tradições, os mi-
tos eram transmitidos oralmente aos novos iniciados, através das gerações
que foram introduzidas aos processos religiosos do Candomblé.
Os mitos desempenham funções complexas dentro do Candomblé,
conforme relata Prandi (2001) cujo livro sobre mitologia dos orixás é bas-
tante rico e esclarecedor. Em nossa pesquisa percebemos que a principal
função dos mitos é a manutenção das características principais dos orixás
e dos lhos de santo, ainda que venham também a designar formal e in-
formalmente os passos rituais a serem efetivados, seguindo características
pessoais e tipológicas dos orixás enfocados pelos mesmos.
No Candomblé, após a descoberta dos orixás que compõem a “cabe-
ça” do iniciando, acontecem os primeiros rituais, determinados pelos mitos
que dão um respaldo histórico-metodológico aos próximos passos que irão
passar. E os rituais são tão metódicos quanto diversicados, apresentando
variações a depender dos orixás aos quais os lhos mantêm uma conexão
especial. Os ritos derivados dos mitos são mais signicativos em relação
aos acontecimentos reais para os membros da casa. Sobre os mitos, outra
pesquisadora, Segato (2005, p. 359) nos remete em seus escritos:
Os mitos são invocados de maneira espontânea no
curso das conversas, em contextos e situações variadas,
principalmente com o propósito de deixar clara alguma
característica de comportamento de algum orixá ou de
algum dos seus lhos, ou de explicar e prescrever algum
procedimento ritual a ser seguido. Estes relatos tomam,
geralmente, a forma de citações breves, fragmentos ou
alusões, mais ou menos cifradas, a fatos da vida de um
orixá ou a suas relações com algum outro personagem do
panteão.
271Vol I - Subjetividades & Diferenças
Moraes (2011) tece importantes considerações a respeito do olhar
das culturas afro-brasileiras em relação ao corpo, assim percebido como
um reexo do cosmos. A autora pontua que os símbolos estão impressos
no corpo, sendo resgatados através dos ritos: “o corpo é o lugar, por exce-
lência, da explicitação pessoal e grupal da experiência religiosa e é através
dele que os participantes da religião representam a imagem que fazem do
universo” (MORAES, 2011, p. 142).
Na ritualística do Candomblé de Angola, efetua-se uma sequência
não formal de absorções de conhecimentos por parte dos iniciados. Os
aprendizados que se efetuam nos processos de iniciação servem para efeti-
var a entrada do novo membro em novos padrões ritualísticos, garantindo
a ele um entendimento das diversas nuances que acontecem durante os
diferentes processos. Preliminarmente, o iniciado deve aprender a reco-
nhecer os ritmos das músicas e a quem se destina, ou seja, qual o orixá que
está sendo homenageado, pra quem se está cantando e qual o momento do
processo cujo toque está anunciando, já que são vários os toques e são três
os atabaques que compõem o Candomblé .
Deve também reconhecer a própria música tocada, que são pontos
importantes para o reconhecimento dos diferentes momentos em que o pai
de santo faz os pedidos aos iniciados, já que cada uma das músicas traz em
si as palavras cantadas em uma língua diferente da sua matriz original local
. Deve construir um vocabulário especíco de acordo com a ritualística do
grupo, a m de compreender os diferentes chamados do pai de santo em
relação aos diferentes pedidos feitos durante os ritos, conforme citação da
entrevista descrita a seguir. Além das palavras cantadas e recitadas, há que
se aprender a homenagear os santos, ou melhor, aos Orixás, com as danças
que marcam no corpo uma ritualística própria. Nas palavras de Coani
(2008), a investigação dos ritos deve passar necessariamente pelo estudo
do corpo.
75 - O canto no Candomblé serve de louvação, homenagem aos orixás e integração dos iniciados em relação aos diferen-
tes momentos ritualísticos.
76 - Os instrumentos são tratados com referência, já que são instrumentos de interação entre os diferentes mundos espiri-
tuais. A eles são ofertadas comidas e sacrifícios.
77 - As músicas são cantadas, nesse grupo, principalmente no idioma Banto.
75
76
Vislumbra-se a necessidade de investigar-se no âmbito
histórico como, onde e porque o corpo foi objeto de
miticação. Processo esse que é instrumentalizado pelas
invenções de diversas concepções, no interior dos processos
77
272 Corpo, políticas e territorialidades
de pedagogização do/sobre o corpo. Em outras palavras,
desvelar o exercício do poder manifesto sob diferentes
formas de controle e que constitui uma rede heterogênea
de poderes. O que signica reconhecer como foi propício
investir sobre o corpo, transformá-lo em alvo de discussão
histórica, a partir da fabricação dos discursos sobre e do
corpo (COFFANI, 2008, p. 26).
O Candomblé apresenta em sua teogonia um grupo de orixás que
são reconhecidos pelos iniciados quando de sua incorporação em seus -
lhos de santo, principalmente, através dos gestos rituais e expressões cor-
porais. As danças, os movimentos físicos, o preparo dos alimentos, das
roupas e ornamentos são exemplos do uso do corpo ritualizado. O corpo
torna-se o local de absorção dos costumes, hábitos, regras e valores, intro-
duzidos e apreendidos voluntária e involuntariamente pelos seus membros
através das representações simbólicas presentes em seus rituais religiosos.
Apesar da utilização do que chamamos de complementos do pro-
cesso ritualístico, que de certa forma os referenciam, como o uso de ataba-
ques, as roupas coloridas, as comidas e as oferendas (macumbas), são os
gestos, as posturas físicas, gestuais, é o corpo que se destaca e faz saber aos
outros membros quando e se houve comunhão, qual é o orixá espritado, se
há um entendimento das relações entre os diversos momentos dos rituais,
se houve um entrelaçamento, um contato, se espritou ou não, ou seja, se
houve uma relação de pertencimento e absorção entre o iniciado e o seu
orixá. Segundo Geertz (2008, p. 83):
É no ritual [...] que se origina, de alguma forma, essa
convicção de que as concepções religiosas são verídicas
e de que as diretivas religiosas são corretas. Num ritual,
o mundo vivido e o mundo imaginado fundem-se sob a
mediação de um único conjunto de formas simbólicas,
tornando-se um mundo único e produzindo aquela
transformação idiossincrática. Qualquer que seja o papel
que a intervenção divina possa ou não exercer na criação
da fé - e não compete ao cientista manifestar-se sobre tais
assuntos, de uma forma ou de outra - ele está, pelo menos
basicamente, fora do contexto dos atos concretos em
observância religiosa que a convicção religiosa faz emergir
no plano humano.
78 - O termo me parece uma corruptela de espritou, talvez em relação ao fato de o iniciado ter se tornado “espírito”, ou
seja, ter incorporado um orixá.
78
273Vol I - Subjetividades & Diferenças
O mundo do Candomblé de Angola é um lugar com processos clan-
destinos, maquínicos. Na sua ritualização, apresenta um mundo sagrado
e mítico, mágico, cheio de segredos não compartilhados e não aberto aos
não-iniciados. Além da passagem dos seus ensinamentos terem se dado
quase exclusivamente através das transmissões pessoais, geralmente de
forma verbal, o que não nos reserva nenhum registro histórico escrito, pen-
samos que as diferentes perseguições a que foram impostos os seguidores
das religiões africanas devem ser responsáveis por essa imposição de se-
gredos e de limites entre o que pode ser exposto aos não iniciados em suas
cerimônias públicas. Deleuze e Guattari (2008c, p. 81-82) nos descrevem
a relação que pode ser seguida em relação aos segredos:
O segredo está numa relação privilegiada, mas muito
variável, com a percepção e o imperceptível. O segredo
concerne primeiro certos conteúdos. O conteúdo é grande
demais para sua forma...ou os conteúdos têm neles mesmos
uma forma, mas tal forma é recoberta, duplicada ou
substituída por um simples continente, envoltório ou caixa,
cujo papel é suprimir suas relações formais. São conteúdos
que achamos bom isolar, ou disfarçar, por razões, elas
próprias variáveis. Mas, justamente, fazer uma lista dessas
razões (o vergonhoso, o tesouro, o divino, etc.) não tem
muito interesse, enquanto opomos o segredo e a sua
descoberta, como numa máquina binária onde só haveria
dois termos, segredo e divulgação, segredo e profanação.
Com efeito, de um lado, o segredo como conteúdo se
ultrapassa em direção a uma percepção do segredo, que não
é menos secreta do que ele. Pouco importam os ns e se essa
percepção tem por meta uma denúncia, uma divulgação
nal, um desvendamento. Do ponto de vista da anedota, a
percepção do segredo é o contrário dele, mas do ponto de
vista do conceito, ela faz parte dele. O que conta é que a
própria percepção do segredo só pode ser secreta: o espião,
o voyeur, o dedo-duro, o autor de cartas anônimas não são
menos secretos do que aquilo que eles têm a descobrir, seja
qual for sua meta ulterior. Haverá sempre uma mulher,
uma criança, um pássaro para perceber secretamente o
segredo. Haverá sempre uma percepção mais na do que
a sua, uma percepção de seu imperceptível, daquilo que
há em sua caixa. Prevê-se até um segredo prossional para
aqueles que estão em situação de perceber o segredo. E
274 Corpo, políticas e territorialidades
quem protege o segredo não está necessariamente ao par,
mas também ele remete a uma percepção, pois tem que
perceber e detectar aqueles que querem descobrir o segredo
(contra-espionagem).
