CAP 0 - ABERTURA
CAP 1 - SUBJETIVIDADES E DIFERENÇA NA EDUCAÇÃO
CAP 2 - PATRIARCADO E DESVALORES
CAP 3 - AS VOZES SAGRADAS
CAP 4 - DEUSAS E DIABAS
CAP 5 - TERRITORIALIDADE DA DOCENCIA
CAP 6 - DESCOSTURAR HISTORIAS
CAP 7 - OS ALUNOS INDIGENAS
CAP 8 - CURRICULO ESCOLAR
CAP 9 - QUEM PRECISA IDENTIDADE
CAP 10 - CORPOS EM ALIANCA
CAP 11 - CORPO PESQUISADOR
CAP 12 - DEVIR ORIXA
CAP 13 - EDUCACAO DO CORPO
CAP 14 - SOBRE AUTORES b
Dinamar
a Gar
cia F
eldens
Juliana Santos Monteir
o Vieir
a
Lucas de Oliveir
a Carv
alho
Organizador
es
Apoio
Atribuição-NãoComercial-SemDerivações
2
2-134825
CDD-300
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Corpo, políticas e territorialidades [livro
eletrônico] : subjetividades e diferença /
organização Dinamara Garcia Feldens, Juliana
Santos Monteiro Vieira, Lucas de Oliveira
Carvalho. -- 1. ed. -- Bauru, SP : Editora
Ibero-americana de Educação, 2022. -- (
Corpo,
políticas e territorialidades ; 1)
PDF.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-86839-08-1
1. Diversidade cultural 2. Educação
3. Espiritualidade 4. Identidade de gênero
5. Inovação tecnológica 6. Políticas públicas
7. Subjetividade 8. Territorialidade I. Feldens,
Dinamara Garcia. II. Vieira, Juliana Santos
Monteiro. III. Carvalho, Lucas de Oliveira.
IV. Série.
Índices para catálogo sistemático:
1. Ciências sociais 300
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
DOI: 10.47519/EIAE.978-65-86839-08-1
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ISBN: 978-65-86839-08-1
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. Marcelo Siqueira Maia
V
inagre Mocarzel
UCP
Dra. Maria Luiza Cardinale Baptista
UCS
Dra. Marta Furlan de Oliveira
UEL
A
presente obra intitulada “Corpo, políticas e territorialidades: subjetivi-
dades e diferença” foi organizada de modo coletivo
por dois grupos de
pesquisa – sob coordenação dos professores do Programa de Pós-gradua-
ção em Educação da Universidade Federal de Sergipe (PPGED-UFS) -, o
“Grupo de Pesquisa Educação, Cultura e Subjetividades” (GPECS), coor
-
denado pela professora Dinamara Garcia Feldens e o “Grupo de Pesquisa
Corpo e Política”, coordenado pelos professores Renato Izidoro da Silva e
Fabio Zoboli.
O livro é parte de uma coletânea composta por dois volumes. Deste modo,
este escrito é a primeira parte de um projeto maior
, que tem como segundo
tomo o livro “Corpo, políticas e territorialidades: tecnologias e poder”. Os
dois livros da coletânea se dispõem a pensar o corpo como território atra-
vessado por políticas e dispositivos tecnológicos na sociedade contempo-
rânea. Parte-se
das reexões de diferentes
pesquisadores de Universidades
brasileiras importantes, que buscaram pensar o tema das subjetividades, da
diferença, dos meios comunicativos e de informação, da questão do gêne-
ro,
da
religiosidade,
da
vivência
docente,
entre
outras
pluralidades
de
ex
-
periências.
A
publicação, em formato e-book que ora apresentamos, conta
com nanciamento
da Universidade Federal de
Campina Grande (UFCG),
estabelecido através de um Doutorado Interinstitucional com a UFS (DIN-
TER).
Prof. Dr
. José
Anderson Santos Cruz
Editor
Alexander V
inicius Leite da Silva
Editor Assistente
Matheus Guilherme Prudente Coelho
Designer
E
E
ditorial
S
S
umário
A
presentação
S
ubjetividades e diferença na educação:
Composições de professoras mulheres
Aldenise Cordeiro Santos
013
021
P
atriarcado: (Des)valores de
uma história mal contada
Carla Jeane Helfemsteller Coelho
039
A
s vozes sagradas das cantautoras,
sacerdotisas e xamãs de Abya Y
ala
Laila Rosa
065
D
eusas e diabas:
Mitos polifacéticos e forças do feminino
P
aola Zordan e Martha Narvaz
099
T
erritorialidades da docência: Um olhar para
o arquivo do projeto objetos de pensar
Angélica Vier Munhoz, Inauã W
eirich Ribeiro e Jefer
-
son Cristian Zick Camargo
123
D
es-costurar histórias de quem pesquisou com
tecelãs em Alvorada - RS:
Nossos processos formadores
Douglas Rosa da Silva e Edla Eggert
141
O
s alunos indígenas em espaços educativos
não indígenas e a ressignificação do currículo
Maria F
ernanda Cestari Saad e José Licínio Backes
157
C
urrículo escolar e diferença decolonial:
P
erspectivas de estudantes do curso
de pedagogia
Franciele Caroline P
avão Garcia e Ruth Pavan
175
Q
uem precisa da identidade... para “tornar
-se”
professor de educação física escolar?
F
elipe Santana Criste e Ueberson Ribeiro Almeida
197
C
orpos em aliança: Uma análise do coletivo
drag queen
Sisters Of P
erpetual Indulgence
e
ocupações de territórios
Amanda Marques
221
C
orpo-pesquisador: Duas elaborações
metodológicas em arte educação
Cláudia Madruga Cunha e Leomar P
eruzzo
241
D
evir
-Orixá: Processos de
transformação do corpo
Evanildo F
. V
asco Viana, Débora dos Reis Silva Backes
e Dinamara Garcia F
eldens
259
E
ducação do corpo na prática corporal
do
crossfit
: P
ensar novas formas de trincar os
corpos pelas rupturas da resistência
Jerlane Santos Abreu, Elder Silva Correia e
F
abio Zoboli
283
S
obre os autores
305
A
A
presentação
A
presente obra intitulada “Corpo, políticas e territorialidades: sub-
jetividades e diferença” foi or
ganizada de modo coletivo por dois grupos
de pesquisa, coordenados por professores do Programa de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal de Ser
gipe (PPGED-UFS). O “Gru-
po de Pesquisa Educação, Cultura e Subjetividades” (GPECS), coordenado
pela professora Dinamara Garcia Feldens e o “Grupo de Pesquisa Corpo
e Política”, coordenado pelos professores Renato Izidoro da Silva e Fabio
Zoboli.
O livro é parte de uma coletânea composta por dois volumes. Deste
modo, este escrito é a primeira parte de um projeto maior
, que tem como
segundo tomo o livro “Corpo, políticas e territorialidades: tecnologias e
poder”. Os dois livros da coletânea se dispõem a pensar o corpo como
território atravessado por políticas e dispositivos tecnológicos na socieda-
de
contemporânea.
Parte-se
das
reexões
de
diferentes
pesquisadores
de
Universidades brasileiras importantes, que buscaram pensar o tema das
subjetividades, da diferença, dos meios comunicativos e de informação, da
questão do gênero, da religiosidade, da vivência docente, entre outras plu-
ralidades
de experiências.
A
publicação, em
formato
e-book
que ora
apre
-
sentamos,
conta
com
nanciamento
da
Universidade
Federal
de
Campina
Grande (UFCG), estabelecido através de um Doutorado Interinstitucional
com a UFS (DINTER).
Os
textos
selecionados
para
o
T
omo
I
da
série
“Corpo,
políticas
e
territorialidades” foram subdivididos por estes or
ganizadores em três te-
mas, buscando preservar algumas semelhanças e atravessamentos com os
conceitos partilhados.
As três partes são: “subjetividades femininas”, “ter-
ritórios e docência” e “corpos e diferença”.
Este tomo busca trazer as subjetividades em seus diferentes aspec-
tos. Passeando entre currículos, gênero, docências e diferentes corpos, bus-
ca
extrapolar
uma
psicologia
do
sujeito
e
suas
estraticações.
Inspirados
em pensadores como Gilles Deleuze, Friedrich Nietzsche, Baruch Spinoza,
mas ainda muitos outros, as concepções acerca de políticas, territórios e
processos
de
captura
do
desejo,
reete-se
sobre
o
regime
de
signos
e
as
013
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
técnicas de produção de subjetividades. Subjetividades estas que em seus
movimentos criam linhas de fuga e de captura, trazendo assim tanto devi-
res como formas e rostidades.
Estas
linhas
nos
xam
e
marcam,
constituindo
por
inúmeras
vezes
corpos estáticos, imobilizados, determinados, inalteráveis. Estes processos
criam
em
nós,
que
somos combinação
de
múltiplas
forças,
uma
territoria
-
lidade
identitária.
Desse
modo,
buscamos
trazer
ao
leitor
,
narrativas
e
ex
-
periências; manifestações artísticas, culturais e rituais; atributos e lingua-
gens diversas, referentes a questão das subjetividades, entendendo-as aqui
também
como processos
de múltiplas
forças e
produção de
singularização.
Este tomo busca discutir a possibilidade de desfazer
-se das identida-
des molares, realizando uma revisão crítica das convenções marcadas em
nossa formação tão cartesiana e moralizada. Pretende evocar a diferença
e questionar as concepções estáveis, nos tirar de nosso lugar seguro de
pensamento, oferecer um espectro de novos caos e de possíveis calmarias.
Assim,
propomos
pensar
a
diferença
e
suas
innitas
nuances.
Nesta
pers
-
pectiva, a escrita enquanto acontecimento sempre tem algo de singular
,
pois
permitem
a
criação
e
os
saltos
intempestivos,
sendo
expressões
do
devir
, operando repetições seletivas que transmutam a potência humana
enquanto condições de possibilidades.
Seguimos
a
cartograa
de
nossos
resumos
e
seus
respectivos
auto
-
res.
O
texto
“
Subjetividades e diferença na educação: composições de
professoras mulher
es
”, de autoria de
Aldenise Cordeiro Santos, tem por
objetivo compreender a produção de subjetividades de mulheres na Edu-
cação, por meio da narrativa de professoras mulheres da Educação Básica,
do povoado T
riunfo, da zona rural do município de Simão Dias, Sergipe.
T
razendo narrativas de
entrevistas semiestruturadas voltadas
a compor ex
-
periências de três professoras dos primeiros anos do Ensino Fundamental,
que se denominam como “Larissas, Raimundas e Sophias”, a autora busca
compreender a produção de subjetividades na sala de aula, demonstrando
como são reforçados enquadramentos para/na Educação, compreendendo
como diversas marcas atravessam estes caminhos, esta formação docente.
As experiências dessas professoras demonstram-se como formas de movi
-
mentar nossas professoralidades, na perspectiva de criar ferramentas para
resistir às imposições e aos enquadramentos vigentes na contemporaneida-
de.
A
autora entende que estes encontros e desencontros podem demonstrar
014
Corpo, políticas e territorialidades
como estamos lidando com os inusitados provocados pelas interseções das
diferenças nas salas de aula.
O capítulo “
Patriar
cado: (des)valores de uma história mal conta-
da
”, de Carla Jeane Helfemsteller Coelho, busca transitar entre narrativas
losócas,
míticas
e
religiosas,
capturando
a
formulação de
um
imaginário
que inferioriza e subordina as mulheres e produz uma episteme, a partir
de uma história mal contada, que supõe o patriarcado como um fenômeno
universal.
Objetivando
suscitar
reexões
sobre
valores
que
são
desenvol
-
vidos pelo sistema patriarcal, apontando aspectos de seu desenvolvimento
epistêmico, e como estes valores, presentes inclusive nas mulheres, limi-
tam suas vidas produzindo a permanência deste imaginário de subordina-
ção, como
marca deste sistema.
T
ratando-se de uma
pesquisa bibliográca
e documental, em que se produzem conceitos e se realiza um metapensa-
mento, busca esclarecer (desmiticar) o que possibilita, produz
e perpetua
as formas de opressão, contribuindo para com a superação do obscurantis-
mo, analisando sociedades que se or
ganizaram fora dos moldes patriarcais,
deagrando
o
fato
de
que
existe
um
sistema
estrutural
que
forjou
e
mantém
uma hierarquia social.
Através do conhecimento da História das Mulheres,
a autora entende ser possível enfraquecê-lo e desestruturá-lo.
No
texto-poema-carta-encantaria
sonora
chamado
“
As vozes sagra-
das das cantautoras, sacerdotisas e xamãs de
Abya
Y
ala
”, Laila Rosa
busca
trazer à
consciência sua
experiência
ou “jornada-medicina”
de 1
ano
entre
EUA-México-Peru-Brasil,
realizando
estágio
de
pós-doutorado,
en
-
quanto professora visitante em diferentes instituições de ensino superior e
residência
artística
nesses
países.
São
cartograas
do
corpo/corpa/corpo
-
ralidades,
das
vozes
sagradas
das
cantautoras,
xamãs
e
sacerdotisas,
jun
-
tamente com a dela. Dentro da jornada de amplitude prossional,
cultural,
política, sagrada e artística, emer
ge o conhecimento das gastropolíticas do
eco-feminismo, do veganismo, dos ensinamentos do
Y
oga e da medicina
A
yurveda, das tecnologias de gênero em perspectiva interseccional pelos
feminismos
decoloniais
de Abya
Y
ala,
das
dissidências
sexuais,
dos
estu
-
dos Queer em música, das pedagogias feministas decoloniais anti
racistas,
anti capacistas e LGBTTQIA+, do sagrado feminino amefricana, sendo
este texto
fruto desse
encontro
de “cura”,
que reverbera
até hoje
em todos
os seus produtos artísticos.
O texto “
Deusas e diabas: mitos polifacéticos e forças do femini-
no
”,
de
autoria
de
Paola
Zordan
e
Martha
Narvaz,
reete
acerca
das
gu
-
015
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
ras do feminino no imaginário em torno das mulheres, que se apresentam
como guerreiras, sedutoras, mães, feiticeiras e curandeiras. Os poderes as-
sociados à
capacidade reprodutiva,
à sexualidade
e à
adivinhação das mu
-
lheres eram percebidos como ameaçadores, de modo a compor
uma gura
endeusada e, ao mesmo tempo, execrada, como bruxas. Com múltiplas re
-
ferências que tratam dos mitos enquanto ingredientes vitais da civilização
e
da
psique
humana,
as
autoras
apresentam
guras
que
perpassam
mitos
clássicos, destacando as yabás do panteão iorubano e as imagens da pom-
ba-gira.
T
ais
guras,
para
elas,
expressam
forças
associadas
a
elementos
da
natureza, a papéis na divisão social e sexual do
trabalho e a características
emocionais,
temperamentos,
tipos
de
volição
e
sexualidades
variadas. As
guras
femininas
apresentam
complexidades
e
paradoxos
conceituais,
si
-
tuando
as
mulheres,
seus
corpos,
suas
forças
e
seus
modos
de
existência
entre
deusas
e diabas.
O
intuito
do
texto,
então, é
questionar
o
imaginário
que historicamente aprisiona o feminino em dualismos, buscando dar visi-
bilidade
à
complexidade
polifacética
dos
diversos
modos de
habitar
corpos
e mundos.
O escrito “
T
erritorialidades da docência: um olhar para o ar
-
quivo do Projeto Objetos de Pensar
”, cujos autores são
Angélica
V
ier
Munhoz, Inauã W
eirich Ribeiro e Jeferson Cristian Zick Camar
go, apre-
senta a docência enquanto imagem, que tomada como territorialidade, se
expressa
em
um
“território
de
arquivo”.
Este
capítulo
trata
da
reunião
de
materiais empíricos criados ao longo do Projeto Objetos de Pensar (desen-
volvido pelo Grupo CEM), dos quais se produziram diversos momentos:
uma arquivização de imagens da docência, um mapeamento das noções de
docência/ docente/prof(a/e)/professor(a)/professoras(es), um rastreamen-
to dos verbos que aparecem associados às palavras “docência” e “profes-
sor”, reetindo
suas territorialidades como
arquivo e os verbos,
como suas
intensidades.
Ao
nal,
constatou-se
que
as
territorialidades
“docência”/
“docentes” apareceram com menos frequência do que as territorialidades
“prof(a/e)”/“professor(a)”/“professoras(es)”.
T
ambém
o
verbo
que
se
ex
-
pressou com mais intensidade no processo de arquivização foi “(não) ser”,
ou seja, a expressão relacionada àquilo que implica “não ser professor”.
O
texto
“
Des-costurar histórias de quem pesquisou com tecelãs
em
Alvorada, RS: nossos processos formador
es
”, de autoria de Dou-
glas Rosa da Silva e Edla Eggert, apresenta uma análise tramada entre
um egresso-bolsista
de Iniciação Cientíca
e sua
professora/coordenadora
016
Corpo, políticas e territorialidades
de pesquisa. Juntos, buscaram des-costurar histórias para entender os seus
processos formadores. Essa análise, que resultou em um processo amplo
de
aprendizagem,
teve
como
consequência
não
só
uma
reexão
sobre
a
função e os saberes das artesãs dentro de sua comunidade, mas também
auxiliou a
reposicionar a
experiência
da professora
e do
bolsista enquanto
pesquisadores. O capítulo destaca as aprendizagens advindas deste proces-
so, aprendizagens essas que, hoje, compõem a memória afetiva dos envol-
vidos nesta experiência proporcionada pelo projeto de pesquisa.
O capítulo “
Os alunos indígenas em espaços educativos não indí-
genas
e
a
ressignicação
do
currículo
” de Maria Fernanda Cestari Saad
e José Licínio Backes, justica a importância de escrever sobre as popula
-
ções
indígenas no
contexto
atual, constituindo-se
como uma
forma
de con
-
tribuir para que suas culturas e identidades sejam reconhecidas, sobretudo,
quando se trata de mostrar sua resistência e luta em defesa de seus direitos.
Resultado de um projeto de pesquisa com apoio do CNPq, o escrito situa-se
nesse contexto, tendo como objetivo salientar como a presença dos
alunos
indígenas
trazem
novas
reexões
para
o
currículo
e
para
a
educação,
no
que diz respeito à necessidade de pensá-los a partir da diferença cultural.
O
texto
“
Currículo escolar e difer
ença decolonial: perspectivas
de estudantes do curso de Pedagogia
”, de autoria de Franciele Caroline
Pavão Garcia e Ruth Pavan, recorda que durante séculos, a escola e seu
currículo lidaram com a diferença sob uma perspectiva colonial, isto é,
desqualicando, subalternizando e inferiorizando todos
os sujeitos que es
-
tavam fora da lógica
da cultura ocidental. Nas últimas décadas,
movimen
-
tos sociais, teóricos do campo do currículo e docentes têm defendido um
currículo multi/intercultural, vendo a diferença na perspectiva decolonial e
questionando
os processos
de
inferiorização,
subalternização
e desquali
-
cação. O presente capítulo então, é resultado de uma dissertação que con-
tou com apoio da CAPES, está articulado com o projeto de pesquisa “Cur
-
rículo e (de)colonialidade: relações étnico-raciais, gênero e desigualdade
social”, e teve por objetivo analisar a fala de estudantes de Pedagogia sobre
as
diferenças culturais,
identicando
se veem
nessas
diferenças uma
forma
de
qualicar
o
processo
pedagógico.
Analisando
falas
de
seis
estudantes
de
Pedagogia, obtidas por meio de entrevistas semiestruturadas, realizam-se
apontamentos
e
reexões
acerca
da
importância
de
um
currículo
multi/
intercultural em tempos desaadores.
O capítulo “
Quem Pr
ecisa da Identidade para ‘tornar
-se’
profes-
017
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
sor de Educação
Física Escolar?
”, de autoria de Felipe Santana Criste e
Ueberson Ribeiro
Almeida, é parte da dissertação denominada “Identidade
docente na Educação Física Escolar: análises e diálogos com o conceito
de
subjetividade
de
Félix
Guattari”,
cujo
objetivo
foi
compreender
a
for
-
mulação e produção da identidade docente durante a Formação Inicial dos
professores nos cursos de graduação em Educação Física. Do ponto de
vista metodológico, faz-se uma revisão
bibliográca de artigos publicados
relacionados à temática da identidade docente em revistas eletrônicas da
área da EF
, constatando que os estudos sobre a identidade docente no âm-
bito
da
Educação
Física
Escolar
,
em
grande
medida,
armam
um
modelo
da aprendizagem e formação de sujeito baseada na recognição, reprodução
de “ideais” de docente e de escola. Desse modo, sustentado pelo conceito
de subjetividade de Guattari, convocamos a entrada deste autor no debate
sobre a
formação
das subjetividades
no
campo da
EFE e
as
suas reexões
para pensarmos em outras possibilidades de formação do sujeito docente.
O capítulo “
Corpos em aliança: uma análise do coletivo drag
queen
Sisters of Perpetual Indulgence
e ocupações de territórios
” de
Amanda Marques, pretende analisar a aliança dos corpos em manifesta-
ções
artísticas
que
ocupam
a
esfera
pública,
em
consonância
com
os
mo
-
vimentos sociais e de gênero. Para a autora, o movimento
Queer
tem cada
vez
mais
ressignicado
seus
próprios
corpos
e apontado
temas
importantes
ao movimento feminista, de forma a colocar em pauta os corpos não-nor
-
mativos. Foi preciso recorrer a teoria de Gago (2020) sobre corpo-terri-
tório, para elucidar como o corpo é um campo de batalhas, que sempre
se dispõe a transformar o território. Nesta mesma direção, utiliza das te-
orias de performatividade e subversão de Judith Butler (1997/2003) e a
T
eoria
Queer
inuenciada
por
Michel
Foucault
(1978),
que
apontam
para
o
gênero
e
sexualidade
como
formas
construídas
socialmente,
rejeitando
as categorias binárias e compulsórias. Desta forma, analisa as performan-
ces-manifestos do grupo estadunidense
Sister of the Perpetual Indugence
formado por
Drag Queens
em São Francisco (EUA), que ocupam as ruas
vestidas de freira, inquirindo não somente a intolerância sexual, a imagem
religiosa, mas também satirizam as questões de gênero e a moral. Busca
então,
mapear
as
ações
que
ocupam
a
esfera
pública
de
modo
que
os
cor
-
pos-território sejam a possibilidade de potência para subverter as lógicas
masculinistas, afetar outros sujeitos e assim apontar para mudança.
O
texto
“C
orpo-pesquisador: duas elaborações metodológicas
018
Corpo, políticas e territorialidades
em arte-educação
” dos autores Cláudia Madruga Cunha e Leomar Pe-
ruzzo,
analisa
a
A/R/T
ograa
e
a
cartograa
enquanto
abordagens
meto
-
dológicas capazes de dialogar com o corpo do próprio pesquisador
, e suas
potencialidades no estudo e compreensão de questões ligadas à educação
e
arte.
Para
isso,
investigam,
inicialmente,
uma
experiência,
já
concluída,
que se deu através da sensibilização de professores junto à obra de Elke
Hering,
por
meio
de
uma
série
de
práticas
relacionadas
à
A/R/T
ograa.
Em
seguida,
abordam
uma
segunda
experiência,
que
se
encontra
em
an
-
damento, a qual propõe práticas sensíveis, a partir da pesquisa rizomática,
que movimentem o corpo-pesquisador
. Utilizando-se de conceitos e outras
concepções e procedimentos estéticos, vindos de autores como Gilles De-
leuze
e
Félix
Guattari,
Sandra
Corazza
e
Renato
Cohen,
buscam
operar
na
conexão
de
possibilidades
outras
para
uma
prática
docente
em
devir
-
performance
arte,
capazes
de
exibilizar
modos
investigativos
que
não
ignorem as manobras intuitivas e criativas de um corpo-pesquisador
.
O escrito “
Devir
-orixá: processos de transformação do corpo
”,
cujos autores são Evanildo F
. V
asco V
iana, Débora dos Reis Silva Backes
e Dinamara Garcia Feldens, é fruto de um tecer coletivo, co-criado em um
ambiente de pesquisa colaborativa, seguindo padrões acadêmicos replicá-
veis,
cujo
objetivo
primário
é
desmisticar
as
relações
simbólicas,
mate
-
riais e imateriais de uma das manifestações culturais afrodescendentes mais
inuentes em
nossa realidade. O candomblé
e suas posições culturais,
cor
-
porais e políticas é,
neste texto, destacado especialmente em suas
relações
com os processos de aprendizagem que se impõem aos corpos, baseado na
losoa
da
diferença de
Gilles Deleuze,
fazendo tessituras
entre o
devir
, as
linhas de fuga e as territorializações possíveis na perspectiva religiosa de
matriz africana. O material disponibilizado é construído pelos três pesqui-
sadores, com a
intenção de trazer ao
público as inquietações amalgamadas
entre religião, cultura, educação e corpos, reportando conceitos e fazendo
contribuições relevantes na esfera da educação e das transformações cole-
tivas que harmonizam os saberes humanos.
O capítulo “
Educação do corpo na prática corporal do
crosst
:
pensar novas formas de trincar
os corpos pelas rupturas da resistên-
cia
” de Jerlane Santos
Abreu, Elder Silva Correia e Fabio Zoboli, tem como
objetivo
reexionar
e
interpelar
a
educação
do
corpo
tendo
como
recorte
a
prática
corporal
do
CrossFit,
analisada
sob
a
temática
da
cultura
tness
na Academia
“
Cr
ossFit
AJU”.
O
Cr
ossFit
é
trazido
ao texto
na expectativa
019
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
de se pensar questões políticas e estéticas por meio desta prática corporal,
tendo como meta tensionar e reetir interpretações sobre possíveis
formas
de trincar os corpos pelas rupturas da resistência, enquanto fruto dos dis-
cursos
produzidos
no
exercício
de
pensar
a
educação
do
corpo
neste
tipo
de
prática. Os autores concluem que pensar a resistência como possibilidade
na educação do corpo via prática do
Cr
ossFit
é também reconhecer que
sempre existem outros
modos de reetir sobre as
condições pelas quais os
indivíduos estão sendo assujeitados.
Dinamara Garcia Feldens
Juliana Santos Monteiro V
ieira
Lucas de Oliveira Carvalho
020
Corpo, políticas e territorialidades
S
Subjetividades e diferença
na educação:
Composição de
professoras mulheres
Aldenise Cordeiro Santos
021
O que a gente tem que fazer é resistir
, porque é o que a
gente faz todo dia é resistir (01min).
Meu namorado não estava apoiando muito.
Aí, ele disse:
“você escolhe a ocupação ou eu”. Eu escolhi a ocupação.
Porque um homem que não apoia uma mulher de luta,
não serve para namorar uma mulher de luta”. (29min38s)
(LUTE COMO UMA
MENINA!, 2016).
Resistência tem sido uma palavra ainda necessária na educação bra-
sileira. É preciso saber resistir à onda de conservadorismo e enquadramen-
tos que fortemente chega às salas de aula ou às reuniões de professores e
que submete a educação escolar no Brasil a uma série de limitações.
“Lute como uma menina!” é um documentário sobre a participação
das meninas do movimento secundarista na luta contra o plano de reor
ga-
nização escolar
, proposta pelo governo de São Paulo em 2015. Este projeto
visava fechar cerca de cem escolas estaduais e não foi discutido com a co-
munidade escolar
, mas sim, imposto sem consultas democráticas. Dentro
desse contexto, as meninas tomam parte na luta contra o fechamento de
escolas atuando na liderança do movimento, demonstrando um forte em-
poderamento feminino.
O documentário demonstra como os alunos conseguiram ocupar as
escolas e promover
, durante cerca de 60 dias, uma autogestão, com divisão
de tarefas de forma a quebrar com os papéis de gênero. Em suas falas, os
estudantes defendem que tanto meninos como meninas podem cozinhar
,
trabalhar na segurança, na limpeza ou serem porta-vozes do movimento.
É perceptível, nas falas e cenas do documentário, como há uma pre-
carização
da
educação
pública
com
um
propósito
bem
denido.
Os
alu
-
nos mostram diversas salas, antes trancadas, com apostilas, instrumentos
musicais, materiais escolares, esportivos, documentários, e diversos outros
recursos pedagógicos novos, mas que não estavam sendo utilizados pelos
discentes.
Assim como parte da estrutura física das escolas, como auditó-
rios, teatros e laboratórios, com equipamentos inutilizados, sem a destina-
ção correta.
Só por esse contexto o
documentário, que lmou a atuação da polí
-
cia e do Estado contra as manifestações, já seria muito relevante, mas ele
vai além ao demonstrar a importância de dar voz a essas meninas lutando
O corpo sob a mirada da ciência moderna
022
Corpo, políticas e territorialidades
por uma educação melhor
. Durante os 60 dias de ocupação, os alunos re-
alizaram aulas antes ignoradas, como as que tratam de sexualidade, femi-
nismo, expressão corporal, o papel do jovem na sociedade, música, teatro
e diversas outras demandas desta autogestão da ocupação.
As meninas de luta do documentário são estudantes secundaristas
que avaliam como é importante o debate sobre gênero na escola. Elas en-
tendem o feminismo como igualdade, buscando demonstrar que as mu-
lheres podem fazer parte dos movimentos de luta pelos direitos e que para
ocupar esses espaços precisam mostrar o que chamam de “lado da mulher”
para os meninos. Sendo assim a educação escolar precisa trabalhar com
temas que são aprendizados para a vida, como o empoderamento feminino.
Dessa forma é possível contribuir com a formação de jovens engajados e
comprometidos com as demandas sociais.
O que me chamou atenção para este documentário foi a conferência
do Professor Fernando Sener
da Universidade Federal do Rio
Grande do
Sul
(UFRGS),
intitulada:
Antes sonhava. Hoje não durmo! A
docência na
escola básica em tempos de pânico moral: gêner
o, sexualidade e educa-
ção
. Para ele, este é o melhor tempo para discutir questões de gênero e
sexualidade na escola, pois esta ainda é uma temática mar
ginal e é preciso
potencializar a diversidade de pensar
, fazer e agir na educação.
Fernando
Sener
indica
que
os
temas
gênero
e
sexualidade
volta
-
ram às discussões por conta de alguns acontecimentos, como a abertura
do processo de
impeachment
da presidenta Dilma, durante o qual houve
uma série de declarações de cunho misógino da mídia, dos parlamentares
e partidos de oposição. Outro fator foi a presença recorrente da mesma te-
mática nas rotinas e demandas dos alunos das escolas ocupadas no Brasil
entre 2015 e 2016. O documentário “Lute como uma menina!” expressa
esta temática muito bem ao apresentar um forte protagonismo feminino
nos processos de ocupação. T
ambém estão reforçados pelas discussões da
temática com a polêmica acerca de ideologia de gênero e a retirada do con-
ceito gênero da Base Nacional Comum Curricular
.
Para o pesquisador
, há o que ele chama de pânico moral, quando
se promovem ações para não se tratar
, na educação ou em áreas como a
saúde, das questões da sexualidade e de gênero. Demonstrando não haver
argumentos de quem defende a retirada da temática
da educação, o que
1
1 - Conferência realizada na Universidade Federal de Sergipe (UFS), no dia 17 abr
. 2018, dentro das ações do projeto:
Educação e Interculturalidade: Descolonizando o olhar investigativo.
023
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
existe é a manutenção das desigualdades que não são apenas de gênero,
mas de raça, social, cultural e diversas outras. O projeto Escola sem Parti-
do ,
defensor do m
daquilo que
chama “ideologia de
gênero” nas
escolas,
também demonstra que seu objetivo não é uma escola livre de partidos,
ela é bem partidária a uma perspectiva de colonizar a escola. Então, há um
pânico moral quando se trata de temas de pluralismo democrático.