Segundo os participantes da pesquisa, a atenção deve ser sobrema-
neira focada na música, nas canções que, em sua opinião, compõem toda
a ritualística do Candomblé. E uma especial parcela do tempo de aprendi-
zagem se dá em repassar aos iniciantes as canções, músicas e toques que
caracterizam cada um dos orixás referendados. Em nossa pesquisa com
teóricos, encontramos também em Bastide (2001), algumas colocações so-
bre os cânticos:
Os cânticos, todavia, não são apenas cantados, são também
“dançados”, pois constituem a evocação de certos períodos
da história dos deuses, são fragmentos dos mitos, e o
mito deve ser representado ao mesmo tempo que falado,
para adquirir todo o poder evocador. O gesto juntando-
se á palavra, a força da imitação mimética auxiliando o
encantamento das palavras, os orixás não tardam a montar
seus cavalos á medida que vão sendo chamados.
As palavras cantadas, entoadas em línguas pertencentes aos ante-
passados que trouxeram consigo a religião, ecoam, durante as cerimônias,
por toda a casa, acompanhada de gestos, posturas, movimentos circulares,
mudanças bruscas no eixo do corpo, poses (mãos para trás, mão ao lado cor
corpo). As palavras contém uma força (axé) que é intensicada pelos ges-
tos e expressões do corpo iniciado. Cada lho de santo em sintonia com as
posturas consideradas originadas pelos seus pais (pelos orixás de cabeça,
ditos pais) assume um lugar de expressão dessas articulações dos passos
dos orixás em sua dança, representando-o espritado.
No nal de alguns dos diversos rituais que se nos zemos presentes,
percebemos claramente as relações de tolerância, aculturação, sincretismo
e bricolagem que existem entre as inclinações religiosas atuais e as inuên-
cias anteriores, quando, por exemplo, no nal do ritual, o pai de santo pede
aos iniciados que “dêem as mãos e rezemos um pai nosso”, ato ecumênico
de louvação de cunho evidentemente católico. Percebemos em nossas en-
trevistas que os ensinamentos tentam ser éis aos processos aos quais os
líderes (babalorixás e babaquequerês) foram submetidos. Um entrevistado
assim reporta:
275Vol I - Subjetividades & Diferenças
Filho de santo é como eu tinha dito antes, vou repetir mais
uma vez, pra você se tornar pai. Você tem que ser lho.
Então você vai passar pelo mesmo processo de ser lho
para posteriormente você ser pai. Todo pai um dia foi lho,
ele não entra, nenhum iniciante entra na casa e se torna pai.
Por que até que ele pode receber o adeká, que é a permissão
de ser pai de santo, mas ele cumpre um período de lho,
um período de preceitos, que ele tem que cumprir como
iaô, aí vai diferenciar, vai diferenciar que ele é pai, mas
ele também cumprindo princípios de lho, de iaô. Você
é pai, mas eu lhe dizendo que você é lho com adeká,
com liberdade de ser pai, mas você tem um período que
você cumpre dentro da lei do Candomblé, dos preceitos
do Candomblé, e diz que você tem que ser lho até pelo
menos um ano, normalmente as casas dão um ano. Se você
entra na casa e você recebe uma deká e é pai de santo, você
vai ser iaô de adeká, você é conhecido como iaô de adeká.
Então você cumpre esse período de iaô de adeká. Então
aí vai diferenciar você mesmo antes de você ser pai. Você
tem que passar por que o Candomblé você só pode dar o
que você tem, você tem que viver aquilo tem que ter pra
poder lhe dar, se eu sou pai eu posso fazer você lho e lhe
tornar pai, se eu não sou pai eu não posso lhe fazer lho,
nem posso me tornar pai. Você só dá o que você recebe
dentro do Candomblé. Você não pode dar nada que você
não tenha. Você tem que passar, vivenciar, experimentar,
pra depois você poder dar, né? passar o seu conhecimento
por que também o Candomblé tem essas vertentes, é um
processo educacional, realmente, que você passa por isso,
você recebe a educação dentro do Candomblé, dentro
dos princípios do Candomblé e depois é que você pode
passar para o outro, mas sempre pra ser pai tem que ser
lho, então é o processo são idênticos, de ser lho pra ser
pai é assim que funciona, sempre. Deve ser assim. Pode
acontecer outras coisas, mas não tá dentro da regra. Eu
tô me referindo a regra. A regra diz isso. Que só pode ser
pai se for lho. É claro que existem casas aí que fazem da
maneira que elas querem, mas, a regra do Candomblé não
diz isso. Como toda religião sabe que algumas casas, outras
religiões, elas criam uma forma e faz da maneira dela, mas
a regra diz uma coisa, e a gente, eu tô tentando cumprir a
regra. Que é o que diz a regra (OGÃN, 2011).
276 Corpo, políticas e territorialidades
No processo de incorporação, as novas manifestações revelam um
aprendizado baseado numa inscrição corporal: a postura assume uma ca-
racterística ligada à história do orixá: curvado, se representa um velho ori-
xá, alerta em retilíneo, se representa um orixá novo. Os traços representa-
tivos dos orixás são produzidos e incorporados pelos iaôs e identicam os
elementos reportados. As incorporações marcam no iniciado um processo
de desterritorialização, que reconstroem as marcas impregnadas de cer-
tezas e dúvidas, características da condição humana e as reformulam em
novos processos de reconstrução de um ser novo, feito de um antigo e um
novo eu, cheios de divindades assimiladas, de ensinamentos apreendidos
e incorporados, através dos pensamentos associados ao processo, e prin-
cipalmente através do corpo, instruído a pensar e agir conforme as instru-
ções dadas pelos seus orientadores, sejam eles babalorixás e ou lhos de
santo, incorporados ou não. A característica postura física dos diversos ori-
xás, cada um com seus trejeitos, suas marcas e posturas especícas e com
evidentes sinais próprios, são traços claros do aprendizado do iniciado de
como deve se portar ao assumir seu devir-orixá.
Algumas discussões possíveis
A educação sobre a qual tecemos considerações a partir dos elemen-
tos observados envolvidos nos processos ritualísticos de iniciação do Can-
domblé de Angola, não vem formalizada, padronizada, mas se dá através
de linhas de intensidades e linhas de fuga, que atravessam os iniciandos
com tonalidades, saberes e sabores diferentes, que os perpassa e os signi-
ca, experiências que educam o corpo.
A partir das aprendizagens efetuadas inicialmente nos diferentes ri-
tuais, especialmente o obi, o bori, o bossé e o feitorio, o iniciado aprende
e apreende conceitos, regulações internas, regras apócrifas, sentidos ima-
nentes que o redirecionam a um crescimento ritualístico e conceitual den-
tro da casa de santo. Existe uma variedade de outros rituais, cada um com
suas especicidades, sutilezas, peculiaridades, ritualística e mitologia, que
asseguram um conhecimento histórico-cultural embasado num processo
educativo.
No processo de espritação, palavra derivada da utilizada no Can-
domblé, espritar, que signica tornar-se orixá, ser possuído, tomado e in-
277Vol I - Subjetividades & Diferenças
corporado pela divindade, o iaô, ou iniciado entra num processo de perda
da sua singularidade, de incapacidade de, gestão do seu próprio corpo e
passa a responder, ou ser dirigido, guiado, pela divindade, pelo orixá, que
assume as funções motoras e psicológicas , assumindo assim o controle
total do seu eu, passando a responder pela integridade, ou não, do corpo
possuído. Esse movimento de passagem, de troca, ou melhor, esse movi-
mento fronteiriço entre o ser, o estar e o não ser/estar, tem como processo
conceitual a criação de um corpo sem órgão, de acordo com a losoa da
diferença. Tais processos começam a acontecer a partir da efetivação dos
ritos completos de iniciação, derivados dos mitos apreendidos historica-
mente pelos diversos grupos.
Os processos de iniciação impõem aos corpos sacrifícios e trans-
formações: na cerimônia da feitura do santo uma reclusão de 21 dias
do novo membro, que chamaremos de iniciado. Não é permitido sair do
espaço de reclusão, o terreiro ou roça, onde se dão as cerimônias do ritual.
A reclusão é feita no quarto dos santos, lugar de destaque dentro do terreiro
onde são alocados os representantes dos orixás, em suas guras referen-
ciais, que são adquiridas pelos novos iniciados e ali alocadas, onde cada
um dos membros do culto é representado nessa sala especial. E quando do
início dessa cerimônia, o iniciado deve, com o auxílio dos demais mem-
bros, representar o seu orixá de cabeça nessa sala. Nesses dias de reclu-
são, ele deve aprender a fazer os colares e pulseiras que deve usar quando
do ritual de saída de iaô, que caracteriza o m do período de reclusão e
consequentemente o m desse processo inicial. Outros agenciamentos são
ensinadas diretamente pelo babalorixá: os passos de dança que são repre-
sentativos do seu orixá; as músicas que devem ser cantadas nos rituais em
louvação a ele; a postura, quando em pé, deitado ou sentado nos diversos
momentos da cerimônia religiosa.