Existe uma tentativa de colonizar a escola com o objetivo de enqua-
drar ainda mais as diferenças. Fala-se mal da escola, principalmente a pú-
blica, mas ela cresceu como espaço de mudanças para as culturas juvenis,
como é demonstrado no documentário “Lute como uma menina!”.
Dessa
forma,
como
ca
a
liberdade
de
ensinar?
Como
as
Larissas,
Raimundas e Sophias irão ter a autonomia em suas salas de aula, para dis-
cutir
temáticas ur
gentes na
educação escolar?
No seguimento
deste capítu
-
lo irei percorrer as narrativas de professoras, do povoado
Triunfo, na região
rural de Simão Dias. T
ais relatos tratam da produção de subjetividades na
sala de aula, que reforçam enquadramentos para meninas e meninos.
Esses desdobramentos na educação atual do Brasil demonstram um
processo de retirada da autonomia da escola e da liberdade de ensinar dos
professores. Não é possível formar professoras determinando que elas min-
tam na sala de aula, quando precisarem responder a uma questão de gênero
ou sexualidade levantada por seus alunos. Professoras e professores preci-
sam ser formados com a compreensão da liberdade de ensinar
. Precisamos
permitir que a educação seja permeada pelo pluralismo democrático.
2 - O projeto Escola sem Partido é um movimento que tem como fundador o advogado e procurador do Estado de São
Paulo Miguel Nagib, que objetiva fomentar leis contra o que chamam de abuso da liberdade de ensinar
, em que a temática
das questões de gênero é a mais combatida e alvo das críticas. Como se pode visualizar no site do movimento, disponível
em: https://www
.programaescolasempartido.org/projeto.
Acesso em: 26 abr
. 2018.
2
As mulheres tinham, “por natureza”, uma inclinação para o
trato com as crianças, que elas eram as primeiras e “naturais
educadoras”, portanto nada mais adequado do que lhes
conar
a
educação
escolar
dos
pequenos.
Se
o
destino
primordial da mulher era a maternidade, bastaria pensar
que o magistério representava, de certa forma, “a extensão
da
maternidade”, cada
aluno
ou aluna
vistos
como um
lho
ou uma lha “espiritual” (LOURO, 2009, p. 450).
Composições de pr
ofessoras mulheres
024
Corpo, políticas e territorialidades
Anal,
o
que
é
ser
professora/mulher?
Como
e
quando
nos
tornar
-
mos
professoras/mulheres?
Esta
é
uma
questão
que
me
ocorreu
quando
comecei a pesquisar fazendo interseções entre educação e gênero. Ela per
-
corre a genealogia da composição do conceito mulher na educação. Nas
entrevistas e deslocamentos pelo campo de pesquisa, pude entrar em con-
tato com as marcas, experiências, devires, narrativas de si, produtoras das
linhas desta pesquisa, atuantes na composição de professoras mulheres.
A
composição é um movimento com múltiplas velocidades, com múltiplas
partes que se misturam e formam outras, numa ação de mudança contínua
e ilimitada.
Nestes movimentos, me deparei com uma história narrada pela pro-
fessora Raimunda. Sua fala me chamou atenção para a quebra de conceitos
construídos e reiterados ainda na contemporaneidade.
Alguns conceitos
não têm comportado diferenças nas demarcações propostas e demandam
à educação diversas questões que a escola não tem conseguido lidar
. Rai-
munda é permeada pelas experiências e tocada pelas marcas dessa trajetó-
ria de vida e me contou uma das histórias da sala de aula que tem lhe tirado
o chão.
Eu lembrei agora na minha sala de aula, no terceiro ano.
Nós temos, assim, hoje o progressivo ele vai do primeiro,
para o segundo e para o terceiro.
Ai, eu pego aquele
que não conhece o alfabeto ainda com um que conhece.
Quando foi no meio do ano, a mãe se separou do esposo e
estava convivendo com uma mulher
. Então, já um baque.
Ele saiu da capital e foi morar no interior
.
A
mãe cobradora,
de ônibus. Ela passava o tempo todo indo e vindo. E só
voltava
no
nal
de
semana
(2)
e
ele
terminava
sem
a
presença da mãe. Essa outra mulher
, por ele ser muito
danado, o que ela fazia, ela colocava na banca. Ela tirou
toda vivência em relação às outras crianças. Ele novinho,
mas tinha certa estatura e terminava impondo medo nos
outros. Ele tinha outro irmão doente, que terminou cando
com o
pai,
porque lá
se
precisasse de
urgência cava
mais
fácil. Sem a presença do pai e da mãe, porque ela só estava
em
casa
nal
de
semana.
(3)
Muito
atrito
em
sala
de
aula.
Ele sempre brigava, porque os outros diziam que ele é
lho
da
sapatona.
Ele
veio
de
escola
particular
,
mas
ele
era
copista,
com
uma
caligraa
ruim.
(2)
A
princípio
ele
chegou numa semana de avaliação e mesmo ele não tendo
025
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
estudado comigo eu disse que não ia considerar a nota dele,
mas era uma questão diagnóstica. (2)
Ai, eu tava lendo a
prova,
quando
ele
disse
“a
sua
não
está
respondida
não?
Porque na outra escola era assim”.
Assim, a constituição
familiar que hoje temos que procurar trabalhar isso e não
somente para quem trabalha no campo. Isso aí: (2) gerou
intriga entre famílias, porque um menino... Eles moravam
no conjunto e iam brigando na rua. Daqui a pouco estavam
as mães na escola. E tinha coisas que não tinha ocorrido
dentro da sala de aula. Então, eu pedia para cada mãe vir
buscar
seu
lho,
mas
isso
a
gente
sentia
muito
-.
Quando
chegou
o nal
do
ano a
mãe
terminou se
separando.
Ele era
muito levado, mas porque não tinha espaço dele brincar
.
Ai
começou
a
perguntar
uma
coisa
e
ele
cava
com
mentira,
mas terminava vindo. Ele dizia que a mãe estava em
Aracaju
com outra, e, trazia isso para a escola, e, a outra vinha para
saber se ela tava ligando (rindo. Mas a mãe dizia que se ele
estivesse danado passasse o telefone para ela. Ele também
foi para
Aracaju e terminamos perdendo o contato.
3 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
3
Quantas histórias como a de Raimunda estão em nossas salas de
aula?
As
diferenças
estão
sendo
produzidas
a
cada
micro
instante.
Neste
movimento, vão quebrando e tornando as produções discursivas sobre as
diferenças desconexas com a contemporaneidade. Não podemos olhar para
a sala de aula partindo dos padrões pelos quais fomos criados; ser profes-
sora é abrir
-se para as diferenças que podem permear nossas classes. Em
meio às mudanças que estamos vivenciando, a educação escolar deve ser
o lugar de desenvolvimento de crianças e jovens frente aos movimentos de
transformação.
Em meio a estes processos, Raimunda me diz que: “a educação era
uma coisa mais feminina na sala de aula, hoje mais nem tanto”. Ela já pos-
sui a experiência de ter um colega homem sendo professor pedagogo, outra
relação construída com o processo de feminização do magistério. No se-
guinte trecho, ela compartilha como é a relação com um professor homem:
Em termos de educação, a gente vê mais as mulheres à
frente. V
ai abrir um concurso na educação infantil, como
se um homem não pudesse trabalhar na educação infantil.
Porque na educação infantil o homem além de dá aula
026
Corpo, políticas e territorialidades
ele também tem que levar ao banheiro. Nós vemos na
educação que quem predomina mais são as mulheres. (3)
Eu acho que é um campo que deve ser para todos, mas na
educação infantil ainda existe esta resistência.
Aos poucos,
vem mudando esse quadro. Como Romualdo que trabalha
conosco: e essa troca de experiência é muito boa.
4
4 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
5 - Sophia. Entrevista III. [02 set. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
Quanto
mais plural
a
educação, maior
é
a capacidade
de
lançar e
-
chas
para
atingir
uma
maior
possibilidade
de
diferenças.
Não
me
rero
somente aos professores homens. Recentemente participei de uma mesa de
discussão sobre as diferenças na educação com uma professora transexual
que, embora realizasse um bom trabalho, sofria com a discriminação e pro-
cessos violentos atuantes para afastá-la da sala de aula.
A
própria mulher é uma dessas diferenças produzidas na educação.
São muitos os saberes que a palavra mulher carrega.
As professoras do
T
riunfo narram muitas das produções discursivas que temos acerca da mu-
lher e a carga da docência. Como Sophia indica,
Mulher e professora: (2) é o que lhe disse antes, difícil
(porém).
T
udo
o
que
faço
e
já
z
até
hoje
faço
porque
gosto. Eu sou apaixonada por educação. Na última greve
chorei, me decepcionei. Disse que não queria ser mais
professora. Fiquei revoltadíssima com tudo, porque eu
vi um descaso. Porque, principalmente, quando você não
faz com compromisso, mas quando você pensa que você
perde noite. Não posso chegar em sala de aula sem uma
atividade planejada. E, mesmo sendo professora e mulher
,
eu não deixo.
Ao máximo, eu me dedico, para não deixar
faltar
. Para não pensar
, assim, hoje não deu certo, hoje eu
vou fazer qualquer coisa, porque eu tinha que passear
, ou ir
para o salão. Eu deixo de ir pra planejar ou para qualquer
outra coisa. Meu lado mulher é mais meu lado família. E,
como não co
muito em casa,
então eu dou
tudo para car
em casa (risos).
5
A
mulher e professora estão bombardeadas por princípios de desi-
gualdade, são tantas obrigações! Nas triplas jornadas por um salário mais
digno, na pressa de cuidar da cria, muitas vezes ignora as intervenções
027
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Porque, assim, a gente leva, quando eu digo assim, que
leva um pouco mais pra casa do que na sala, eu acho que
é porque na sala que por ser mais dinâmico e a gente não
sente tanto,
né? Por
mais
que trabalhe
aqui à
tarde, à
tarde
tem
muitas
atribuições?
T
em!
Não
sei,
a
gente
não
para.
E quando tá em casa, que você vê que tem as questões de
casa, aí cê tem atividades para corrigir
, os apontamentos
que você fez ali desorganizado pra colocar porque se você
deixar para
depois você
não sabe
mais do
que se
trata, né?
Isso diariamente. Isso porque os meus planos semanais eu
ainda
consigo
fazer
no
nal
de semana.
Porque
se
eu
deixar
para a semana, aí que: a coisa pega (risos, cansaço).
ricas de experiência e movimentos de criação de seus alunos. É preciso
deixar de lado os momentos de ócio criativo para dar conta da car
ga de
trabalho que transcende a escola e a intensa preparação das aulas.
Na segunda entrevista de Sophia, o tema ainda é recorrente. Ela se
recente da falta de tempo para tantas atribuições por ser mãe, esposa e pro-
fessora. Em seu cotidiano escolar
, acaba ensinando as meninas por meio
de seu exemplo pessoal de mulher batalhadora, com muitas rotinas para
sobreviver
.
6 - Sophia. Entrevista V
. [04 jan. 2018]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2018.
6
Os preceitos morais também incidem no destino mulher/professora,
como Larissa que tem discursos de independência, de uma mulher que saiu
de sua cidade, teve outras vivências e, depois de um tempo, retorna ao inte-
rior
. Ela sente o peso do destino mulher
, quando pensa sobre sua condição
de professora e o fato de a sociedade esperar algo dela.
Larissa questiona o modelo de sociedade imposto em sua cidade
natal, por sua família, defensora da ideia de mulher dependente, dócil, sen-
timental, destinada a preparar
-se para o casamento. Estabeleceu para si
outras possibilidades de existência seguindo um caminho de estudo, fa-
zendo Mestrado e Doutorado, compondo ainda mais sua professoralidade
para levar à sala de aula seus estudos e análises.
V
ejo o quanto essa relação
de professora-pesquisadora é fundamental para movimentar nosso pensa-
mento na sala de aula. Quanto a estas questões de ser mulher e professora,
Larissa indica que,
028
Corpo, políticas e territorialidades
(3) Pra mim é bem tranquilo. Primeiro porque: eu na
condição de mulher (2) eu não tenho grandes dependências.
Eu
não
sou
casada.
Eu
não
tenho
lhos.
Eu
não
tenho
pessoas que dependem de mim enquanto mulher
. Então,
assim
em
relação
à
diculdade
que
eu
tenha
de
vivência,
acredito
que
não
tenho
muita. O
que
tenho
diculdade
em
ser mulher é a visão da sociedade sobre mim. Eu sinto,
por exemplo, eu moro em Simão Dias hoje, e, por ser uma
cidade pequena, todo mundo me conhece. T
odo mundo
sabe que eu sou professora e, por ser mulher
, é o foco
de mulher
. Porque os homens que têm na cidade fazem
física, química. E a sociedade espera alguma coisa de mim,
enquanto professora. Enquanto mulher
, não me falam, mas
eu vejo. Outra coisa que a sociedade espera, principalmente
a comunidade escolar
, é que nós professoras a gente vá ser
quase uma professora de etiqueta, justamente porque não
estou preocupada com estas questões. V
ou trabalhar com
eles mesmos a questão de trabalhar o sexo biológico, mas
não o convívio social ou os papéis da sociedade. Homens
e mulheres são capazes e podem fazer o que quiserem,
mas muitas vezes vejo a comunidade escolar incomodada,
porque eu deixo meninas jogar bola com meninos. Que vem
reclamar que tem um trabalho de grupo que um menino
tem de fazer trabalho na casa de uma menina.
7
Quando ela se nega a ser professora de etiqueta, determina como
verbo que não pode colocar sua professoralidade em prol de algo tão pe-
queno e repressivo, indicando que a mulher pode muito mais do que lhe
foi determinado. Com o decorrer das duas entrevistas, percebo o quanto
Larissa
movimentou
sua
docência,
o
quanto
cou
diferente
da
primeira
vez
que nos falamos para a segunda, como os seus estudos estavam adentrando
sua sala de aula.
Para Larissa, há um incômodo quando contrapõe diariamente o pen-
samento
machista
nas
suas
aulas.
Não
ca
quieta
quando
lhe
é
dito
que
menina é para casar e ter marido e menino para trabalhar
, principalmente
na roça, coisa que não demanda muito estudo para ambos. Empoderar me-
ninas é um trabalho contínuo, demanda muito esforço e sempre estamos
retornando para o começo, fazendo novos contrapontos, ganhando e per
-
dendo terreno. Por conta disso, pesquisas como esta são necessárias para a
7 - Joana. Entrevista II. [31 ago. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
029
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
educação, pois a luta é diária e sempre há enquadramentos a romper
.
Há uma construção de regime de verdades para legitimar enquadra-
mentos à mulher
.
As professoras atuam nesse processo e muitas vezes os
rearmam.
Não
podem
ir
de
encontro
aos
preceitos
morais
da
comunidade,
devem ser exemplos. Precisam compor modelos de homens e mulheres de-
terminados por relações de poder que atuam para o estabelecimento destes
modelos.
Ser mulher já é uma tarefa com intensas implicações, que demanda
outras ainda maiores para a professora. Raimunda, Larissa e Sophia apre-
sentam, em suas narrativas, como é difícil romper com processos de desi-
gualdade culturalmente legitimadores deste lugar menor para as mulheres.
A
formação da docência para a difer
ença
É imediatamente perceptível a presença do professor que
habita plenamente a sala de aula. Os alunos percebem
desde o primeiro minuto do ano, nós todos temos essa
experiência: o professor acaba de entrar
, ele está totalmente
lá, e isso se vê pela sua maneira de olhar
, de cumprimentar
os alunos, de se sentar
, de tomar posse da mesa. Ele não se
dispersou por medo das reações deles, ele não está fechado
em si mesmo, não, ele está por dentro do que faz, logo no
começo ele está presente, distingue cada rosto, a turma
existe sob o seu olhar (PENNAC, 2008, p. 105).
Mais uma vez os caminhos da formação de Daniel Pennac me lem-
bram a composição permeadora deste tornar
-se professora.
As composi-
ções se dão em interseções e entre elas estão discussões e estudos que
empreendemos
nesta
longa
e
innita
jornada
da
formação.
Algo
que
me
motivou a pesquisar foi querer saber se, no processo de formação docente,
temas como coeducação são discutidos. Raimunda, quando narrava sua
formação, disse que: “Não. (3) Não, não me recordo.
Assim, só trabalhan-
do como era a formação da educação.
Algo bem sucinto, antes como era a
escola e tudo. Mas sobre coeducação não” . Como no turno oposto ela tra-
balha com Educação Especial sempre aparecem em sua fala as marcas de
educar
para
a
diferença;
seu
olhar
atento
demonstra
como
as
diculdades
8
8 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
030
Corpo, políticas e territorialidades
O que me marcou foi um aluno que, durante as aulas, tinha
suas
diculdades.
Eu
trabalhava
com
ciências,
com
química
e física.
Ai, todas as fórmulas dava um bloqueio.
Ai, ele
disse: “professora em casa eu não estudo, eu trabalho numa
padaria durante a noite e tudo”.
Ai, eu disse o que é que eu
faço. Eu tentava avaliar de outras formas, porque na prova
ele tinha um bloqueio, porque ele não parava. O que ele
aprendia era o momento
em que estava na sala de
aula. (4)
Nas turmas aqui as experiências ainda são pequenas em
termos de agricultura, porque eu pego crianças de oito aos
dez anos. Os professores que pegam mais adolescentes é
que vivenciam o tempo inteiro.
com os processos educativos podem ser sutis:
9
9 - Raimunda. Entrevista I. [27 ago. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
10 - Raimunda. Entrevista VI. [16 jan. 2018]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2018.
O modelo de educação vigente prioritariamente em nossas escolas
vem desde a modernidade e tem o objetivo de buscar generalizações. Os
alunos passam pelos mesmos processos e precisamos chegar aos mesmos
objetivos. Quando há um problema, precisamos voltar e pensar o aluno de
forma individual. Contudo, a organização
do ensino não nos permite ter
esse trabalho com as diferenças.
Em Diferença
e repetição, Gilles Deleuze
(2006) em suas
argumen
-
tações, arma
que a aprendizagem
não se
dá com a
reprodução do
mesmo,
e
sim
no
encontro
com
o
outro,
com
o
diferente.
Ele
arma:
“Aprender
é
constituir este espaço do encontro com os signos, espaço em que os pontos
notáveis se articulam uns nos outros e em que a repetição se forma ao mes-
mo
tempo
que
disfarça”
(DELEUZE,
2006,
p.
48-49).
Na
segunda
entre
-
vista, Raimunda se aprofunda um pouco mais nas lacunas de sua formação,
quando diz:
De certa parte sim. Porque assim, querendo ou não a: a
formação ela nunca é completa. E a gente sente falta de,
por
exemplo,
a
questão
de
trabalhar
alunos
com
deciência,
a gente vê um modulo ou outro que quando se está na
faculdade. E é a vivência que nos ensina. Hoje em dia a
formação, a constituição familiar que não é mais aquele,
pai:
mãe: lhos:
que já
temos
várias formas
de constituição
familiar e isso repercute dentro da sala de aula. Então, tudo
isso o professor tem que tá se inovando a todo instante, e
não parar as leituras, não parar os cursos (risos).
10
031
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Coeducar na contemporaneidade vai muito além de se ter meninos
e meninas em sala de aula. São múltiplas as diferenças, e o cotidiano es-
colar nos apresenta novas diferenças diariamente. Joan Scott (1998), com
a invisibilidade da experiência, demonstra que estudos voltados a pensar
essas temáticas dão visibilidade às diferenças e nos ajudam a compreender
como as disparidades são estabelecidas e quais as produções discursivas
que compõem saberes sobre elas.
É preciso
pr
ofessoralizar
para contrapor os movimentos de nivela-
ção da subjetividade.
As singularidades precisam resistir a este processo.
Para Guatarri
e
Rolnik, “todos
os devires
singulares,
todas as
maneiras de
existir de modo autêntico chocam-se contra o muro da subjetividade capi-
talística” (2010, p. 59).
As subjetividades não podem ser centradas em um
indivíduo, em um modelo.
Na primeira entrevista com Larissa, quando per
guntei sobre sua for-
mação e em quais momentos havia estudado sobre coeducação, ela revelou
ter estudado muito pouco sobre o assunto:
Pouco. Bastante pouco. Eu tinha uma disciplina que
chamava História Social e a professora focava muito
essa questão, mas não: foram levantados grandes debates
durante o processo formativo. No mestrado, por exemplo,
na escolha de um tema para se aprofundar na educação
e não levantaram essa discussão. Durante meu processo
formativo eu pouco trabalhei [...] (3) Esse tipo de discussão
necessário é, mas minha turma é de quinto ano, mas eu
trabalho muito mais com a perspectiva de fortalecimento
da identidade do discurso delas, mas não assim uma
discussão
especíca
sobre,
ou
que
existem
atividades
que
são separadas, mas é importante.
Agora assim, nos dias de
hoje eu peço
para os alunos reetirem sobre seus
discursos
e suas ações.
Acho que empoderá-los nessa sociedade
é uma discussão que procuro fazer
. Então, acho que já
esteja esgotada essa discussão. Eu sei que não está, mas
sei que é uma discussão que não consigo fazer tão bem,
em meio às atribuições que tenho da escola, e, somado a
isso eu também não me especializei nessa área. Eu gosto
de discutir e trabalhar o que tenho competência para isso.
1
1 - Larissa. Entrevista II. [31 ago. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
11
032
Corpo, políticas e territorialidades
No segundo bloco de entrevista, Larissa continua a sentir a falta de
ter trabalhado a temática em seu processo formativo. Contudo, compre-
ende que a formação na graduação não dá conta de todas as necessidades
da
sala
de
aula,
armando
que
a
formação
na
Universidade
precisa
ser
ressignicada,
pois
o
modelo
de
formação
docente
não
está
dando
conta
das demandas sociais existentes. Percebe que houve, ao longo de sua for-
mação, uma concentração da temática da mulher na História da Educação,
não tendo, para além, nenhum suporte para aprofundar o estudo e construir
argumentações
para contrapor enquadramentos. Larissa faz uma análise
das diferenças na educação e na sua atuação docente no seguinte ponto,
[...] depois que eu entrei no doutorado, ainda, de uma
forma
mais
intensicada,
tanto
porque
agora
eu
já
tenho
um conhecimento teórico maior sobre o campo, eu tenho
estudado mais, e: eu tenho visto, nos últimos tempos
principalmente depois desse um ano e meio, o quanto esses
comportamentos machistas, conservadores,
NÃO SÓ
EM RELAÇÃO À MULHER
, mas a vários grupos, às
minorias em geral, tem
emergido
assim, como tem
voltado
com força total dentro do cenário político que a gente tem
vivido atualmente. Então esse ano de 2017, que encerrei
agora, foi um ano que os meus discursos foram ainda mais
marcados nessa questão, é, e também agora assim, eu
comecei a chamar muita atenção também para a questão
do negro. Porque antes eu já trabalhava um pouco menos,
porque eu acreditava que a gente já tava num caminho
de superação, e quando eu vejo o ódio, a intolerância, e
tudo voltando à tona, aí eu senti a necessidade de começar
a trabalhar isso de uma forma mais forte aqui dentro da
escola.
12
12 - Larissa. Entrevista IV
. [03 jan. 2018]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2018.
Na entrevista de Sophia, também há uma indicação próxima à de
Larissa, quando ela sinaliza ter estudado pouco na graduação temáticas
ligadas às questões de gênero. No seguinte trecho ela diz:
Eu acho o tempo importante, porque muita coisa que
estudei de história da educação foi porque estudei sozinha.
Eu comprei um livro de História da Educação para ler em
casa, porque quando comecei a estudar (2) eu gostava e
033
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
cava
estudando
muitas
coisas.
Eu
vejo
que
é
importante,
porque é impossível a gente entender
. (3) Muitas coisas,
que a gente vive, para você entender porque, o que
aconteceu para que hoje estivesse desse jeito.
Até muita
discriminação, que a mulher sofreu. E porque tem o dia
da mulher? (risos) E, para
você explicar toda essa questão,
que haja entendimento.
13
13 - Sophia. Entrevista III. [02 set. 2016]. Entrevistadora:
Aldenise Cordeiro Santos. Simão Dias, 2016.
Em nossa formação passamos por diversos temas que iremos tratar
em nossas salas de aula, mas é preciso haver momentos para entrarmos em
contato com diversas outras experiências e pensarmos as questões das sa-
las de aula na contemporaneidade. O modelo educacional contemporâneo
tem sido questionado, muito em razão de não sabermos como atuar com
a diferença; e é difícil trabalhar algo que sequer pronunciamos. Naturali-
zamos conceitos e estamos a defendê-los mesmo que estejam desconexos
com nossas vivências cotidianas.
Mas como
movimentar
nossas formações? T
emos uma
Filosoa da
Educação,
por
exemplo,
que
se
tornou
apenas
uma
reexão
da
educação,
sendo
que,
para
Deleuze
e
Guattari,
“a
losoa
é
a
arte
de
formar
,
de
in
-
ventar
,
de
fabricar
conceitos”
(1992,
p.
10).
O
professor
de
Filosoa
da
Educação, segundo este
lósofo, precisa instrumentalizar seus alunos
com
os conceitos acerca das questões relativas à educação para que possa, no
desconhecido e imprevisível que é sala de aula, acioná-los quando neces-
sário e promover naquele espaço relações com aprender que provoquem os
alunos a movimentar o pensamento.
Deleuze
e
Guattari
(1992)
nos
propõem
pensar
a
Filosoa
como
criação
de
conceitos.
Para
Silvio
Gallo,
dentro
deste
entendimento,
“nada
faremos pela Educação, se nos limitarmos a repetir velhos conceitos, a
raspar
esses
ossos
como
cães
famintos... Assim
losoa
da
educação
tor
-
na-se algo totalmente desinteressante, cada vez mais despontecializada”
(GALLO, 2008,
p. 56).
Nós,
enquanto professores,
não aprendemos
a uti
-
lizar os conceitos como instrumentos para pensar a educação, nossa sala de
aula e nossas ações.
O
Aprender
, este que está sempre em construção, é a vontade e o
desejo que nos levam a produzir e a criar
, e não desconsidera as marcas que
nos cortam. Deleuze entende o conceito de aprender
, nesse seguimento, co-
034
Corpo, políticas e territorialidades
locando que o “aprender vem a ser tão-somente o intermediário entre não-
-saber e saber
, a passagem viva de um ao outro. Pode-se dizer que apren-
der
,
anal
de
contas,
é
uma
tarefa
innita”
(DELEUZE,
2006,
p.
271).
Assim, aprender não é apenas aquisição de conteúdos como nossa escola
contemporânea tem nos levado a pensar
. Esse aprender habita a criação, o
demorar
-se, o perder tempo e encontrar-se com o desconhecido.
No nosso mundo educacional, o conhecimento tem se colocado fren-
te a uma excessiva disciplinarização, em uma estrutura arbórea de divisão
do conhecimento. Essa hierarquização do saber tem sido uma das grandes
discussões no campo educacional, em que se propõe uma educação trans-
disciplinar
, sendo o maior problema a própria disciplina, que delimita o
conhecimento, o enquadra e rearma um regime de verdades.
Para isso, Deleuze vai pensar no conceito de rizoma que “remete-
-nos
para a
multiplicidade” (GALLO,
2008, p.
76). Ou
seja,
uma produção
de
conhecimento
sem
início
e
m,
para
fazer
proliferar
pensamentos
que
se conectam com este ou aquele sem hierarquias. É sempre múltipla e não
a forma una da árvore, que nos obriga a hierarquizar o pensar e nos propõe
a repetição do mesmo ao invés da criação.
São intensos os movimentos para a formação de um rizoma e pode-
mos acessá-los por diversos pontos. É um pensamento que pode ser afe-
tado
por
uma
nova
fala
dos
alunos,
que
fez
com
que
se
modicassem
as
compreensões sobre determinado assunto. Não compartilha essa ideia de
que um pensador disse algo e você, em sua classe, precisa enquadrar as
situações a essa teoria.
A
educação escolar contemporânea tem se utilizado de muitos me-
canismos de controle. São tantos que é como se o aluno tivesse de encon-
trar seu lugar como peça em um relógio nessa escola vigilante, controlado-
ra da falta, do conceito, da nota, da prova.
Há também uma intensa disciplinarização do conhecimento, subdi-
vido para controlar o
acesso a ele.
Anal, “a escola
é o lugar da disciplina,
de
seu
aprendizado
e do
seu
exercício”
(GALLO, 2008,
p.
82). Uma
escola
cunhada
na modernidade
tem de
rearmar
seus conceitos,
entre eles,
a hie
-
rarquização do conhecimento.
Nesse exercício de poder
, há sempre uma ordem implícita presente
nas avaliações.
A
avaliação para dominar
, para exercer poder sobre o alu-
no. Na velha ameaça da caderneta, em que o aprender é confundido com
adquirir conteúdos. O aprender
, nessa escola, não dá tempo para pensar e
035
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
criar
, é compartimentado, porque precisamos ter unidade, provas, revisões.
O importante é apenas reconhecer e dar opinião sobre tudo. Esse controle
é contínuo e está em todos os níveis da escolaridade.
Sendo assim, depois de tantos movimentos no campo de pensamen-
to da professora/mulher tenho compreendido sua formação como algo em
construção, que se desvela nas experimentações vividas em sala e na vida,
a cada provocação e construção de saberes. Estamos sempre lidando com
o porvir e os múltiplos que passam em nossas salas. Enquanto professoras,
temos de estar abertas às formas distintas de lidar com o mundo em que
vivemos.
A
escola precisa nos tocar para que haja aprendizagem. Este tem
sido um lugar onde poucas vezes podemos acionar nossas experiências. O
válido é opinar
, ter sempre as respostas desejadas prontas. Nesse mundo da
velocidade, a escola tem nos deixando cada vez mais um tanto mecânicos,
não podemos sair da engrenagem porque assim estamos em contraconduta.
Em busca da grade, do currículo, do planejamento, do padrão, nosso
sistema de ensino exclui a diferença e produz diversas outras nesse trabalho
insano de tentar encaixá-las dentro do molde. T
odos os que não conseguem
passar pelo seu crivo, são desconsiderados nesse processo tão desigual.
Considerações nais
Axiomas
Sempre é melhor
saber
que não saber.
Sempre é melhor
sofrer
que não sofrer.
Sempre é melhor
desfazer
que tecer.
(Orides Fontela)
É preciso desfazer o conceito de mulher
, construído cultural e his-
toricamente. Precisamos problematizar a condição da mulher que vive em
enquadramentos ensinados cotidianamente na educação escolar e para além
036
Corpo, políticas e territorialidades
dela.
As mulheres precisam romper os cativeiros aos quais foram subme-
tidas, não podem ser privadas do governo de si, da liberdade do seu corpo
ou da educação com princípios de igualdade.
Pensar a mulher sob outras perspectivas é necessário não para virar
o jogo, mas para propor um novo jogo baseado em princípios de igualdade.
Desde a educação ao mercado de trabalho, precisam ser repensados; não
podemos tolerar a existência de produções discursivas que legitimam a in-
ferioridade do trabalho realizado pelas mulheres, ou até mesmo a condição
desigual de concorrência. Sabemos que a condição da mulher professora
já começou numa perspectiva de desigualdade com relação aos homens,
porque
mesmo
com
as
mesmas
ocupações
recebiam,
no
início
da
pros
-
sionalização docente, salários distintos, fato ainda presente na contempo-
raneidade.