Quando o iniciado recebe um chamado do orixá, através dos búzios,
expresso pela mediação dos babalorixás, uma das principais cerimônias
sagradas do Candomblé se inicia. O processo de fazer a cabeça, também
chamado de feitura, é considerado uma cerimônia de (re)nascimento do
lho, com a sua morte simbólica, simbolizada no recolhimento , através
79 - O recolhimento é um processo do ritual de feitorio que ocorre na casa de santo, no quarto de santo, onde por um
período de 21 dias sem poder se ausentar da casa, os abiãs aprendem as músicas, a reconhecer os toque e ritmos, a fazer
os colares de contas na cor do seu orixá, a fazer as comidas que os homenageiam, e onde são, ao nal banhados numa
infusão de ervas sagradas e pintados, com marcas brancas pelo corpo e na cabeça.
79
278 Corpo, políticas e territorialidades
80 - Abiã é aquele que frequenta o terreiro de santo, fez algum processo iniciático, como o obi, mas ainda não passou pelo
processo de feitura de santo.
81 - Iaô é o lho de santo, iniciado, obizado (passou pelo obi), borizado (fez o bori) e com feitorio (fez a feitura do santo).
Está tudo aí: um devir-animal que não se contenta em passar
pela semelhança, para o qual a semelhança, ao contrário,
seria um obstáculo ou uma parada; um devir-molecular,
com a proliferação dos ratos, a matilha, que mina as grandes
potências molares, família, prossão, conjugalidade; uma
escolha maléca, porque um “preferido” na matilha e
uma espécie de contrato de aliança, de pacto tenebroso
com o preferido; a instauração de um agenciamento,
máquina de guerra ou máquina criminosa, podendo ir até
a autodestruição; uma circulação de afectos impessoais,
uma corrente alternativa, que tumultua os projetos
signicantes, tanto quanto os sentimentos subjetivos, e
279Vol I - Subjetividades & Diferenças
das aprendências dos elementos ligados à caracterização do seu orixá. Sai
da condição de abiã , para a de iaô , lho de santo.
O processo de educação passa por uma relação complexa com os
membros iniciados, já que os mesmos não são cooptados no Candomblé
sem referências anteriores. Cada um dos membros, futuros e antigos, já
chegam com uma bagagem cultural existente, diferente das bases conceitu-
ais a serem apreendidas e que constituem e embasam sobremaneira os seus
comportamentos. O processo de aprendência leva em consideração tanto a
educação quanto a deseducação, dos novos procedimentos, comportamen-
tos e hábitos e dos antigos mecanismos adaptativos, respectivamente.
É o devir-orixá que cria a perspectiva de uma transformação nos
comportamentos e emoções dos iniciados. Há uma busca das qualidades
inerentes ao orixá, determinantes a partir dos rituais em que o mesmo in-
corpora em seus lhos. Suas vicissitudes, aspirações e necessidades são
estabelecidas a partir da sua relação com as divindades, tornando real a
aplicação dessas vontades na vida do lho de santo.
As possibilidades de entender demandas que aproximem espaços
mundanos e sagrados, de mundos de deuses e do mundo natural, humano,
cria uma perspectiva de entendimento do devir como próprio da vida no
candomblé. Deleuze e Guattari (2008c, p. 12) nos realimentam com suas
palavras ao citar as íntimas relações como inerentes ao processo do devir:
80 81
constitui uma sexualidade não-humana; uma irresistível
desterritorialização, que anula de antemão as tentativas
de reterritorialização edipiana, conjugai ou prossional
(haveria animais edipianos, com quem se pode “fazer
Édipo”, fazer família, meu cachorrinho, meu gatinho e,
depois, outros animais que nos arrastariam, ao contrário,
para um devir irresistível? Ou então, uma outra hipótese: o
mesmo animal poderia estar tomado em duas funções, dois
movimentos opostos, dependendo do caso?).
Possibilidades de alocação dos diversos signos em suas divindades,
as multiplicidades dos signos usados no candomblé nos remete ao conceito
discutido na losoa da diferença, em especial sobre o conceito de multi-
plicidade discutido nos Mil platôs, de Deleuze e Guattari (2009). Segundo
suas palavras:
É, antes, uma pura multiplicidade que muda de elementos
ou que devêm (p.40).
É porque estas multiplicidades não têm o princípio de
sua matéria num meio homogêneo, mas em outro lugar,
nas forças que agem nelas, nos fenômenos físicos que
as ocupam, precisamente na libido que as constituem de
dentro e que não as constituem sem se dividir em uxos
variáveis e qualitativamente distintos (p.44).
Não se trata, no entanto, de opor os dois tipos de
multiplicidades, as máquinas molares e moleculares,
segundo um dualismo que não seria melhor que o do Uno
e do múltiplo. Existem unicamente multiplicidades de
multiplicidades que formam um mesmo agenciamento,
que se exercem no mesmo agenciamento: as matilhas nas
massas e inversamente (p. 48).
Um ponto de articulação entre os escritos Deleuzianos que entende-
mos embasar este trabalho, é que o Candomblé é um dos grandes exemplos
de rizoma, de devir, de multiplicidade, de reterritorialização e desterrito-
rialização. Ele é africano em suas origens, em seus elementos, é trazido ao
Brasil e aqui sofre transformações ao mesmo tempo em que é preservado.
Ele se transforma e se preserva no Brasil a ponto de séculos depois, retor-
nar à África informações sobre Candomblé, especialmente sobre orixás
que não são mais cultuados lá, mas que são amplamente cultuados aqui.
Exemplo de um grande processo rizomático que permeia nossa cultura e
280 Corpo, políticas e territorialidades
que compõe as entrelinhas dos processos que estudamos no Candomblé de
Angola. As multiplicidades que encontramos presentes em seus matizes
nos revelam algo da natureza abrangente de suas formas e signos comple-
xos, ao tempo em que são simples construções de uma subjetividade que
caracteriza tal aspecto real.
Os signos do candomblé criaram uma forma de absorver, de assimi-
lar em seus ensinamentos as relações das forças da natureza em sintonia
com as demandas do mundo real que as transformam. Os processos de
construção de seu entendimento levaram a construção de subjetividades
claras, com aspectos próprios, especícos, que caracterizam os membros
iniciados da religião dos deuses sem deus, dos homens-deuses, em seus de-
vires-orixás. As aprendências se destacam no substrato da matéria humana
básica, no corpo, fonte e local de ação dos diversos aspectos culturais. E o
corpo cria rizoma, faz devir e posterga as negações da vida.
Referências
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teoricos_e_a_educacao_para_a_Cidadania. Acesso em: 12 mar. 2021.
282 Corpo, políticas e territorialidades
Jerlane Santos Abreu
Elder Silva Correia
Fabio Zoboli
EEducação do corpo
na prática corporal do crossfit:
Pensar novas formas de trincar os
corpos pelas rupturas da resistência
283
Optamos pela oportunidade de tornar público este capítulo para par-
tilhar resultados de uma pesquisa de mestrado realizada no Programa de
pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe – UFS.
Diante disso, este escrito tensiona e reete interpretações sobre possíveis
formas de trincar os corpos pelas rupturas da resistência, enquanto fruto
dos discursos produzidos no exercício de interpelar a educação do corpo
na prática corporal do Crosst. Diante da experimentação da dissertação,
obtivemos algumas sessões temáticas que o campo permitiu tensionar e
problematizar. Para este capítulo, elegemos e delimitados uma delas para
ser explorada: “Como pensar novas formas de trincar os corpos pelas rup-
turas da resistência?”.
Tomamos como base a interpretação da educação do corpo pelas
relações corpóreas da prática corporal do Crosst na expectativa de pensar
os sentidos estéticos e políticos que são acionados e se propagam segundo
os seus discursos, os quais forjam e criam subjetividades e identidades
dos sujeitos/corpos. Nesse processo, tomamos como alicerce investigativo
alguns referenciais que permitem compreender o universo epistemológico/
ontológico da educação do corpo enquanto construção social. Corroboran-
do, assim, com Le Breton (2007, p. 32) ao armar que:
O corpo não existe em seu estado natural, sempre está
compreendido na trama social de sentidos”. Para este autor,
por meio do corpo “nascem e se propagam as signicações
que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o
eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais
a existência toma forma (LE BRETON, 2007, p. 07).
Assim, compreender o conceito de educação do corpo neste estudo
é central, considerando que:
Educar los cuerpos implica transmitir discursos políticos y
sentidos estéticos, incluso cuando no sean explícitos o sus
implicaciones difusas. [...] por “educación del cuerpo” se
entienden las técnicas y prácticas corporales transmitidas
culturalmente cuya razón se explica por las signicaciones
sociales que representan sus incorporaciones (GALAK,
2017, p. 8).
Neste sentido, sinalizamos para a existência de corpos que são pro-
duzidos e transformados por meio dos discursos inerentes às suas práticas.
Com a tentativa de interpelar a educação do corpo por meio da prática
284 Corpo, políticas e territorialidades
corporal do Crosst, reconhecemos primordialmente que implica estudá-lo
sob a mirada da política e da estética nas quais estão circunscritas. Para Ga-
lak (2014, p. 356): “Investigar o corpo signica refazer os caminhos pelos
quais a incorporação dos sentidos analisados transitou”.