As pesquisas no campo da educação precisam ter um olhar mais
sensível às diferenças, entre elas as mulheres, objetivando a desconstru-
ção da identidade feminina patriarcal dominante. O conceito mulher pre-
cisa ocupar espaços sociais, culturais e políticos, de forma a atuar por uma
igualdade de gênero, direito à educação, trabalho e demais demandas so-
ciais dentro dos princípios de equidade.
Com as narrativas das professoras Sophia, Larissa e Raimunda, po-
demos compreender alguns aspectos que demonstram como a mulher se
tornou o que é hoje. Como as produções discursivas habitam os corpos e
reiteram a repressão ao feminino.
Na trajetória dessas mulheres podemos compreender como diversas
marcas atravessam o nosso caminho, a nossa formação docente. São mui-
tos encontros e desencontros, entre as aulas que são preparadas e atingem
seus objetivos, e outras que não, mas que nos demonstram que estamos
lidando com os inusitados provocados pelas intercessões das diferenças
nas salas de aula.
São múltiplas as experiências compartilhadas pelas professoras do
T
riunfo. Foi no decorrer de suas narrativas que acabaram por olhar para
suas marcas e
reetir sobre suas atuações
docentes. O desenvolvimento de
dois blocos de entrevistas demonstrou que as professoras movimentaram
as suas
pr
ofessoralidades
. Foi acertada a ação de voltar ao campo de pes-
quisa e apresentar às professoras a transcrição da primeira entrevista para
que
pudessem
modicar
o
texto
de
acordo
com
o
que
não
compreendiam
ter sido dito daquela forma. Elas não solicitaram correção ou exclusão de
037
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
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. 1998. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/
revph/article/view/1
1
183.
Acesso em: 18 abr
. 2020.
pontos críticos, que poderiam tirar algumas possibilidades de desenvolvi-
mento da pesquisa. Corrigiram apenas o necessário, pequenas alterações
na forma de compreender o áudio. Isto provocou uma mudança na com-
preensão delas sobre a pesquisa; passaram a colocar em xeque sua atua-
ção, observando como agem em determinadas situações; questionaram-se,
o que me instrumentalizou acerca da pesquisa com o humano, com aquilo
que está sempre em movimento.
As narrativas das professoras demonstram como suas salas de aula
estão carregadas por práticas discursivas que determinam verdades para
suas alunas. Seja na prática, nos livros didáticos, nas normas, na arquite-
tura, nas brincadeiras, em todos os cantos da escola há enquadramentos.
038
Corpo, políticas e territorialidades
P
Patriarcado:
(Des)valores de uma
história mal contada
Carla Jeane Helfemsteller Coelho
039
As opressões estruturais contra as mulheres, existentes historica-
mente no mundo inteiro, representam muito mais do que o ataque à dig-
nidade somente das mulheres, mas indicam o comprometimento do que
almejamos quando queremos ser humanos. Somente nas últimas décadas,
com o avanço das pautas feministas, que estes mecanismos opressores
têm
sido
questionados
e
deagrados
enquanto
opressões
de
gênero.
Es
-
tas opressões de gênero são antigas e estruturais e são desencadeadas e
perpetuadas em função de um fenômeno que é o sistema patriarcal, ou, o
patriarcado: sistema social/cultural, político e econômico no qual se encon-
tra a origem e a manutenção da opressão das mulheres perpetradas pelos
homens (LERNER, 2019).
Este
sistema,
no
entanto,
não
é
universal
e
nem
sempre
orientou
todas as organizações sociais.
A
perscrutação das imagens arquetípicas,
que representam as mulheres em períodos em que elas são protagonistas e
valorizadas, desestabilizam as crenças que naturalizam a suposta inferiori-
dade das mulheres produzidas pelo patriarcado. Por isso a importância de
conhecer outras narrativas desta história, para que seja alterado o imaginá-
rio da suposta inferioridade e subalternidade das mulheres, que tem produ-
zido o desenvolvimento de crenças e valores com os quais se produzem e
justicam
diferentes
formas
de
violência. A
subordinação
das
mulheres
é
possível a partir da ideia de inferiorização delas. T
anto a ideia de subordi-
nação quanto a de inferiorização das mulheres geram opressões e violên-
cias estruturais, o que torna os valores que fazem pessoas acreditarem nes-
ta
subordinação, justicando
esta
inferiorização
e
toda
sorte de
violências
decorrentes, algo que precisa ser discutido, desnaturalizado e ultrapassado.
O ensaio que ora se apresenta oferece recortes provenientes de pes-
quisas
atuais
da
autora
com
o
objetivo
de
suscitar
reexões
sobre
valores
que são desenvolvidos pelo sistema patriarcal apontando aspectos do de-
senvolvimento epistêmico deles, e como estes valores, presentes tacita-
mente, inclusive nas mulheres, limitam suas vidas produzindo a permanên-
cia da subordinação das mulheres – marca deste sistema.
Apresentamos aqui, a partir de elaborações de dois projetos de
pesquisa da autora que estão em curso nos quais, perscrutando narrativas
losócas,
míticas
e
religiosas,
a
construção
epistêmica
e
axiológica
do
sistema
patriarcal
e
suas
consequências.
Identicando
sociedades
que
se
organizaram, ou
se
organizam,
fora
dos
moldes
patriarcais,
desmitica-se
a ideia de uma universalidade patriarcal, desnaturalizando seus efeitos por
040
Corpo, políticas e territorialidades
meio do conhecimento da História das Mulheres por elas contada.
T
ais
pesquisas foram iniciadas por entendermos ser fundamental atentar para o
fato de que existe um sistema estrutural que ainda mantém a hierarquia da
sociedade, excluindo mais da metade da população formada por mulheres.
As
reexões
aqui
apresentadas
reetem
a
trajetória
de
uma
mulher
que
cursou
Licenciatura
em
Filosoa
enfrentando
muitos
obstáculos
para
dar
continuidade
aos estudos
no
campo da
Filosoa, em
seus programas
de
pós-graduação frequentados majoritariamente por homens. Considerando
as estatísticas em torno do número de mulheres presentes nos cursos de
Filosoa, a ocupação deste espaço
somente através de esforços que se
tra
-
duzem em resistência, não representa um episódio particular isolado, e sim
constitui mais uma amostra de uma realidade na qual, às mulheres, o espa-
ço
da
losoa (e
da vida
pública/política)
ainda é
muitas vezes
inacessível.
Neste
sentido,
estas
reexões
consideram
a
ausência
das
mulheres
na Filosoa,
ausência
esta constatada
também
na dimensão
da
vida públi
-
ca/política. Parte do entendimento de que se faz necessário ampliar o leque
de investigações sobre fatores que perpetuam a exclusão das mulheres no
debate
losóco,
bem
como
sobre
a
inferiorização
que
as
mulheres
ain
-
da
sofrem
reetida
nos
desaos
enfrentados
na
inserção
na
vida
pública/
política,
considerando
que
os
fatores
que
têm
justicado
historicamente
a
inferiorização e subordinação das mulheres, são os mesmos que legitimam
a exclusão e a violência contra nós.
Partimos do pressuposto que o sistema patriarcal produziu uma
episteme geradora de valores que inferiorizam e subalternizam as mulhe-
res, fazendo com que elas próprias tornarem-se reféns da crença de infe-
rioridade e subalternidad
e reetidas em diversas
formas de dependência; e
que para que tais valores sejam alterados, mudando mentalidades, e assim
produzindo uma mudança epistêmica, é necessário perscrutar sua gênese e
os fatores que os fortalecem, desnaturalizando-os.
Em
termos
de
metodologia,
trata-se
de
uma
pesquisa
qualitativa,
bá
-
sica,
bibliográca
e
documental. Compreende
ser
este
o
papel
da
losoa
enquanto
área
que
produz
conceitos
e
que
se
ocupa
da
reexão
por
meio
do
exercício de um metapensamento
(TIBURI, 2018), assim como – e
princi
-
palmente
–
precisa
investigar
e
esclarecer
(desmiticar)
o
que
possibilita,
produz e perpetua formas de opressão, contribuindo para com a superação
do obscurantismo.
Espera-se,
como
resultados
destas pesquisas,
contribuir
para
a
des
-
041
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
miticação e
esclarecimentos do
que
seja o
patriarcado e
suas consequên
-
cias, visando o avanço das pautas feministas e de todo movimento que se
opõem as opressões e violência de gênero, visto que pensar
, escrever
, ler
e falar sobre, que valores tem se perpetuado com o patriarcado, é emanci-
pador às mulheres e aos homens, pois nos leva a desnaturalização de um
sistema que instituiu, por séculos, que metade da população humana seria
inferior
.
[...] toda vida humana nasceu de uma mulher e é isso que
nos une como espécie: todos nós passamos um período em
torno de quarenta luas nos desenvolvendo dentro do útero
de uma mulher (RICH, apud CLÍMACO, 2020).
A
Estória da nossa história não contada pelos homens
Os achados das investigações sobre o patriarcado e suas consequ-
ências
demonstram
que
não
estamos
diante
de
um
fenômeno
universal.
E
para responder à pergunta, se sempre foi assim?
As investigações são mul-
tidisciplinares.
V
amos encontrar em diferentes áreas, tais como na
Arte, na
Poesia,
na
Filosoa
e,
principalmente,
na Antropologia
e
na Arqueologia,
indícios de que houve grupos sociais que se organizaram de forma não pa
-
triarcal, nos quais pode ser captado o protagonismo das mulheres, seja em
organização matrilinear , matricêntricas ou matrifocais.
Estudos revelam
a existência
destes grupos
sociais em
períodos que
antecedem o que é considerado em nossa cultura como a história da civili-
zação, e correspondem ao que é geralmente considerado como pré-história.
Mas a arqueóloga Marija Gimbutas , que dedicou parte da sua vida inves-
14
14
-
A
matrilinearidade
é
aqui
compreendida
como
o
sistema
de
parentesco,
de
liação
através
do
qual
somente
a
as
-
cendência
(família) da
mãe
é
tida
em
consideração para
a
transmissão
do
nome, dos
benefícios
ou
do
status
de se
fazer
parte de
um clã
ou classe,
enquanto na
patrilinearidade a ascendência
considerada é
a paterna
(OLIVEIRA, 2018,
p. 319).
15 - Matricentricidade- Forma de or
ganização que tem como base fundamental a unidade matricêntrica,
que se congura
como
a
menor unidade
de parentesco
e como
uma menor
unidade autônoma
de produção,
cujos laços
são denidos
a
partir
da maternidade. Esta maternidade não se caracteriza apenas como a de caráter biológico, mas como parte da estrutura de
uma organização social que tem como base a ideologia que todos aqueles que estão inseridos em uma unidade matricên-
trica estão ligados por laços maternos (OLIVEIRA, 2018, p. 323).
16 - Matrifocalidade é
aqui compreendido como um conceito que designa
um grupo doméstico centrado na mãe,
sendo o
papel assumido pelo pai secundário (OLIVEIRA, 2018, p. 326).
17 -
V
er Documentário:
V
oice
of the
Goddess: Marija
Gimbutas. Documentário
sobre a
estreia mundial
do livro
de Marija
Gimbutas, Civilization of the Goddess. Produzido
e dirigido por Lollie Ragana para a Santa Monica
City TV
. Disponível
em:
https://www
.youtube.com/watch?v=-k34hXty4iw
. Acess em: 17 abr
. 2021.
15
16
17
042
Corpo, políticas e territorialidades
tigando e estudando organizações sociais nas quais, através de registros ar
-
queológicos,
foi
possível
identicar
formas de
organização
não
patriarcais,
não rearma a noção de pré-história, no sentido de um anacronismo.
Diferentemente
do
que
encontramos
na
literatura
convencional
hegemônica, Gimbutas denominou este período como “A
civilização da
Deusa”,
e
não
como
pré-história:
ideia
correspondente
a
um
tempo
que
antecede aquele consagrado enquanto o legítimo representante do início da
“civilização”.
Os
estudiosos
costumam
situar
as
origens
do
culto
da
Deusa
no
período
Paleolítico
(por
volta
de
100.000
a
10.000
a.C.),
também
chamado
“período
dos
caçadores/coletores”.
As
estátuas
da
Deusa
representada
como
uma
mulher
com
seios e nádegas pronunciadas – as chamadas “Vênus
Paleolíticas”
–
estão
entre
as
primeiras
representações
do divino que a humanidade elaborou.
Algumas dessas
imagens
datam
de
30.000
anos
atrás.
T
radicionalmente
vistas como ligadas a algum culto antigo de fertilidade,
elas foram reinterpretadas por Marija Gimbutas como
representações dos poderes do mundo geradores da vida,
precursoras muito antigas da Grande-Mãe que ainda será
reverenciada em épocas históricas (
OLIVEIRA,
2005,
p.
3)
.
A
leitura das considerações apresentadas por Marija Gimbutas,
quando discute a noção de civilização imposta por uma or
ganização que se
pauta por valores destrutivos, já que subordinação e exclusão são consequ-
ências de valores destrutivos, nos faz estabelecer relações com as noções
que colocam a mulher como alter
, em relação ao homem. Como apontou
Simone
de
Beauvoir
(2009),
a
mulher
é
o
outro
em
relação
ao
homem.
O que nos convida a repensar certezas que nos foram condicionadas, tais
como a universalidade do patriarcado e a subordinação da mulher
. Pode-
mos pensar sobre como, e por que, organizações sociais
que existiram por
muito mais tempo
do que o tempo demarcado
enquanto a “História ocial
–
patriarcal”,
são
ignoradas
ou
desconsideradas?
Como
questiona
Myara
(2021,
n.p.)
“[...]
se
a
história
do
patriarcado
tem
5000
anos,
temos
notícias
de
culturas
pré-histórias
possivelmente
matriarcais
que
datam
de
até
40000
a.e.c
(antes
de
era
comum).
Se
o
patriarcado
tem
5000,
a
civilização
da
deusa tem 40000”.
Rosalira Oliveira
(2005) destaca que
o protagonismo da
mulher e a
043
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
reverência
à
“grande
mãe”,
presente
no
Paleolítico,
já
estará
presente
no
que
é
conhecido
como
a
“revolução
agrícola”,
consolidando-se
no
perío
-
do
seguinte. As
pesquisadoras
Gimbutas
(1998)
e
Oliveira
(2005),
diante
do impressionante número de artefatos (esculturas, gravuras e outras ima-
gens)
simbolizando o
feminino,
interpretam que
há um
grande
prestígio do
feminino
no
Neolítico,
associando
poder
e
natureza
divinas.
Para
Gimbu
-
tas
(1998,
p.
67,
apud
OLIVEIRA,
2005,
p.
3),
“[...]
há
uma
única
linha
de desenvolvimento de um sistema religioso, desde o Paleolítico Superior
,
passando
pelo
Neolítico,
pelo
Calcolítico
e
pela
Idade
do
Cobre
baseado
em uma organização matrifocal”.
As pesquisas que apontam ter havido formas de organizações so
-
ciais não patriarcais detectaram, através do que indicam seus vestígios, que
estes grupos estabeleciam uma relação com a natureza mais sustentável,
pois concebiam o mundo natural e o mundo humano como interligados na
grande teia da vida, representado nada menos do que com o próprio corpo
da mulher: a mãe terra (OLIVEIRA, 2005).
Na área da arqueologia, é possível observarmos artefatos e
vestígios que sobreviveram dezenas de milhares de anos,
e que nos levam a especular acerca de uma constituição
social e comunitária entre homens e mulheres diferente da
que
se
congurou
na
civilização
patriarcal,
da
qual
somos
herdeiros involuntários.
As antigas sociedades matrifocais
não estavam, ao que tudo indica, posicionadas sobre
práticas
de
dominação,
acumulação
e
guerra
(MY
ARA,
2021, n.p.).
A
associação da mulher com a criação, a fecundidade, a abundância
e os ciclos da natureza parece se dá pela percepção imediata dos ciclos da
mulher
(juventude,
maturidade
e
envelhecimento),
pela
sexualidade,
e
pelo
processo de fecundar
, gerar e parir a vida. Parte dos vestígios encontrados
e estudados se constitui em esculturas, estatuetas, desenhos, e estes são
frequentemente simbolizados através do corpo da mulher
, demonstrando
reverência aos seus ciclos, reverenciando e valorizando tanto a vida como
a
morte;
e ao
poder
da
sexualidade e
da
fecundação
(seios fartos,
ancas lar
-
gas,
vulvas
salientes,
corpos
robustos e
fartos)
que,
para
Gimbutas
(1998,
54, apud OLIVEIRA, 2005, p. 3), constituem uma
[...]
representação
religiosa
-
a
reicação
da
Geradora
044
Corpo, políticas e territorialidades
da V
ida.
Aquelas partes do corpo que, aos nossos olhos,
parecem exageradas ou grotescas são as suas partes mais
importantes,
mágicas
e
sagradas;
a
fonte
visível
e
produtiva
da continuidade da vida em seus diversos aspectos e
funções.
V
ericam-se
incontáveis
registros
que
possibilitam
interpretar
a
existência de cultos e reverências às mulheres, reverenciando-as enquanto
portadoras
do poder
da
fecundação e
da
geração da
vida;
razão, provavel
-
mente, para
o estabelecimento
de uma
relação entre a
adoração da
Deusa e
a matrifocalidade. É neste sentido que muitos estudos se reportam a adora-
ção,
a
religião
ou,
a
civilização
-
da
Deusa,
ao
reportarem-se
às
explicações
destas sociedades não patriarcais, como é o caso de Gimbutas. T
rata-se de
um
precioso
estudo
arqueológico,
antropológico,
artístico,
losóco,
que
é multidisciplinar
.
O culto do divino feminino é um dos mais antigos que se
tem notícia. O primeiro elemento cultuado pelo homem
foi
a
T
erra.
E
a
T
erra,
dizem
os
mitos,
foi
gerada
por
ela mesma.
A
vida surgia da sua carne rasgada e jorrava
das
suas
profundezas.
Era
ela
que
produzia
os
frutos,
os
animais
e
o
próprio
homem.
Ela
era
a
mãe
de
todas
as
coisas
vivas
e
também
a
responsável
pela
morte.
Anal,
se a vida era
percebida como um “ab uterum”, um
emer
gir
do ventre da T
erra, a morte representava uma volta, um
regresso
“ad
uterum”,
para
que
um
novo
nascimento
pudesse acontecer
.
Assim ocorria com a semente, assim
também
com o
homem.
Os ciclos
de
morte e
renascimento;
criação
e
destruição;
observados
na
natureza,
eram
sentidos
como igualmente válidos para a trajetória do homem no
mundo. Para a humanidade do início dos tempos, não
havia separação entre o mundo humano e o mundo natural
e
todos
compartilhavam
o
mesmo
destino
como
lhos
da
T
erra (OLIVEIRA, 2005, p. 1).
Já
Oliveira
(2018,
p.
318)
estudando
a
obra
“T
he cultural unity of
Black Africa
– the domains of patriar
chy and of matriar
chy in classical an-
tiquity
” (1989)
de Cheik
Anta Diop,
identica no
continente africano
uma
organização matriarcal
que antecedeu o patriarcado que fora introduzido
apenas com a penetração do islamismo no continente e sem, no entanto,
penetrar tão profundamente na base do sistema matriarcal daquele lugar
.
045
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
A
pesquisadora, analisando o posicionamento de diversos autores
em relação ao estudo das formas de or
ganização social em diferentes cul-
turas,
percebe
(e
identica
tal
percepção
por
parte
dos
autores
estudados)
uma tendência à valorização das sociedades patriarcais e uma desquali-
cação
das
formas
de
or
ganização
matriarcais,
escrevendo
que
“[...]
os
mesmos defendem o processo que leva da organização matriarcal
à patriar-
cal como um progresso universal vivido pelas sociedades, como uma evo-
lução,
considerando
as
estruturas
sociais
matrilineares
como
retrógradas”
(OLIVEIRA, 2018, p. 322).
Mas
Oliveira
(2018,
p.
322)
explica
que,
para
Dio
existiram
orga
-
nizações sociais nas quais havia a presença tanto do matriarcado quanto
do patriarcado, o que demonstra que o patriarcado não é universal, mas
constitui características importantes de ser aprofundadas em função de seu
caráter de dominação, opressão e exclusão. O autor estudado pela pesqui-
sadora aqui citada sugere a existência de:
[...]
dois
“berços” de
desenvolvimento
humano,
que seriam
o do norte, berço setentrional, e o do sul, berço meridional,
tendo como ponto de divisão a bacia do Mediterrâneo.
O berço setentrional, por apresentar um caráter nômade
devido ao ambiente árido, estando ligado aos povos indo-
europeus,
englobando
a
Europa
mediterrânea
e
o
Oriente
Médio semita, foi favorável à organização patriarcal,
pois a mulher era vista como um fardo que o homem
carregava, tendo sua função reduzida à procriação. Devido
ao clima bastante rigoroso e ao solo gelado, a vida estava
em constante perigo e prolongou-se a dependência da
caça, pois a agricultura não pode se desenvolver
. Isso fez
também que o homem necessitasse usar muitas vestimentas
e
habitar
lugares
fechados.
Estas
características
teriam
sido responsáveis pelo desenvolvimento de hábitos de
competição, de conquista, práticas materialistas, um culto à
propriedade privada e uma visão intolerante em relação ao
outro. Fundaram-se sociedades patricêntricas, falocráticas,
tendo o lugar central ocupado pelo homem, que tiveram
uma agressividade herdada pelo modo de vida nômade,
que desencadeou os ideais de guerra, conquista e violência.
O homem assim desenvolve um sentimento de solidão
moral e material e uma posição individualista. Já o berço
meridional, que engloba a África, tendo como base de
046
Corpo, políticas e territorialidades
Esta
mudança de
mentalidade,
crenças e
valores
pode ser
identica
-
da, por exemplo, na formação do panteão grego . Como escreve Oliveira
(2005, p. 2),
desenvolvimento sociedades agrárias, devido à vegetação
existente, possibilitou o processo de sedentarização, tinha
a mulher como base de uma função central, pois era ela que
trabalhava na agricultura enquanto os homens caçavam,
sendo assim sociedades favoráveis à organização matriarcal.
As propriedades eram coletivas e a organização social
baseava-se em uma vida comunitária. Caracterizava-se por
ser uma sociedade uterocêntrica, pela policonjugalidade,
pela matricentricidade e por uma concepção solidária de
vida em
comunidade, o
que tornava possível
a xenolia
e a
percepção positiva da alteridade, pois o outro não era visto
como inimigo.
A
transformação dos valores que protagonizavam as mulheres, mui-
tas vezes em relação de igualdade com os homens, e a valorização da ci-
clicidade que levava a uma relação de respeito com a natureza, onde são
cultivados princípios como colaboração e solidariedade, passa a ocorrer
com o início do advento das or
ganizações patriarcais.
Em
algum
momento
da
história
humana,
de
acordo
com
as circunstâncias de produção, clima, relação entre tribos,
localização
geográca,
entre
outras,
iniciaram-se
processos
por meio dos quais o homem se estabeleceu como agente
social dominante dos corpos das crianças, das mulheres,
dos não brancos e não europeus, dos corpos dos animais e
do corpo da terra. O fetiche da dominação que se expressa
em todas as esferas da vida pública e privada é resultado
de uma cultura que se forjou sobre essas bases ideológicas,
marcadas
pelas
ações
violentas
e
brutalizantes
(MY
ARA,
2021, n.p.).
18
18 -
E estudar
como esta transformação
ocorre na
Grécia é importante,
posto a inuência
desta cultura na
cultura ociden
-
tal de forma mais ampla, decorrente das marcas coloniais.
[...] bem antes dos mitos clássicos tomarem forma e serem
escritos por Homero e Hesíodo – no século VII a.C. – já
havia uma rica tradição oral de formação de mitos. Muito
provavelmente,
estes
mitos
reetiam
o
resultado
do
processo de conquista da região da
Anatólia pelos indo-
europeus.
047
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Com advento do patriarcado teremos a decadência da mulher que
irá
impregnar
o
imaginário
(produzindo
valores),
através
das
transforma
-
ções ocorridas nas representações das mulheres nas diferentes narrativas:
de
Deusas,
livres
(não
monogâmicas),
responsáveis
pela
fertilidade,
gera
-
doras de vida, donas de seu corpo e de sua sexualidade, heroínas, escrito-
ras/poetas, passam a ser consideradas mulheres possessivas, invejosas e
ciumentas
(retratada
no
mito
de
Hera
ou
de
Medeia),
submissas,
depen
-
dentes
dos
homens,
histéricas,
perigosas,
demoníacas.
Considera
Myara
(2021, n.p.) que:
Inanna, entre outras, não são meramente criações idealizadas
de
beleza,
maldade,
loucura
etc.
Essas
mulheres,
deusas
e demônios, encarnam imagens socialmente construídas
do feminino, e expressam o psiquismo da cultura que
as forjou ou interpretou.
Ainda em nossa cultura essas
guras estão
presentes.
Uma mulher
que se
desfaz de
uma
relação e expressa sua ira acerca das injustiças sofridas é
comparada a Medeia, “vingativa, louca, com olhar de leoa
que
pariu”.
Uma
mulher
sexualmente
emancipada,
que
toma vários amantes, não só é bela como a “bela Helena de
T
róia”,
mas
também
compartilha
com
a
rainha
espartana
a
fama
de
“prostituta,
rameira
desaver
gonhada,
cadela”.
Mulheres sedutoras frequentemente são chamadas de
sereias, monstruosidade feminina que permeia diversas
culturas, ora na forma de peixe, ora na de pássaro, e que
desmembram e devoram os homens. Mulheres que tentam
fazer
ouvir
suas
vozes,
que
se
apresentam
rmemente
na
esfera pública, comportam-se, dizem, como “Cassandra,
a
louca!”,
alucinando
um
protagonismo
social
que
nunca
poderiam
ter
,
sonhando
“o
sonho
de
Cassandra”.
A
titulação
honrosa
de
“estrela da
manhã e
da noite”,
de antigas
deusas
como Inanna, Ishtar
,
Ashterah,
Afrodite e Vênus, tornou-
se a titulação do anjo caído na narrativa cristã, Lúcifer
, o
demônio.
T
orna-se fundamental investigar
, estudar e perscrutar essas narrati-
vas,
porque
elas
exercerão
grande
inuência
na
construção
de
um
imaginá
-
rio que produzirá e aceitará a inferiorização e subordinação das mulheres
como algo natural e necessário.
De
acordo
com
Lerner
(2019),
dados
históricos,
literários,
arqueo
-
lógicos, artísticos
e
losócos demonstram
que a
mentalidade
patriarcal é
048
Corpo, políticas e territorialidades
desenvolvida através de ideias, símbolos, metáforas e valores, através dos
quais é incorporada e tem sido sustentada, na civilização ocidental, a ideia
de que a dominação da mulher pelo homem é algo natural e necessário.
Rose
Muraro
(2000,
p.
35-36)
apresenta
um
exemplo
categórico
de
uma
destas
metáforas
que
exerce
grande
inuência
no
desenvolvimento
deste
imaginário e destes valores.
O capítulo
2 do
Gênesis é o
texto fundante
do patriarcado.
No
Gênesis,
Deus
tira
o
homem
da
lama,
e
a
mulher
da
costela de
Adão. Mas desde que Freud existe, já podemos
fazer uma outra leitura desse texto. Por um mecanismo
de defesa – o deslocamento -, pode-se ver que não é da
costela,
mas
do
ventre
de
Adão
que
Deus
tira
a
mulher
.
Pelo mecanismo de deslocamento, descreve-se uma
sociedade violenta por uma mais fraca, mais eufemística.
O inconsciente capta, mas o consciente rejeita. Quer dizer
,
o homem pare a primeira mulher e o parto primordial é do
homem. [...] e agora o parto, que era aquilo que imprimia
o caráter
misterioso, sagrado
à mulher
,
é desqualicado. A
mulher
, por ter ouvido a serpente, que era no matricentrismo
a sabedoria, o animal primordial, o animal do conhecimento,
é agora,
no patriarcado, a
sexualidade, o
demônio; induz o
homem
a
comer
o fruto
da árvore
do
conhecimento. E,
com
isso, ela se torna culpada pelo pecado original, que afaste
o homem de
Deus, e por
isso o homem só
recebe de Deus,
duas maldições [...]
Além da morte e do trabalho, a mulher
tem outras duas maldições, a primeira é o parto com dor
(nas sociedades primitivas, o parto era um trabalho pesado
do
corpo
em
estado
gasoso,
mas
não
era
doloroso).
E
também esta:
“E tu
te apaixonarás
por teu
marido, e por
aí
ele te
dominará”.
Aqui
o javista é
absolutamente diabólico
e absolutamente um gênio, [...] porque nos revela como a
mulher
ama
e
o
homem
domina
(MURARO,
2000,
pgs.
35-36).
19
19
-
Esse fenômeno
psicológico de
descolamento é
um mecanismo
de defesa
conhecido por
todos aqueles
que lidam
com
a psique humana e serve para revelar escondendo. T
irar da costela é menos violento que tirar do próprio ventre, mas, em
outras palavras, aponta para a mesma direção. O inconsciente entende, mas o consciente rejeita.
Agora, parir é ato que não
está mais ligado ao sagrado e é, antes, uma vulnerabilidade do que uma força.
A
mulher se inferioriza pelo próprio fato
de parir
, que outrora lhe assegurava grandeza.
A grandeza
agora pertence ao homem, que trabalha e domina a natureza. Já
não é mais o homem que inveja a mulher
.
Agora é a mulher que inveja o homem e é dependente dele. Carente, vulnerável,
seu desejo é
o centro de sua
punição. Ela passa a
se ver com os olhos
do homem, isto é,
sua identidade não está
mais nela
mesma, e
sim em outro.
O homem é
autônomo e a
mulher é
reexa. Daqui em
diante, como o
pobre se vê
com os
olhos
do rico,
a mulher
se vê através
do homem.
Ela ama e
por isso
ele a domina,
já que
o amor lhe
é interdito,
porque o afastou
de Deus e do Pai.
A
ele só restou o poder, a dominação (MURARO, 2000, p. 68).
049
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
[...] a maior parte do trabalho teórico do feminismo moderno,
desde Simone de Beauvoir até o presente, é a-histórica
e negligente em termos de conhecimento feminista. Isso
era compreensível no início da nova onda feminista,
quando o conhecimento sobre o passado das mulheres era
escasso, mas, na década de 1980, mesmo com a abundante
disponibilidade de excelentes trabalhos acadêmicos sobre
História das Mulheres, a distância entre conhecimento
histórico e critica feminista em outros campos persiste.
O que é uma episteme patriar
cal
e por
que precisa ser
superada?
É necessário um retorno ao passado, conhecer a história das mulhe-
res e compreender que sua condição atual tem sido forjada, e que pode ser
modicada.
Neste
sentido,
a
desnaturalização
do
patriarcado
será
propor
-
cional à apropriação da história das mulheres.
Para Lerner
(2019),
o silenciamento
das mulheres
pode
ser eviden
-
ciado quando não é encontrada a história das mulheres nas pautas das dis-
cussões que colocaram o questionamento em relação aos mecanismos de
opressão
de
gênero,
marcado
pelo
feminismo.
Escreve
Lerner
(2019,
p.
27)
que:
A
referida obra de Gerda Lerner
, “A
criação do patriarcado: his-
tória
da
opressão
das
mulheres
pelos
homens”,
publicada
em
inglês
em
1986,
“[...]
leitura
obrigatória
para
se
compreender
a
história
de
dominação
masculina
e
de
exclusão
das
mulheres”
(como
escreve
Lola
Aronovich,
no
prefácio
da obra),
só
vem
a
ser
traduzida
para o
português
33
anos
de
-
pois.