Por essas considerações, defendemos que, nos innitos contextos
da educação não se investigam corpos, mas o corpo em suas mais variadas
formas de práticas sociais (GALAK, 2014). Deste modo, a expressão “prá-
ticas corporais” é empregada neste estudo para fundamentar um corpo que
nunca pode ser separado de sua prática. Segundo Crisório (2015), o corpo
não pode ser isolado como um substrato natural, físico ou biológico, cuja
essência tem um princípio substancial. Por isso, não se estuda “corpo”,
mas o concebemos segundos suas manifestações das práticas corporais,
seus diversos usos e sentidos atribuídos, sendo culturalmente construídos
e desconstruídos.
Buscando contrapor os métodos de treinamento físicos convencio-
nais, em torno de 2000, foi fundado o CrossFit, como um produto da cul-
tura tness e de marca registrada. O CrossFit foi fundado em Santa Cruz,
na Califórnia, Estados Unidos, pelo ex-ginasta e técnico Greg Glassman, o
qual patenteou como CrossFit, Inc., cuja sede é na cidade de Washington,
EUA. No Brasil, o CrossFit foi apresentado pelo instrutor Joel Fridman,
em 2009, na Lapa, São Paulo. Desse modo, ele se propaga como um fe-
nômeno de empreendimento do corpo, onde seus objetivos se disseminam
na perspectiva do “dever ser” que também circunscreve a propagação da
cultura do corpo tness.
Esta prática corporal é propagada como inovação diante dos pro-
gramas de treinamentos, por ser, diversicado, inclusivo e coletivo. De
acordo com Fisher et al. (2016), os exercícios são realizados em grupo
e compartilhados, seja por indivíduos saudáveis, atletas, idosos, obesos
ou grupos militares. Por essa valorização do ambiente coletivo, há uma
grande propagação da motivação da prática do CrossFit, o que vem sendo
resultado em seu crescimento como um fenômeno social. Sua prática está
organizada com sessões de treinamento de alta intensidade, em que sua
execução tenha o menor tempo possível, diante do conjunto maior de repe-
tições, buscando preparar o indivíduo para “qualquer contingência física”
(FISHER et al., 2016).
A prática corporal do CrossFit tem ampliado e modicado discur-
sos políticos, estéticos e éticos conformando novas subjetividades nos/
285Vol I - Subjetividades & Diferenças
dos corpos. O grupo se propaga por uma espécie de formatação de “ser
crossteiro”, pelos discursos que os justicam, modelando a ótica dessa
prática corporal, bem como, da educação dos corpos. Para Nóbrega (2010,
p. 36), o exercício de pensar sobre o corpo e suas relações corporais com
o mundo “[...] é uma contingência que marca tudo o que tem lugar fora
do corpo, inclusive nas investigações cientícas ou losócas, bem como
nas intervenções educativas”, e, portanto, refere-se também a um exercício
de pensar como determinados discursos se normalizam e se materializam
diante dessas práticas.
Percebemos que a prática corporal do CrossFit tem uma forte ape-
lação à cultura tness. O termo t (de origem inglesa), para Silva (2012)
tem signicado de encaixe e ajuste, ou seja, condiz com a busca pelo corpo
que se encaixe nos padrões de beleza e se ajuste às necessidades que são
inventadas e atribuídas pela ideia de defeito e das imperfeições do corpo.
Assim, a cultura tness anuncia elementos de propagação do culto ao cor-
po, na medida em que surgem mecanismos de gerenciamento dos modos
de vida, de normatização e na busca pela sensação de bem-estar. A chave
para esses ajustes depende diretamente de um corpo que seja modicado,
nesse sentido, Bastos et al. (2013, p. 486) armam que:
O conceito de tness evoca a adaptação a um modelo
estético/moral, que se manifesta no compromisso com os
exercícios físicos, as dietas alimentares, as alterações de
corpos por meio de intervenções, o consumo de produtos
que prometem otimizar o metabolismo humano e o
biologicismo da existência.
Desse modo, compreendemos que as técnicas de “educação de cor-
pos” do Crosst não se desprendem de inúmeros elementos que os consti-
tuem como prática corporal que permeia pelas tramas sociais, por isso, não
se baseiam apenas em respostas meramente biológicas. Em consequência
disso, tornam-se produtoras de sentidos estéticos e políticos, atribuídos
desde a escolha musical, as frases que os justicam e motiva, as roupas que
os caracterizam, o vocabulário especíco, os materiais utilizados e seus
signicados, ou até mesmo os seus discursos de fundamentação e perten-
cimento.
Além disso, vericamos que o CrossFit se apresenta como uma prá-
tica corporal rica em detalhes as quais provocam inquietações, tais como:
a organização do ambiente de prática diferenciado das academias, a orga-
286 Corpo, políticas e territorialidades
nização dos modos de divulgação como fator fundante de motivação as
quais estão também intrínsecas na arquitetura do ambiente. Sobre essas
considerações, tal como se apresenta no site do CrossFit Brasil, o corpo
torna-se “veículo para treinar e aplicar seu condicionamento físico”, além
de apresentar discursos de transformação para sociedade, uma vez que os
exercícios tendem a propor reexões nas ações da vida cotidiana, prepa-
rando o indivíduo, para além de suas contingências físicas. Assim sendo,
os seus benefícios são incorporados a uma aptidão para melhores relações
na vida em sociedade, segundo o site da Crosst Brasil (2014).
O CrossFit também se insere em uma rede de signicados que se
apoia em um contexto de disciplina. Para Foucault (2001, p. 133): “são
chamadas de “disciplinas”, os métodos que permitem o controle minucioso
das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e
lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade”. Deste modo, existe um
poder que se exerce mediante os discursos que produzem e são produzidos
no contexto desta prática corporal. Portanto, nesse exercício de poder, as
condutas são estrategicamente projetadas com a propagação de suas regras
próprias de convivência interna no grupo, pela cultura tness e midiática.
Ressaltamos que, embora a marca CrossFit seja precursora em sua
propagação em diversos sites ociais, o que, por sua vez, homogeneíza
como uma prática corporal tness, reconhecemos que cada contexto cultu-
ral é produtor de suas próprias subjetividades, mediante seus discursos ; e,
portanto, tendem a emergir diferentes sentidos e relações que possam fun-
damentar discursos outros e formas de educação do corpo, criando, assim,
diferentes relações de poder/resistências . Para Michel Foucault (1999), o
discurso não só produz verdades, saberes, mas também se apresenta como
uma força que dene por relações de poder o que pode ser dito e o que pode
não ser, por isso, apresenta que os discursos nomeiam o ser sujeito de cada
momento, lugar e tempo histórico.
Consideramos também esta prática corporal como parte de um dis-
positivo, por encontrar-se inserido numa rede de intervenções corpóreas
que é a cultura tness. Assim, atua respondendo a urgentes formas de regu-
82
82 - “O discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e obstáculo, escora, ponto de resistência e
ponto de partida de uma estratégia oposta” (FOUCAULT, 1999, p. 95).
83 - Usa-se poder/resistência para exemplicar a defesa de que onde relações de poder, resistência. Assim, para
Foucault há sempre uma possibilidade de resistência, uma vez que agem como um paradoxo, um não antecede o outro,
ambos podem modicar dominações e condições e, assim, ser mais outra forma de exercer o poder e a resistência
(FOUCAULT, 1999).
83
287Vol I - Subjetividades & Diferenças
lações e disciplinamentos, bem como, sutis formas de controle, ao tempo
que aciona tecnologias de subjetivações.
Ao tratar, à sua maneira, sobre a noção de dispositivo em Foucault,
Deleuze (1996) identica que é necessário saber distinguir em um disposi-
tivo o que somos, isto é, aquilo que aos poucos não seremos mais, e aquilo
que somos em devir (o que vamos nos tornando). Isso se dá na medida em
que aquilo que é novo é o atual, pois o atual não é o que somos, mas aquilo
em que vamos nos tornando – nosso devir (DELEUZE, 1996). Destarte,
consideramos que é necessário questionar não somente acerca do discipli-
namento operado pelo Crosst, mas também, a partir da consideração de
Deleuze (1996) sobre dispositivo, questionar outras maneiras pelas quais
através do Crosst os sujeitos se reinventam e “tornam-se outros”, isto é,
no contato com essa prática corporal produzem outros modos de existência.
Para lograr o já anunciado objetivo deste escrito, organizamos o
mesmo a partir de mais outras duas sessões para além desta introdução que
recorta o objeto e apresenta alguns conceitos chaves de nosso estudo. Na
segunda parte apresentamos e teorizamos o percurso metodológico utiliza-
do no estudo. Na terceira e última seção discutimos novas formas de trincar
os corpos pelas rupturas da resistência, tendo como base a possibilidade de
uma ética da existência.
Percurso metodológico
O presente estudo foi realizado numa academia/box de Crosst da
cidade de Aracaju-SE, trata-se do box CROSSFIT AJU (pioneiro dessa
prática corporal no estado de Sergipe e aliada à CrossFit. Inc.). Apre-
sentamos a proposta da pesquisa aos gestores da academia e com parecer
favorável à execução e solicitamos a autorização com o Termo de Livre
Consentimento. Após este consentimento a autora do escrito se matriculou
para participar das aulas de CrossFit enquanto praticante a m de encontrar
nessa experiência direcionamentos para os próximos passos da pesquisa.
Por isso, neste primeiro momento de observação participante não foi apli-
cado nenhum instrumento de coleta de dados, foi tão somente um momen-
to de observação numa relação de cliente/participante/praticante.
Esse primeiro contato de experimentação se deu em torno de um
mês, estando inserida ao campo empírico com os demais sujeitos da pes-
288 Corpo, políticas e territorialidades
quisa numa frequência de três vezes por semana (segundas, quartas e sex-
tas-feiras). Após ter passado um mês como praticante, em torno da segunda
semana de dezembro (de 2019), a pesquisadora foi apresentada ao grupo
dando início as entrevistas. Portanto, esse foi o segundo momento da pes-
quisa organizado como um momento exploratório, como um novo modo
de experimentação do campo com auxílio das ferramentas para produção
dos dados. Salientamos também que esta investigação passou pelo crivo do
Comitê de Ética da Universidade Federal de Sergipe (UFS).
Tratou-se de uma pesquisa qualitativa abordada sob o viés de um
estudo de campo. A pesquisa qualitativa busca pela análise dos elementos
discursivos do contexto pesquisado, como os diálogos, os locais, os com-
portamentos e os sujeitos, valorizando as subjetividades de investigador
e investigados. O estudo de campo, para Bogdan e Biklen (1994), con-
vém uma atuação menos passageira e mais naturalista com envolvimento,
considerando que, a qualidade desse tipo de pesquisa também se constitui
pelas boas relações.
Para a coleta de dados zemos uso dos seguintes instrumentos: en-
trevistas com questionários abertos e perguntas semiestruturadas, anota-
ções do diário de campo e observação direta participante (tanto no mo-
mento inicial – novembro/dezembro 2019 – como nos meses subsequentes
– dezembro de 2019 a fevereiro de 2020). Os dados foram produzidos com
o auxílio de registros fotográcos, bem como a transcrição dos áudios das
entrevistas.
Participaram da pesquisa, 23 praticantes distribuídos entre profes-
sores/coaches/praticantes/atletas da prática corporal do Crosst Aju. Com
as entrevistas traçamos um perl do grupo segundo a faixa etária, sexo,
prossão e tempo de prática. Foram entrevistados onze indivíduos do sexo
feminino e doze do sexo masculino. O grupo se constitui por advogados,
professores universitários, jornalistas, magistrados, empreendedores, pro-
ssionais de Educação Física, bem como, estudantes de diferentes áreas.
A faixa etária do grupo varia entre 26 e 47 anos. Dois dos entrevistados
participam há cinco anos, sendo pioneiros no box. No entanto, a maioria
dos entrevistados tem pelo menos 2 anos de prática do Crosst.
84 - Visando uma organização dos dados para posterior análise, cada entrevistado foi nomeado com uma letra do alfabeto,
nomeando-os de “A a W”, conforme a sequência que equivale aos vinte e três entrevistados.
84
289Vol I - Subjetividades & Diferenças
Após uma construção e produção signicativa dos dados, nos ins-
piramos e tomamos como base, ferramentas foucaultianas para operacio-
nalizar a análise dos dados. Baseamos-nos na análise do discurso, sobre
perspectiva foucaultiana, considerando que discursos forjam, criam sub-
jetividades e que se torna ao mesmo tempo instrumento e efeito de poder
diante de verdades que se transformam, moldam, persuadem, modos de
pensar, agir e sentir.
Percebemos a proliferação de práticas discursivas e não discursivas
como uma categoria máxima de análise, logo com o primeiro contato na
qualidade de participante do Crosst AJU. O campo nos permitiu compre-
ender que os discursos são tanto um instrumento de análise, quanto um
recurso fundamental que produz comportamentos. Sendo assim, diante de
determinados discursos de ser “crossteiro”, que outros tantos se incluem
e excluem, construindo assim a política e estética do box Crosst AJU.
Para Foucault (2015, p. 09), o discurso está entre um jogo de ação e
reação, e que por muito tempo se constituiu por um “um conjunto de fatos
linguísticos ligados entre si por regras sintáticas de construção”. No entan-
to, neste estudo não veremos os discursos sob uma perspectiva de regulari-
dades linguísticas, mas de regularidades outras que se envolvem no campo
de lutas, de dominação ou mesmo de esquiva. Por isso, em nosso campo
de análise, buscamos relacionar tanto as falas quanto a materialidade do
conjunto de enunciados que se proferem desde as entrevistas, no dito e não
dito, do ambiente do box e suas interações corpóreas.
Além disso, para Foucault (2015) estas regularidades se constituem
para além de frases, falas, escritas, textos, pois funcionam como um siste-
ma de dispersão que formam outras regularidades que surgem em relações
diversas e em acontecimentos que se transformam em discursos e discur-
sos que conduz acontecimentos, logo, conduz modos de existências. Sendo
assim, neste estudo consideramos que as práticas discursivas são dados e
instrumentos que oportunizam pensarmos nas condições que submetem o
Crosst Aju, a mecanismos que efetivamente, ampliam, afetam, restrin-
gem, objetivam ou mesmo subvertem ou reetem em práticas de submis-
são, disciplinamentos e controles dos corpos
290 Corpo, políticas e territorialidades
Como pensar novas formas de
trincar os corpos pelas rupturas da resistência?
Damos início a esta tarefa de análise mencionando que, diante dos
dados, reetimos que os modos de educação do corpo no CrossFit se inse-
rem forjando e criando identidades e constituindo sujeitos, e que, tal como
a própria elaboração da indústria da cultura tness, submetem o corpo ao
culto narcisista contemporâneo (RAGO, 2006); e ao que se pode nomear
como “ideal ascético” (NIETZSCHE, 1998). Esse compromisso de adap-
tação ao modelo estético/moral se encarrega de operar sobre os desejos dos
praticantes, discursos que superam o simples estímulo à adesão de exercí-
cios físicos, mas que atuam sobre um conjunto ilimitado de práticas. Sejam
por uma dietética, pelo consumo de produtos manipulados e, principal-
mente, por sutis práticas que forjam desejos de um ideal de cidadão, que
vivencia diariamente o medo e a insegurança de não ser pertencente a esse
grupo/tribo.
Portanto, esses são os modos em que a subjetividade se encontra
no próprio corpo para serem educados a transformarem-se, por isso, esses
indivíduos são estimulados a desejarem a disciplina, desejarem o controle.
E é exatamente por meio dessas inseguranças que os indivíduos usam tais
medos como a própria motivação para se submeterem ao dever de serem
transformados, adaptados e com isso, longevos, funcionais e ditos “belos”.
Tendo como base a história dos corpos que também se retratam as
histórias dos diversos modos de produção de subjetividades, sobre uma
perspectiva foucaultiana, analisa-se que o CrossFit AJU se insere como
uma prática corporal que opera como parte de um dispositivo biopolítico
contemporâneo. Desse modo, emerge em meio a uma continuação histó-
rica, a produção de novas subjetividades, que disciplinam e limitam, mas
sobretudo, controlam as forças potentes dos corpos, principalmente, sobre
a exaltação do cuidado de si contemporâneo.
Para Foucault (1985, p. 58), “[...] o cuidado de si na antiguidade [...]
aparece como uma intensicação das relações sociais”. E, em consonância
com Rago (2019), isso quer dizer que se trata de “modular diferentemente
a relação com os outros pelo cuidado de si” (p. 262). Isso explica uma rela-
ção contrária ao cuidado de si que encontramos nos discursos contemporâ-
neos, tal como o do Crosst. Uma vez que há uma grande intenção sobre o
voltar-se para si, e a preocupação demasiada com o eu sempre ecaz, pois
291Vol I - Subjetividades & Diferenças
ele é fruto justamente desse processo que incita buscar, o dito “eu verda-
deiro e mais natural” possível.
Assim, tendo como base as análises que Foucault (2001) realizou
da Antiguidade à Modernidade, ele compreende que uma total falta de
neutralidade nas incitações ao cuidado de si moderno. Ou seja, está mais
atrelado a uma oposição às tentativas libertárias das práticas gregas, visto
que se volta ao individualismo egocêntrico. Desse modo, percebe-se não
uma ação neutra, mas intencionalmente projetada para atender aos inte-
resses de submissão do outro que se reverbera como um novo signicado
político, numa espécie de conversão, entre cuidado de si para renúncia de
si, segundo Rago (2006).
Desse modo, vê-se a “renúncia de si” a partir de atos pouco ree-
xivos, por uma busca ao essencialismo, ou por não interrogar como sua
conduta individualista pode provocar a negação de outras. Nesse sentido,
a renúncia de si também emerge por meio de vários dispositivos que inci-
tam o projeto de um sujeito que só é realizado à medida que o condiciona
sobre o limite em si mesmo, sem relação exterior, ou até mesmo, quando
essa relação exterior só é introspectiva para se apoiar na submissão sobre
o olhar do outro. Aderindo a essas considerações Vernant (1981, p. 224)
arma que:
O sujeito não constitui um mundo interior fechado, no
qual ele deve penetrar para se reencontrar ou antes para
se descobrir. O sujeito é extrovertido [...] A consciência
de si do indivíduo não é reexiva, voltada para si mesmo,
fechamento interior, face a face com sua própria pessoa:
ela é existencial. A existência é anterior à consciência de
existir.