As obras de Marija Gimbutas, arqueóloga aqui citada, e que apresenta
constatações imprescindíveis para a fundamentação de que houve socieda-
des matricêntricas, não patriarcais, ainda não contam com tradução para a
língua portuguesa.
Daí
a
importância
da
investigação,
da
leitura
e
da
conversação
sobre
este sistema que tem legitimado a exclusão das mulheres, a saber: o patriar
-
cado, como forma de desnaturalizar sua existência e propiciar a consciência
da existência de um sistema estrutural que ainda mantém uma hierarquia
excludente na sociedade, porque mesmo diante de muitos avanços decor
-
rentes das conquistas feministas, ainda vivemos sob a égide do sistema
patriarcal que exclui e provoca a morte, simbólica e concreta das mulheres.
050
Corpo, políticas e territorialidades
De
acordo
com
T
iburi
(2018,
p.
59),
“[...]
patriarcado
é
um
nome
estranho para muitas pessoas que consideram natural a ordem existente.
Ele
representa
a
estrutura
que
organiza
a
sociedade,
favorecendo
uns
e
obrigando outros a se submeterem ao grande favorecido que ele é, sob pena
de
violência e
morte”. T
rata-se
de uma
estrutura
que
foi criada
para
forjar
e manter valores que colocam os homens enquanto seres superiores em
relação às
mulheres. Para
a lósofa,
“da mesma
maneira que
o capitalismo
e o racismo, o machismo é uma ideologia cujo único objetivo é a opressão
e a permanência do atual cenário de submissão”.
O patriarcado se estabelece enquanto episteme, quando se pode ve-
ricar
que
ele
se
constitui
e
constitui
na/a
ideia
de
que
as
mulheres
sejam
inferiores.
Ideia
esta
que
desencadeia
valores
com
os
quais
justicam-se,
para
quem
assim
pensa,
que
as
mulheres
recebam
salários
inferiores;
que
o trabalho doméstico seja naturalmente tarefa das mulheres e que não seja
considerado
trabalho;
que
as
mulheres
não
sejam
autônomas
em
relação
aos seus corpos (que seus corpos sejam sistematicamente invadidos e vio-
lentados),
entre
outras
ideias
misóginas,
excludentes
e
justicadoras
de
toda sorte de opressões.
Isto se revela na prática quando vemos que a desigualdade salarial
entre
homens
e
mulheres
persiste;
quando
ainda
podem
se
vericar
de
-
sigualdades promovidas no interior dos núcleos familiares, mantendo as
hierarquias
de
papéis;
ou
quando vemos
a
reincidência
nos crimes
de
femi
-
nicídio que desaam leis e políticas públicas criadas para o enfrentamento
destas violências. T
rata-se de ideias que produzem valores e crenças arrai-
gadas há tanto tempo, produzindo um imaginário coletivo, que acabam por
naturalizar
e
legitimar
algo
como
“verdade”.
E
quando
coletivos
produzem
“verdades”, segundo Brandão e Crema (1991), estamos diante
de paradig
-
mas os quais dialeticamente se formam e formulam epistemes.
A
episteme
patriarcal,
construída
historicamente,
desaa
as
atuais
iniciativas de enfrentamento aos mecanismos de opressões e violências de
gênero. É neste sentido que tratamos, neste ensaio, de valores patriarcais
nos referindo a crenças e ideias, que valorizam e por isso legitimam a no-
ção de que as mulheres são inferiores aos homens e por isso subordinadas
e dependentes. É tão arraigado este imaginário que as próprias mulheres
muitas vezes acreditam nesta inferioridade, subordinação e dependência,
20
20
-
Disponível
em:
http://www
.aescotilha.com.br/literatura/contracapa/entrevista-marcia-tiburi/
.
Acesso
em:
15
abr
.
2021.
051
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
o que as fazem reféns, pois valores são inscritos no psiquismo, sendo ne-
cessário
um
grande
trabalho
de
esclarecimento (e
por
vezes
psicanalítico)
para
que
sejam
dissolvidos
e
modicados. Aronovich
prefaciando
o
livro
de Lerner (2019, p. 21) escreve:
O patriarcado mantém e sustenta a dominação masculina,
baseando-se em instituições como a família, as religiões,
a escola e as leis. São ideologias que nos ensinam que as
mulheres são naturalmente inferiores. Foi, por exemplo,
por meio do patriarcado que se estabeleceu que o trabalho
doméstico deve ser exercido por mulheres e que não deve
ser remunerado, sequer reconhecido como trabalho. T
rata-
se de algo visto de modo tão natural e instintivo, que muitas
e muitos de nós sequer nos damos conta. Portanto, ler e
falar sobre o patriarcado é desnaturalizar nossa existência.
Construindo imaginário
Este
imaginário
de
inferioridade
que
gera
dependência
nas
mulheres
e
provoca a
sensação
de
superioridade justicadora
de
violência
por parte
dos homens, tem possibilitado e legitimado uma história de opressão que é
prejudicial a todas as pessoas, comprometendo os valores de uma cultura.
As opressões estruturais contra as mulheres tem sido um tema cada vez
mais pesquisado e debatido em diversas áreas do conhecimento, por se
tratar de uma questão de extrema necessidade face aos números cada vez
mais alarmantes de violência contra as mulheres e violência de gênero, que
se constituem, por sua vez, violação da dignidade humana.
A
violência contra as mulheres se mostra imediatamente em sua
face mais marcadamente brutal quando relevada por meio da violência fí-
sica e do feminicídio. Mas a violência contra as mulheres que ocorre de
forma silenciosa, cujas marcas são psicológicas e simbólicas, é igualmente
perversa
e
perigosa;
por
ser
invisível,
ou
seja,
por
necessitar
de
mediação
para
ser deagrada,
é
merecedora de
uma
atenção especial;
principalmente
por quê: as violências simbólica e psicológica operam a partir das crenças
e
valores
que
a justicam,
e
que
aprisionam e
subordinam
a própria
vítima.
Escreve
Aronovich, ainda no prefácio da obra de Lerner (2019, p. 21):
052
Corpo, políticas e territorialidades
Lerner nos ensina que o sistema patriarcal só funciona
com a cooperação das mulheres, adquirida por intermédio
da doutrinação, privação da educação, da negação das
mulheres sobre sua história, da divisão das mulheres
entre respeitáveis e não respeitáveis, da coerção, da
discriminação no acesso a recursos econômicos e poder
político, e da recompensa de privilégios de classe dada às
mulheres que se conformam.
As mulheres participam no
processo de sua subordinação porque internalizam a ideia
de sua inferioridade.
Por mais que pareça paradoxal o fato de as pesquisas e as discussões
sobre o preconceito, a exclusão, a violência e os diversos mecanismos de
opressões contra as mulheres aumentarem, de termos avançado em rela-
ção a formulação de um aparato legal e de políticas públicas de proteção
e enfrentamento à violência contra as mulheres, sem que os dados des-
ta
violência
diminuam,
tal
ideia
de
paradoxo
pode
ser
equivocada;
o
que
evidencia-se é o aumento da visibilidade de um fato que fora acobertado
por séculos, visto que o preconceito, a exclusão, a violência e os diversos
mecanismos de opressões contra as mulheres tem sido legitimados histo-
ricamente, ainda que os valores patriarcais, que legitimam tais opressões
não sejam universais.
Somente nas últimas décadas, com o avanço das pautas feministas,
que estes
mecanismos opressores têm
sido deagrados e
questionados, co
-
locando este fenômeno, que é político-epistemológico e ético, como foco
da discussão de gênero, tratando-os enquanto opressões de gênero (MU-
RARO,
2000).
E
é
com
base
nos
avanços
conquistados,
por
meio
da
in
-
formação e de mecanismos que visam conscientização e transformação a
nível psicológico, que
armamos ser a perscrutação deste próprio
material
que revelará tratar
-se – suas formulações- do produto de um desenvolvi-
mento histórico e não natural ou biológico. Faz-se necessário esclarecer
que a inferiorização e subordinação das mulheres e a demonização do fe-
minino, não são fenômenos imutáveis. Se nós construímos tal mentalidade,
podemos desconstrui-la, como arma Muraro (2000, p. 126):
[...] é de dentro da cultura ocidental que, dois séculos mais
tarde,
emerge
um
movimento
de
resistência.
Nas
culturas
orientais, em que não existiram textos com a violência
de O martelo, as mulheres ainda são torturadas em seu
053
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
corpo,
maciçamente
no
Islã, na
Índia
e
até
na
China,
onde
a
Revolução
Comunista não
foi
suciente
para
erradicar
o
trabalho escravo de homens e mulheres. Foi no Ocidente
que,
já
no
século
XIX,
as
primeiras
sufragistas
começam
a reivindicar os primeiros direitos de cidadania para as
mulheres
e,
na
segunda
metade
do
século
XX,
fabrica-se
uma
Revolução
das
Mentalidades
que
questiona
não
só
a sexualidade reprimida como também a própria base do
sistema dominante.
A
permanência destes valores, ainda atualmente, demonstra que es-
tamos diante da urgente necessidade de mudanças de mentalidades, visto
que
estes
valores
patriarcais
se cristalizaram
de
forma estrutural;
o
que
sig
-
nica dizer
que perpassa
diferentes âmbitos da
vida, que
têm sido
perpetu
-
ados historicamente e, principalmente, trata-se de crenças, ideias e valores
que são desenvolvidos, aprendidos, ensinados e disseminados.
Como podemos ver
, esta mentalidade tem sido construída historica-
mente
através
das
religiões,
dos
mitos
e
inclusive
por
lósofos,
com
suas
losoas
que
inuenciam
modos
de
pensar
quando
apresentam
argumen
-
tos
“racionais”
(na
losoa),
ou
apelam
às
crenças
(nas
religiões),
ou
ainda
produzem
imaginários (no
caso
da
mitologia),
defendendo a
inferioridade
das mulheres, e com isso construído – estruturalmente – mentalidades que
aceitam, legitimam e perpetuam a ideia de que mulheres sejam inferiores,
como
analisa
Carvalho,
no
livro Mulheres
e
a
Filosoa
(2002),
referindo
-
-se à
losoa de Immanuel Kant,
lósofo que exerce
grande inuência no
pensamento ocidental:
[...]
a
posição
discriminatória
de
Kant
em
relação
às
mulheres não é apenas implícita ou deduzida a partir da sua
preocupação em suprimir os aspectos tidos como contrários
à razão – que são aqueles culturalmente vinculados ao
feminino
–
do
âmbito
da
moral.
Kant
se
ocupa
do
tema
da mulher e, ao manifestar seu ponto de vista a respeito
das características do sexo feminino, posiciona-se como
defensor explicito da tese da inferioridade essencial
feminina, especialmente revelada em uma suposta
inaptidão natural para tornar-se agente moral.
Assim,
perfeitamente coerente com sua concepção da moralidade
como reino da razão pura – mas incoerente com sua
perspectiva
universalista
-,
Kant
excluirá
a
metade
feminina
054
Corpo, políticas e territorialidades
da humanidade do domínio da moral por não reconhecer
que as mulheres possuem os atributos necessários para
serem reconhecidas como sujeitos morais: a natureza das
mulheres seria inadequada para efetuar a devida supressão
dos
aspectos
(inferiores)
sensíveis
que,
segundo
Kant,
comprometem o agir
moral autêntico (CAR
V
ALHO, 2002,
p. 51).
A
misoginia extraída de um pensamento como este, assim como
também representada em passagens apresentadas anteriormente, constitui-
-se a gênese e a perpetuação desta mentalidade e destes valores, ou seja, a
origem e a manutenção da opressão das mulheres perpetrada pelos homens.
Ao buscar
nestas narrativas
religiosas, mitológicas e
losócas, in
-
dícios da gênese e perpetuação destes valores patriarcais, podemos iden-
ticar
que
há
uma
cisão
que
caracteriza
o
pensamento
ocidental
de
forma
predominante, que separa razão de sentimentos, emoções e sensibilidade,
produzindo uma dicotomia entre corpo e pensamento e rebaixando sensu-
alidade e sexualidade como
percebido, por exemplo, na losoa de
Platão
para quem, a sensualidade mora em um lugar inferior em relação ao lugar
em que mora a razão. Curioso perceber que estas mesmas narrativas des-
crevem, sistematicamente, as mulheres enquanto seres emocionais, sen-
síveis,
e
perigosamente
sensuais.
Para
não
poucos
lósofos,
incapazes
de
pensamentos racionais.
O estudo destas narrativas descortina pistas de como são desenvol-
vidos os valores patriarcais, quando nos deparamos diante de um modelo
epistêmico que suporta, contém e contempla mecanismos de hegemonia
e dominação produtores de inferioridade e subordinação.
Apresentamos a
seguir alguns fragmentos das elaborações destes estudos que demonstram
como esta cisão inuenciará valores e produzirá uma episteme patriarcal.
Conforme
Muraro
(2000,
p.
14),
com
a
articulação
da
categoria
“gê
-
nero”
para
mostrar
a
discriminação
das
mulheres
em
todos
os
níveis,
no
econômico, no político, no social etc., passou-se a elaborar uma epistemo-
logia
questionando as
bases da
Filosoa platônica,
cartesiana, kantiana,
ou
pode-se dizer
,
as bases
da Filosoa
ocidental predominantemente
baseada
na objetividade, na abstração e nas generalizações.
055
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
As
investigações da
lósofa
australiana
Robin
Schott
(1996),
con
-
guram-se
importante
base
para
o
questionamento
de
um
modelo
epis
-
têmico que contém mecanismos de hegemonia e dominação produtores
de exclusões, assim como lança luzes para a formulação de uma crítica
consistente ao
patriarcado enquanto episteme.
A
lósofa,
estudando a obra
de
Immanuel
Kant,
evidencia
que
a
objetividade
kantiana
tem
origens
no
ascetismo
losóco
e
religioso
que
opera
a
partir
da
negação
do
corpo
e
da sensualidade, assim como demais aspectos tais como emoções, senti-
mentos e
sexualidade (sintetizados
na Filosoa
da autora enquanto
“eros”)
evidenciando que “[...] a rejeição dos aspectos de eros resulta na rejeição
às mulheres” (SCHOTT
, 1996, p. 8).
Com Schott temos uma Filosoa
que
se ocupa em aprofundar analiticamente as bases de um modelo de conheci-
mento que se pretende exclusivamente racional e objetivo, para extrairmos
de tais análises, os prejuízos advindos deste modelo que se torna hegemô-
nico e totalizante.
Segundo
Schott
(1996)
a
losoa
de
Kant
pode
constituir
um
estudo
representativo das bases sobre o que é considerado fundamento para o co-
nhecimento
na
visão
da
losoa
ocidental,
porque
este
lósofo
exerce
uma
grande
inuência
no
que
tem
sido
considerado
ser
a
losoa
ocidental.
E
a
losoa
kantiana
promove
uma
cisão
entre
eros
e
cognição,
por
isso
o
recorte a partir das ideias deste lósofo.
Resulta
que
Kant,
herdeiro
da
tradição
losóca
e
religiosa
ascéti
-
ca, marca sua losoa com a supressão da dimensão
erótica da existência,
negando ou negligenciando seus aspectos (emoção, desejo, sexualidade,
sensibilidade)
que
são
vistos
como
ameaças
à
busca
de
pureza
racional
e espiritual exigindo, consequentemente, o controle racional. (SCHOTT
,
1996, p. 10). Daí a oposição entre eros e cognição que ocasiona a negação
e hostilidade para com a sensualidade e os outros aspectos de eros na Fi-
losoa
kantiana
(na
formulação
do
seu
conceito
de
objetividade)
que,
na
perspectiva
de
Schott
(1996,
p.