É por essas razões que Foucault também contribui para pensar que
não existimos por meio de uma projeção meramente para dentro de si,
mas para fora. Portanto, isso se rearma fundamentado na mais potente
de todas as armações epistemológicas sobre o corpo, a qual se reverbera
sobre a história da humanidade, na qualidade de animais pensantes, corpos,
sujeitos: “O corpo não existe em seu estado natural, sempre está compreen-
dido na trama social de sentidos” (LE BRETON, 2007, p. 32).
Partindo desses pressupostos, e diante desses modelos de assujeita-
mento sobre o modo de educação do corpo no Crosst, reetiremos sobre
uma ética da existência como outro modo de ser, para pensar em um possí-
292 Corpo, políticas e territorialidades
vel e necessário modo outro de existir e resistir. Sobre essas considerações,
arma Martins (2019, p. 59):
Uma ética do desprendimento e não da conversão. Uma
ética da singularidade e não uma lei universal invariante.
Uma ética do acontecimento e não transcendental. Tal é a
difícil e arriscada atitude ética que Foucault nos desaa a
adotar diante dos perigos que nos fazem face.
É válido esclarecer que, tal como apresenta Foucault em seu método
genealógico de analisar a constituição do sujeito na história, ele propõe a
reetir como uma força de produção, toda essa capacidade de criação e
transformação do indivíduo ao longo do seu processo de constituição como
sujeito. Nesse contexto, é ponto crucial reconhecer, inicialmente, que todo
processo de construção da subjetividade é histórico e não natural, ou seja,
não é uma determinação biológica é, sobretudo, cultural inventiva, e não
nos cabe evitar, mas reinventar-se problematizar a si mesmos. Nesse senti-
do, Foucault (2010, p. 325-326) apresenta:
Os homens jamais deixaram de construir a si mesmos,
quer dizer, de deslocar, continuamente, sua subjetividade,
de se constituírem em uma série innita e múltipla de
subjetividades diferentes, que jamais terão m e que jamais
nos colocarão em face de alguma coisa que seria o homem.
Os homens engajam-se perpetuamente em um processo
que, construindo objetos, os desloca, ao mesmo tempo que
os deforma, os transforma e os transgura como sujeitos.
É justamente por essa capacidade do sujeito em criação constante de
si, que ele contribui para pensarmos em possibilidades outras de subjetivi-
dades e subversões, e isso implica reconhecer que o indivíduo não deveria
ser produzido sobre uma ótica, “tal como teria desenhado a natureza, ou
tal como sua essência o prescreve; temos que produzir algumas coisas que
ainda não existem e que não sabemos o que será” (FOUCAULT, 2010, p.
75).
Diante do exposto, acredita-se que essa capacidade de construção é
o que, teoricamente, pode possibilitar a (des)naturalização de identidades
que forjam e limitam os corpos identidades, fruto dessa prática corporal
CrossFit. Considerando que, enquanto são produzidas por técnicas de as-
sujeitamento, são também, ao mesmo tempo, produtos de discursos que
preexistem a estes e inserem o discurso em diversos outros usos. Portanto,
293Vol I - Subjetividades & Diferenças
sobre essa lógica de força de produção, Michel Foucault (1979) arma
que onde há poder há resistência, por isso, reconhecemos que o mesmo
contexto que assujeita é o que também tem o poder de gerar resistência.
Entretanto, pensar a resistência implica reetir sobre atitudes renovadoras,
práticas de desprendimentos, contra-condutas.
Portanto, aqui tentaremos propor uma reexão de que é possível
resistir à sujeição que cria corpos únicos, ou mesmo que criam relação de
rejeição daqueles que operam uma relação de exclusão com o diferente, no
contexto da prática corporal CrossFit. E isso se faz, desde o simples uso da
escrita analítica e reexiva acerca dos limites e imposições normatizadas
e estereotipadas. E, assim, é possível até mesmo com a força prática da
recusa dos ideais, estes que conduzem condutas, ou seja, com a subver-
são de atitudes outras, que possa nos reconstituir diante do poder que nos
limita. Para essa reexão, baseamo-nos também nessas formações discur-
sivas apresentadas na Tabela 1. Acredita-se que elas expressam pequenas
brechas para pensarmos que, de certo modo, desprendem-se dos discursos
hegemônicos, unicantes e dominantes das práticas da cultura tness.
Tabela 1 - Formações discursivas dos participantes da pesquisa.
Sujeitos Anotações do diário de campo
“Não tenho a pretensão de um corpo robotizado, pelo acúmulo de
músculo, ou mesmo de fazer parte dessa doença que é ter um corpo
deformado de tanto músculo”
M
Fonte - Dados da pesquisa.
“Quero estar bem com meu corpo dentro dos próprios limites dele,
porque eu prero ser uma crossteira com marcas naturais do que
exagerar nos pesos e sentir dor mais do que deveria. [...] Até exagero
na intensidade, mas não gosto de pegar peso demais não.”
O
“Eu costumo fazer uma autoavaliação sobre o tipo de prazer que
mais me satisfaz […] tipo, sinceramente comer um brigadeiro des-
perta uma sensação tão boa, o problema é que eu não sei parar
(risos), mas depois daqui, que consegui me alimentar de forma sau-
dável, sem exageros na dieta, meu corpo se acostumou com o que
antes achava ruim. Sei que o prazer de se sentir leve, hoje, provoca
em mim ainda mais prazer que comer um prato de doce. Assim, eu
coloquei na balança e medir que prero permitir fazer o cross e ter
uma vida mais regrada, porém dentro dos meus limites sem me privar
de nada. Quando eu quero beber eu bebo, quando quero comer eu
como, bem mais tranquila […] porque quero sim um corpo bonito,
mas também quero acima de tudo isso, estar bem onde eu estiver.”
R
294 Corpo, políticas e territorialidades
Pensar a resistência como possibilidade, é também reconhecer que
sempre outros modos de reetir sobre as condições pelas quais os in-
divíduos são assujeitados. Reconhecendo, assim, que é possível encontrar
saídas positivas para potentes modos de educação do corpo no exercício
de sutis práticas de desprendimentos. Por isso, Foucault indica que essa
possibilidade se perfaz a partir da constituição de uma ética da existência,
ou seja, pela recriação de modos de vida, pelo potencial inventivo que há
nas próprias relações sociais.
A partir desse movimento produtivo dos corpos ainda se considera
que somos a todos os instantes assujeitados, por regimes discursivos que
nos submete ao saber, poder, as ditas verdades, a norma, reconhecendo,
portanto, que todo esse processo é o que conduz as teorias e práticas ca-
nônicas, universalizantes e, sem dúvida, excludentes. Logo, não podemos
ser sujeitos “livres”, porém tanto Rago (2019), Ortega (2002) e Miskolci
(2006) corroboram que sobre a perspectiva de Foucault, a possibilidade
inicia com a aceitação de sutis práticas de liberdades, para a construção de
novas subjetividades menos alienantes. Desse modo, esse autor convida a
reconhecer que há um potencial libertário em meio às forças de controle
sobre os corpos. E isso é possível pela constituição de novas relações, pela
rejeição das culturas aprisionantes e das formas mais sutis que nos permi-
tem desejar o controle sem limites. É sobre essas justicações que referen-
ciamos as seguintes falas da Tabela 2.
Tabela 2 - Formações discursivas dos participantes da pesquisa.
Sujeitos Anotações das falas dos entrevistados
Olhe, eu sei que sou gordinha e não sou triste por isso, ao contrário
me amo sendo assim, ainda que eu tenha vários contatos com co-
legas, que parecem de mentira de tão treinadas que são, e se elas
escolhem ter aquele corpo, tá tudo bem, isso não diminui quem eu
sou e quem escolhi ser.
M
Acho que pelo meu corpo, acho que dá para ver que não estou aqui
por estética. Pois, já tenho três anos que frequento. Estou porque me
faz em movimento e por isso estou bem.
O
Fonte - Dados da pesquisa.
Rago (2006) arma, portanto, que para chegarmos a uma condição
fundamental para exercitar as práticas de liberdade se faz por meio da pro-
blematização desse processo relacional, entre nós mesmos, com o outro e
295Vol I - Subjetividades & Diferenças
com o mundo. Assim, é possível abrir novas saídas mais positivas e mais
saudáveis. Portanto, é possível com base nessas falas, encontrar um ponto
de vista fora da normalidade até então estabelecida. Por isso, interpreta-se
que a partir dessas enunciações descritas na Tabela (2), a presença de
outras possibilidades que se diferem do padrão que foi encontrado em una-
nimidade nos discursos anteriores. É válido esclarecer que muitas falas,
e até mesmo a missão do referido box, embora esclareça que a estrutura
corporal não é o elo primordial de quem adere e permanece no CrossFit,
ainda assim está em evidência que os discursos fazem funcionar comporta-
mentos de “endeusamento” e melhoria da aparência da estrutura corporal.
Porém, foi possível identicar apenas na fala dessas duas entrevistadas
uma preocupação que não se restringe à estética corporal.
Diante de tais falas, se torna possível desnaturalizar determinados
atributos do CrossFit, nos levando a atentar-se para a produção de sentido
desta prática corporal na vida dos sujeitos. Em outros termos, pensar uma
perspectiva de resistência frente à lógica disciplinar do CrossFit é consi-
derar que este deve ser problematizado/vivenciado não em função daquilo
para que (supostamente) ele serve (saúde, estética etc.), mas, sim, a partir
daquilo que ele signica e produz de sentido na vida daqueles que o prati-
cam.
Seguindo essa lógica, produzir sujeitos autônomos é exatamente
possibilitar que estes tenham a percepção de que eles são determinados a
agir segundo sua própria capacidade de produzir sentido no contexto do
CrossFit, sendo o modo como ele experiencia esta prática corporal não
uma submissão acrítica a códigos e preceitos, mas a expressão de modos
de vida de seus corpos, pois dizem de sua maneira de viver.
Tal como Margareth Rago (2006), Miskolci (2006) também incita
algumas reexões, mostrando a recusa aos modelos normativos e como
um contraponto e resistência à cultura narcisista contemporânea que, como
apresentamos, faz-se presente em meio à cultura tness em suas promessas
e técnicas de melhoramento corporal.
A emergência de uma nova cultura de si pode originar novas
relações críticas aos modelos de identidade socialmente
propostos, recusando o aparato disciplinar que nos torna
algozes de nós mesmos. Associada a essa reinvenção de
si mesmo, uma nova cultura de si também pode permitir
novas relações com o outro, relações de companheirismo
296 Corpo, políticas e territorialidades
e amizade. Assim, percebe-se que outras formas de
produção da subjetividade podem se dar de maneira não-
individualista, sem valorizar a vida privada em detrimento
da pública (MISKOLCI, 2006, p. 689).
Assim, pode-se identicar nessas falas, uma prática de recusa e re-
direcionamento, pela tentativa de representar mediante o entrevistado que
não se preocupa, ou se interessa se está fora do padrão que é de costume
desejar em meio à prática do CrossFit. Numa relação consigo que se dis-
tancia, de certo modo, dos modelos que universaliza os objetivos dessa
prática corporal. Talvez não por acaso, mas o discurso do entrevistado con-
vidou a perceber que não seria ao nível de normalidade estética que busca-
va, pois nitidamente subjugava que estava aderindo à prática saudável sem
pretensões da eliminação de gordura, mas necessariamente de pertencer a
um costume que a possibilitava estar no movimento da vida, que para esta
é promovido por uma vida sicamente ativa. Além disso, esclarece em sua
fala, uma relação potente com o olhar de si acolhedor em comparação com
o outro. Reconhece nessa fala, uma certa relação de companheirismo que
contrapõe à vontade demasiada que costuma ser alimentada pela cultura
narcisista, em sua ação egocêntrica.
Nessa análise, reetimos sobre as considerações de Sant’Anna
(2019), ao questionar acerca dos regimes contemporâneos, se “teriam os
regimes hoje a potência de ajudar cada um a pensar sobre si e sobre o
mundo, ou eles serviriam unicamente para eliminar uma certa quantidade
de gordura?” (p. 92). Portanto, é nessa mesma linha de pensamento que ela
problematiza: “[…] E para que um regime voltado a atingir a alma se hoje
não cessa de ser dito que o que vale é o corpo?” (p. 92).
Nesse entendimento, compreende-se que a intenção dessa autora,
não é reforçar o referencial cartesiano entre corpo/alma, mas ao contrário
disso, reforçar que é o corpo belo e estrutura muscular que ainda se encon-
tra estrategicamente exercendo o poder sobre o ser sujeito. Portanto, diante
desses questionamentos, baseado em Sant’Anna (2019), é possível reetir
que o entrevistado apresenta um sutil modo de tentar não se entregar ao
fascismo que costuma nos conduzir e desejar o poder que nos objetica.
Esse que nos assujeita e limita o olhar sobre nós mesmos.
Por essas considerações, tendo como base a ética da existência ree-
tida por Foucault, registra-se que sua proposta se fundamenta para pensar
na transgressão da heteronormatividade, ou seja, para contrapor as inten-
297Vol I - Subjetividades & Diferenças
sas relações que defendem a afetividade apenas pelos seus iguais. Como
referenciado anteriormente, compreendemos que um fator preponderante
da exclusão e negação de alguns modos de ser são respostas não apenas
da construção de estereótipos de corpos padrões, mas também são essen-
cialmente pela dinâmica dos contrários, a qual se ampara em relações que
produzem e elevam essa tradição ancorada na ordem normativa, que poten-
cializa e nega o outrem. Portanto, ao pensarmos sobre os tantos discursos
de pertencimento da prática corporal CrossFit, deparamo-nos com uma
construção que exclui e nega o não pertencente às regras identitárias.
É justamente diante dessas sutis formas de controle que se cria uma
espécie de desvio que se reverbera em estereótipos negativos, como uma
prática do mal, do excluído, e do inútil. Desse modo, e reconhecendo que a
história se baseia em princípios binários e identitários, ela apenas nos ritu-
aliza a pensar como tal, ampliando-se hoje, uma sociedade cada vez mais
com necessidades de construções identitárias, e cada vez mais a criação de
necessidades e vontades de sermos pertencente a um grupo.
Portanto, sobre as perspectivas foucaultiana, em suas reexões
da biopolítica de controle de medidas e desempenhos corporais, tanto
Sant’Anna (2019) quanto César (2019), também propõem que é possível
desmoronar os muros do nosso fascismo contemporâneo a partir do con-
traponto às pedagogias do tness, que também são responsáveis pelas pro-
duções de bioascese, que agem sobre essas verdades identitárias do corpo.
Desse modo, César (2019) apresenta as obras de Fernanda Maga-
lhães sobre A classicação cientíca da obesidade e o conto A mulher
ilustrada de Ray Bradbury. Ambos são outros modos de apresentar o corpo
contemporâneo, utilizando a força potente da arte para expressar guras de
resistência ao discurso médico, por construir uma forma de “obra-instala-
85 - O projeto artístico de Fernanda Magalhães apresenta uma forma criativa de crítica aos padrões estéticos femininos
impostos principalmente pela mídia, cultura e sociedade. “Inconformada com a frequente associação do obeso com algo
que incomoda, que é deslocado, utiliza o corpo como protesto, posicionamento político contra a hegemonia da magreza
[...] os embates foram se desenvolvendo para a defesa do fora de forma em detrimento da boa forma […]” (MELO, 2014,
p. 13-16) Desse modo, suas obras conduziram a lutas contra saberes hegemônicos e oportunizando a reetir o outro,
partindo de uma reexão sobre si.
86 - Em A mulher ilustrada de Ray Bradbury, o corpo de Emma Fleet se apresenta como uma gura extensiva de sua
superfície. Com duzentos e um quilos pretende aumentá-lo. O desejo de não emagrecer de Emma é referenciado na obra
como um modo de seu marido continuar a tatuar toda a extensão do corpo de sua esposa. No entanto, suas pretensões
de engordar era justamente porque necessitavam de mais superfície para continuação da obra. Ao buscar o médico para
ajudar nesse projeto, o médico sugeriu apagar a obra e reiniciá-la à medida que for concluída. Portanto, para Emma e seu
esposo, esta ideia era um milagre. Para César (2019, p. 278), a interpretação desta narração pode ter vários signicados,
no entanto, serviu como base para visualizar a enorme superfície do corpo de Emma diante de suas “possibilidades abertas
para uma obra em construção”. Portanto, essa narração zomba do peso das verdades médicas e permitem utuar na leveza
da criação (CÉSAR, 2019).
85
86
298 Corpo, políticas e territorialidades
ção com corpos gordos”. Enquanto o segundo exemplo da “Mulher ilustra-
da” expressa o corpo de Emma Fleet, apresentando a experiência de uma
superfície corporal extensiva, contrapondo, assim, os discursos e verdades
médicas: “[...] pois são leves, podem utuar no espaço, são rápidos ao mo-
verem para além dos muros que cercam nossas parcas possibilidades, con-
temporâneas de resistência e criação” (SOARES, 2019, p. 278).
Sobre essas considerações, é possível e necessária a abertura para
novas formas de (re) existir e resistir, como contraponto a essas forças que
aprisionam a busca exacerbada pelo melhoramento corporal, e dos discur-
sos que fazem emergir uma educação do corpo que limita nossas potências
de criação. Tratamos aqui apenas de algumas possibilidades, em que o pri-
meiro passo é desprender-se dos pensamentos universalizantes, egocên-
tricos e excludentes. Esses que não excluem apenas a si mesmos, mas as
outras formas de ser e de viver.
Acolher outros modos, não signica ser, ou necessariamente expe-
rimentar, ainda que a oportunidade de experimentação venha carregada de
aprendizagens outras. Mas acolher implica acionar desde micros relações
que oportunizem singularidade, mediante mínimas ações que se posicio-
nem fora da norma. Desse modo, também se pode reetir que foi justamen-
te nos mais sutis detalhes, que a anatomia política dos corpos encontrou
seus modos de disciplinarização dos sujeitos. Com essa mesma referência
foucaultiana e na valorização do próprio detalhe, acredita-se que também
seja possível subverter esses sentidos para oportunizar a reexão por meio
de ações mínimas, porém potentes de resistência da norma.
De certo modo, parece utópico desejar o desprendimento da norma,
em meio a tantas estratégias micropolíticas e macropolíticas que governam
desde sempre a produção do saber, da verdade e limita os discursos da área
da saúde e da educação do corpo, sempre tão disposta a uma hegemonia e
higienização do mundo. Ainda mais na própria Educação Física produtora
dos principais saberes produzidos sobre a relação entre o movimento na
educação do corpo.
Isso tem plenas ressonâncias com aquilo que Massumi (2020) nos
sinaliza sobre a capacidade do capitalismo, sob a cunha do neoliberalismo,
estar tão imbricado no tecido social, isto é, onde a vida acontece, que se
torna impossível posicionar-se fora dele, ao ponto de que mais do que um
“biopoder”, ele é um “ontopoder”, um poder de fazer vir a ser. No entanto,
diz Massumi (2020, p. 18):
299Vol I - Subjetividades & Diferenças
[...] embora seja impossível pretendermos car fora do
capitalismo, também jamais estamos ‘totalmente dentro’.
Existe uma dimensão intensiva da vida que é anterior em
excesso à economização capitalista. A resistência não é
inútil (p. 18).
Neste ponto argumentativo, não é utópico a tentativa de reingressar
o próprio movimento da vida, que sempre conduziu para além da repressão,
disciplina e do controle, mas para a própria potência de se recriar. Mesmo
porque, a força produtiva que conduz esses estudos parte justamente desse
ciclo de discursos que acionam tantos outros possíveis. Todavia, acredita-
-se que a área da Educação Física e da saúde de modo geral, não se baseia
apenas na política de promoção de saúde/beleza pela prevenção dos males
corporais, mas também possui essencialmente a capacidade de reconstruir
e subverter os sentidos políticos e estéticos dos corpos.
Contudo, visões utópicas são essenciais à medida que a utopia nos
ensina que a cada passo dado, existem mais dois à nossa frente (GALE-
ANO, 2019). Desse modo, ela permite que tal como a própria ciência e
a losoa, nessa constante reconstrução, ela não deve se limitar a únicas
verdades, e, portanto, permite esse constante processo que é a constituição
da educação do corpo, para ser sujeito e ser corpo.
Referências
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303Vol I - Subjetividades & Diferenças
000
SSobre os autores
305Vol I - Subjetividades & Diferenças
Organizadores
Dinamara Garcia Feldens
Universidade Federal de Sergipe- professora do Programa de Pós Gradu-
ação em Educação. Pós doutora em losoa da Educação pela UCM/ ES.
Doutora e Mestre em Educação pela UNISINOS/RS. Coordena o Grupo
de Pesquisa Educação, Cultura e Subjetividades – GPECS/UFS/CNPq.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6471-3876.
Juliana Santos Monteiro Vieira
Universidade Tiradentes (UNIT), Registro – SE – Brasil. Professora Au-
xiliar do Curso de Psicologia. Doutorado em Educação (UFS).
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3332-6640.
Lucas de Oliveira Carvalho
Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão SE Brasil.
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0826-4567.
Autores
Aldenise Cordeiro Santos
Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura (SEDUC),
Aracaju SE - Brasil. Pós-doutorado em Educação pelo Programa de
Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Profes-
sora do Centro de Excelência Santos Dumont.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6321-7889.
Amanda Marques
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC-SP, São Paulo, SP
- Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Semiótica .
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1405-0143.
Angélica Vier Munhoz
Universidade do Vale do Taquari (Univates), Lajeado – RS – Brasil. Do-
cente do Centro de Ciência Humanas e Sociais e do PPGEnsino, líder do
Grupo de Pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2644-043X.
306 Corpo, políticas e territorialidades
Carla Jeane Helfemsteller Coelho Dornelles
Universidade Federal de Sergipe (UFS), Aracaju SE Brasil. Douto-
randa no Programa de Pós-Graduação em Filosoa.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1240-9981.
Claudia Madruga Cunha
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, – PR - Brasil. Profes-
sora do Programa de Pós-Graduação em Educação. Linha: Linguagem,
corpo e estética; Coordenadora do Grupo de Pesquisa Rizoma - Labora-
tório de Pesquisa em Filosoa da Diferença e Arte.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2867-5566.
Débora dos Reis Silva Backes
Universidade Federal de Sergipe - SE - Brasil. Pedagoga. Mestranda do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Sergipe PPGED/UFS. Membra do Grupo de Pesquisa Educação, Cultu-
ra e Subjetividades – GPECS/UFS.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4466-2658.
Douglas Rosa
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS -
Brasil. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGLet).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8251-7318.
Edla Eggert
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Por-
to Alegre, RS - Brasil. Professora dos Programas de Pós-Graduação em
Educação, e de Teologia, da Escola de Humanidades.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1980-7053.
Elder Silva Correia
Doutor em Educação pela Universidade Federal de Sergipe. Mestre em
Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo. Graduado
em Educação Física pela Universidade Federal de Sergipe. Docente da
Faculdade do Nordeste da Bahia (FANEB).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8403-2226.
Evanildo Ferreira Vasco Viana
Universidade Nacional de Educação a Distância (UNED), Madrid Es-
panha. Doutorando em Diversidade, Subjetividade e Socialização. Mes-
trado em Educação (UNIT).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4990-6415.
307Vol I - Subjetividades & Diferenças
Fabio Zoboli
Universidade Federal de Sergipe (UFS), São Cristóvão Sergipe Bra-
sil. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Univer-
sidade Federal de Sergipe (PPGED/UFS). Pós-doutor em Educação do
Corpo pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP/Argentina).
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5520-5773.
Felipe Santana Criste
Graduado em Educação Física Licenciatura pela Universidade Federal
do Espírito Santo. Mestre em Psicologia Institucional pela Universidade
Federal do Espírito Santo. Professor da rede pública do estado do Espírito
Santo. Professor da rede pública municipal da cidade de Cariacica.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0052-1522
Franciele Caroline Pavão Garcia
Mestre em Educação pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB),
Campo Grande MS Brasil. Coordenadora do Centro de Educação
Infantil.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7994-9045.
Inauã Weirich Ribeiro
Universidade do Vale do Taquari (Univates), Lajeado RS Brasil. Li-
cenciada em História pela Univates, Mestra em Ensino pela Univates, e
Doutoranda em Ensino na Univates com Bolsa Prosuc/Capes.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0701-4555.
Jeferson Camargo
Universidade do Vale do Taquari (Univates), Lajeado – RS Brasil. Gra-
duando no curso de Psicologia, pela Universidade do Vale do Taquari -
UNIVATES. Bolsista de Iniciação Cientíca CNPq do Grupo de Pesquisa
Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq/Univates).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3285-4030.
Jerlane Santos Abreu
Secretaria Municipal de Educação, São Cristóvão-SE-Brasil. Mestra e
Doutoranda em Educação pelo programa de Pós-graduação em Educação
da Universidade Federal de Sergipe. Professora Efetiva da rede Pública
Municipal de São Cristóvão-SE, atuando como Coordenadora Pedagógi-
ca da EMEF Gina Franco.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5753-4263.
José Licínio Backes
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande MS – Bra-
sil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado e
Doutorado. Bolsista CNPq 1D
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9013-8537.
Laila Rosa
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador – BA – SP. Professora
da Escola de Música e dos Programas de Pós-Graduação em Música e Es-
tudos Interdisciplinares sobre a Mulher. Doutorado em Música (UFBA).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9195-8027.
Leomar Peruzzo
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba - PR, - Brasil. Pro-
fessor de Arte da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina.
Integrante do Grupo de Pesquisa Rizoma - Laboratório de Pesquisa em
Filosoa da Diferença e Arte Educação.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5322-142X.
Maria Fernanda Cestari de Oliveira Saad
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande MS – Bra-
sil. Acadêmica do Curso de Psicologia.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2818-8688.
Martha Giudice Narvaz
Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) Porto Alegre/RS,
Brasil. Professora Adjunta de Psicologia e do Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação da Uergs. Rede Escrileituras, Grupo de Pesquisa Arte,
Corpo, enSigno (ARCOE/CNPq), e Grupo de Pesquisa Gênero e Diver-
sidades (CNPq).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8430-9483.
Paola Zordan
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Porto Alegre/RS,
Brasil. Professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de
Pós-Graduação em Educação da UFRGS. Rede Escrileituras, Grupo de
Pesquisa Arte, Corpo, enSigno (ARCOE/CNPq), Núcleo Transdiscipli-
nar de Arte e Loucura, NuTAL/DEDs/UFRGS.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8937-7706.
308 Corpo, políticas e territorialidades
Ruth Pavan
Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande MS – Bra-
sil. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação – Mestrado
e Doutorado. Bolsista CNPq 2.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8979-1125.
Ueberson Ribeiro Almeida
Mestre em Educação Física e Doutor em Educação pela Universidade Fe-
deral do Espírito Santo. Professor adjunto do Centro de Educação Física
e Desportos/CEFD/Ufes. Professor do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia Institucional/PPGPsi/Ufes e do Programa de Mestrado Pros-
sional em Educação Física em Rede Nacional-PROEF.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9255-4542
309Vol I - Subjetividades & Diferenças