8),
vinculou-se
enquanto
produto
produtora
do repúdio às mulheres vistas enquanto seres sensuais, emotivas, e por
isso, incapazes
de pensamento
racional (puro),
com o ar
gumento de
que as
mulheres,
sendo
criaturas
sensuais
não
seriam
capazes
de
losofar;
razão
pela qual
as mulheres não
podiam ocupar lugares
na Filosoa,
visto que o
conhecimento
necessário
para
o
losofar
precisaria
ser
isento
de
interferên
-
21
21 - Analisamos neste estudo
o livro “Eros
de os processos
cognitivos: uma crítica
da objetividade
em losoa” da
ló
-
sofa Robin Schott.
056
Corpo, políticas e territorialidades
cias sensuais e sentimentais, típicas das mulheres. Consequentemente, as
mulheres não estariam aptas a participarem da vida pública/política, como
se pode extrair desta lamentável passagem escrita por Kant (1993, p. 48):
O estudo laborioso ou a especulação penosa, mesmo que
uma mulher nisso se destaque, sufocam os traços não
obstante dela façam, por sua singularidade, objeto de uma
fria admiração, ao mesmo tempo enfraquecem os estímulos
por meio dos quais exerce seu grande poder sobre o outro
sexo.
A
uma mulher que tenha a cabeça entulhada de grego,
como
a
senhora
Dacier
,
ou
que
trave
disputas
profundas
sobre mecânica como a marquesa de Châtelet só pode
mesmo faltar uma barba, pois com esta talvez consigam
exprimir melhor o ar de profundidade a que aspiram.
Entretanto,
como
identicou
Schott
(1996),
esta
cisão
entre
cog
-
nição e aspectos ligados a eros não é condição natural e necessária para
o conhecimento, mas sim acarretou uma supressão da dimensão erótica
da
existência,
com
consequências
importantes,
uma
vez
que
a
Filosoa
kantiana
se
tornou
paradigmática
para
os
modos
de
ver
da
modernidade
relativos ao conhecimento, assim como inuencia o pensamento
ocidental
de forma mais ampla.
As mar
cas de uma história mal contada
Em
pesquisa
realizada
anteriormente
(COELHO,
201
1)
concluiu
-
-se, de forma análoga, que o modelo epistemológico que temos privile-
giado no ocidente caracterizado por uma dicotomia entre razão, por um
lado,
e
todos
os
aspectos
que
Schott
(1996)
atribui
a
eros,
de
outro
lado,
se constitui obstáculo à ética da alteridade por produzir dissociações que
resultam, consequentemente, na dominação do homem em relação à na-
tureza,
exacerbando
o
antropocentrismo;
do
homem
em
relação
à
mulher
,
congurando
o
machismo
–
lho
do
patriarcado;
do
homem
branco
em
relação a população negra e indígena, resultando no racismo e na domina-
ção
religiosa
que
extermina
pessoas
face
a
um
“eu
dominante”
e
“outros
oprimidos”.
Como aponta
Schott (1996), há no
ocidente um modelo de
objetivi
-
dade no qual a teoria de eros, ou os aspectos relacionados a eros, aparecem
057
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
como
losocamente
insignicantes
ou
prejudiciais
por
serem
suposta
-
mente poluentes, ou seja, prejudiciais, à busca de uma pureza racional e
espiritual
idealizada
pelas
tradições
losóca
e
religiosa
ascéticas.
E
este
modelo
de objetividade
que
opera a
partir
desta cisão,
inuencia
a cultura
ocidental
a partir
das epistemes
que
legitimam esta
cultura
. Daí
a
busca de
um controle racional que irá demarcar o paradigma moderno, atribuindo
às
mulheres
a
incapacidade
deste
controle
racional,
justicando
e
natura
-
lizando uma suposta inferioridade. T
al interpretação será decisiva para a
construção de uma racionalidade e, consequentemente, o desenvolvimento
de
valores,
com
base
na
pureza;
noção
que
será
presente
em
boa
parte
da
losoa
até
a
modernidade
conferindo
inuências
mais
amplas,
e
que
se
-
rão fundamentais para a construção e consolidação de uma episteme e dos
valores patriarcais.
É, portanto, no patriarcado – enquanto sistema social/cultural, polí-
tico e econômico – que se encontra a gênese e a perpetuação destes valores
e desta mentalidade: a origem e a manutenção da opressão das mulheres
perpetrada
pelos
homens.
E
estes
valores,
esta
mentalidade,
ou
seja,
esta
episteme
tem
desaado
os
mecanismos que
têm
sido
criados para
o
enfren
-
tamento das diversas formas de exclusão das mulheres que é, juntamente
com outras, uma forma de violência.
A
criação de leis e de políticas públicas de enfrentamento à vio-
lência
de
gênero
é
fundamental;
mas
serão
sempre
mais
formais
do
que
materializadas, enquanto persistir os valores e a mentalidade patriarcal que
move política, economia e estrutura social. Para que estas leis e políticas
sejam efetivadas é necessário, portanto, que haja a mudança de valores que
somente será possível a partir da superação do patriarcado que é, em si, a
mentalidade
que
gera
o
problema,
conforme
aponta
o
relatório
da
ONU
Mulheres quando inclui, enquanto mecanismo de superação das opressões
de gênero, a necessidade de conscientização.
A
mudança de mentalidade
patriarcal, consiste na possibilidade desta conscientização sobre o arbítrio
e a irracionalidade que encerra a inferiorização das mulheres, assim como
evidencia
a
contradição
de
base
presente,
quando
lósofos
tentam
funda
-
mentar esta inferiorização.
A
superação
do
patriarcado
signica
a
desnaturalização
da
inferio
-
ridade de um ser humano que constitui mais da metade da população hu-
22
22 - Importante destacar que esta inferência não arma uma única inuência à cultura ocidental.
23 - Relatório ONU Mulheres. Disponível em:
https://www
.onumulheres.org.br/.
Acesso em: 12 abr
. 2021
23
058
Corpo, políticas e territorialidades
mana, assim como a superação de um sistema estrutural que mantem uma
hierarquia hegemônica produtora de desigualdade, exclusão e a morte das
mulheres, como revelaram novos dados da Organização
Mundial da Saúde
(OMS) e parceiros, em
relação à sistemática violência contra as
mulheres.
Este último relatório citado apresenta que
[...] ao longo da vida, uma em cada três mulheres, cerca de
736
milhões,
é
submetida
à
violência
física
ou
sexual
por
parte de seu parceiro ou violência sexual por parte de um
não parceiro - um número que permaneceu praticamente
inalterado na última década.
24
- Fonte:
Organização Mundial
da
Saúde (OMS).
Disponível
em: https://www
.paho.org/pt/noticias/9-3-2021-devasta
-
doramente-generalizada-1-em-cada-3-mulheres-em-todo-mundo-sofre-violencia.
Acesso em: 12 abr
. 2021.
25 - V
ejam que a viuvez passa a identicar a mulher
. Ela não é uma mulher; ela é uma viúva.
24
Associada a esta informação, importante destaque faz Lerner quan-
do ressalta que “[...] existem mulheres que vivem em países nos quais o
estupro
no
casamento
não é
crime”
(LERNER,
2019, p.
21).
E como
lemos
nesta mesma obra, na mesma página, apesar de que os maiores índices de
violência contra as mulheres ocorrem dentro de suas próprias casas, vio-
lência
praticada
por
parte
daqueles
a
quem
se
deveria
conar
,
“[...]
ainda
enfatiza-se a ideia que o ambiente doméstico é onde a mulher está prote-
gida”, justamente para
perpetuar as bases mais
referenciais do sistema
pa
-
triarcal que
são o
casamento e
um modelo
especíco de
família, já
que tais
bases se constituem, por excelência, o mecanismo de opressão que opera a
partir da dominação da sexualidade das mulheres.
É
possível
identicar
a
presença
de
valores
patriarcais
de
depen
-
dência, inferioridade e subordinação em mulheres de diferentes classes so-
ciais, manifestando-se através de práticas que se distinguem em cada uma
destas condições socioeconômicas. Quando mulheres que, face ao sofri-
mento da violência doméstica, e a vulnerabilidade socioeconômica, encon-
tram
diculdades
de
afastarem-se
do
agressor
por
medo
de
não
terem
como
se
sustentar
ou
sustentar
seus
lhos
e
suas
lhas;
quando
mulheres
que,
mesmo
empoderadas
nanceira
e
intelectualmente
se
mantém
reféns
de
relacionamentos
abusivos
em
função
de
uma
dependência
emocional;
ca
-
sos de mulheres que jamais tiveram coragem de terminar um casamento de
30, 40,
50 anos
que as
oprimiam, e
ao se
tornarem viúvas
, se
tornam, nas
palavras de Clarissa Pinkola Estés (1994) “esfomeadas”,
não conseguindo
25
059
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
imaginar suas vidas sem a presença de um homem, razão porque acabam
por tornarem-se reféns de toda sorte de abusos em diversas tentativas de
relacionamento, demonstrando o aprisionamento à estes valores que lhes
ensinou que o valor de uma mulher é medido na relação com um homem.
Estes
valores
de
inferioridade,
dependência,
subordinação
tornam
-
-se verdades para muitas mulheres e passam a pautar suas vidas. Como diz
Aronovich (2019) “[...]
trata-se de algo visto de
modo tão natural e instin
-
tivo, que muitas e muitos de nós sequer nos damos conta”.
Diante
da
constatação
destes
mecanismos de
inferiorização
que
re
-
sultam em exclusão e opressão, iniciam-se movimentos de contestação a
eles. T
odavia, a pressão para a manutenção da alienação é tão grande, que
se erguem vozes em defesa da manutenção do patriarcado, por parte dos
homens, mas também por parte de mulheres que, encontrando-se reféns
deste modelo, gritam que a luta pela emancipação das mulheres e pelo
enfrentamento das opressões e violência representa uma tentativa de aca-
bar com
a
família e
com
um modelo
social supostamente
benéco
para as
mulheres.
A
busca pela superação deste modelo opressor e violento é des-
qualicado
pejorativamente
quando
atribuído
a
mulheres
“mal-amadas”:
argumento
estruturado
justamente
na
desqualicação
da
mulher
.
Apelo
que
toca um sistema emocional afetado justamente pelos valores desta lógica
patriarcal,
promovendo
sua
manutenção,
o
que
reete
estarmos
diante
de
uma episteme que precisa ser alterada.
Como salienta Lola
Aronovich, “[...] faz sentido que o sistema de-
monize
quem
luta
contra
ele”.
E
acrescento:
assim
como
é
demonizada
e
desqualicada
a
losoa.
Diz
a
prefaciadora
do
livro
de
Lerner
,
“[...]
tal
-
vez, quando um sistema como o patriarcado for superado, o feminismo não
será
mais
necessário”.
Até
lá,
o
patriarcado
insistirá
em
fazer
da
palavra
“feminismo” um
palavrão.
E
as mulheres
continuarão
a pagar
o
preço das
decisões tomadas quase que exclusivamente por homens em nossa socie-
dade (ARONOVICH, 2019).
Considerações nais
Considerando
o que
foi
apresentado,
armamos
a relevância
da
in
-
vestigação sobre a episteme e os valores patriarcais, na medida em que
estudar o patriarcado enquanto episteme geradora de opressões contra as
mulheres,
leva
ao
estudo
da
História
das
Mulheres,
deagrando
uma
his
-
060
Corpo, políticas e territorialidades
tória de exclusão, de apagamentos, de sabotagens, de desvalorizações, que
prejudica a todos, todas e todes, comprometendo a dimensão de humani-
dade em nós.
Nem
sempre,
e
nem
em
todas
as
culturas
a
organização social
fora
regida pelo sistema patriarcal, como esclarecemos. O que nos possibilita
compreender que as opressões de gênero, embora sejam antigas e estru-
turais, são desencadeadas e perpetuadas em função deste fenômeno que é
social, econômico e cultural, que é o sistema patriarcal, ou, o patriarcado,
e que assim como
foi colocado em curso consolidando-se, pode
se modi
-
car
.
T
rata-se de um esforço
multidisciplinar; envolve os
campos losóco,
artístico, político, jurídico, psicológico, sociológico, econômico, antropo-
lógico, mitológico e, como não poderia deixar de ser
, o campo da educação
também, posto que ideias, valores, e imaginários são construídos e apren-
didos. O que os tornam passíveis de serem desconstruídos e modicados.
A
manutenção de uma mentalidade que aceita e sustenta opressões
só é possível, a partir do apagamento das mulheres e de suas lutas e con-
quistas.
A
manutenção desta mentalidade patriarcal é a negação do prota-
gonismo das mulheres. Por esta razão, é de extrema relevância conhecer
a História das Mulheres e com ela, a história do patriarcado. Conhecer a
história para saber que nem sempre as sociedades foram dominadas pelos
homens. Entender como o patriarcado opera, a
partir de uma episteme que
gera
valores,
e
que
valores
são
estes.
Entender
que
este
sistema
tem
um
início e por isto pode ter um m.
Este
ensaio visa
contribuir
para que
esta
história
seja revelada
com
a intenção de provocar a consciência em relação a este contexto, visando
mudanças de mentalidades e consequentemente de valores. São as análises
destas narrativas que desvelam o caráter histórico e não natural ou bioló-
gico
da suposta
inferioridade
das mulheres.
Daí
a importância
de
que seja
repetidamente esclarecido que este fenômeno não é imutável. Se nós cons-
truímos tal mentalidade, podemos desconstrui-la.
A
superação do patriarcado é importante não só para as mulheres,
pois uma sociedade que vive à base de opressões, é uma sociedade adoeci-
da, prejudicial a
toda a humanidade. Desmisticar esta
ideia e esclarecer o
que seja o patriarcado e suas consequências torna-se, portanto, fundamen-
tal para o avanço das pautas feministas e de todo movimento que se opõem
às
opressões
e
violência.
Como
escreve
Lerner
(2019,
p.
21),
“[...]
ler
e
falar sobre o patriarcado é desnaturalizar nossa existência”.
061
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
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063
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
A
As vozes sagradas das
cantautoras, sacerdotisas e
xamãs de Abya Yala
Laila Rosa
065
26
26 -
Adriana Gabriela Santos T
eixeira (2016) defende um sagrado feminino nos termos amefricanos de Lélia Gonzalez
(1988).
Una payasa revolucionaria.
Hace lo que le da ganas.
Una payasa de la brujería,
De la guianza.
Que sube la montaña en la madrugada.
Que canta,
Que piensa,
Que siente.
Que duerme y sueña.
Que no lo sabe,
Pero que lo intuye.
Y quando despierta,
Quema los papeles para el sol.
Es La Loba.
La que sabe,
La que sangra.
Y sigue.
Dando pasos
Por el filo de su memoria.
“Los pasos que vienen de lejos”.
Pueden pasar cerca del precipicio.
Alice
Alves, Deise Lucy
, Laila Rosa e
V
ero-
nica Zamudio. Dedicado ao Dia da “Culminación
de la Revolución Mexicana” e o Dia da Consci-
ência Negra. San Cristóbal de Las Casas, Chiapas,
México (20/1
1/2016).
066
Corpo, políticas e territorialidades
*Respiro*
Abrindo os trabalhos:
salve o sagrado feminino amefricana de
Abya Yala em poesia!
“Se le trepó la payasa”
La mujer de las aguas
Y de los vientos.
Que le llama siempre
A su nahual.
La árbol sagrada
Y la belleza secreta.
Que es ella misma.
De los misterios femeninos
De los misterios de la Tierra Madre.
Feminista,
Abya Yala,
Chamula,
Tsotsil,
Tseltal,
Y tojolabal.
Comandanta Ramona,
Maria Sabina,
Sor Juana Inés de La Cruz,
Tonatzin
Nuestra Señora de Guadalupe,
Diadorim,
Dandara,
Zeferina,
Anastácia,
Icamiaba.
Feminino Transgressor.
Colores de Frida Khalo.
La falda se serpientes de Coatlicue.
Um (en)canto para curar
a minha alma-corpa-voz
A
água tem poder de cura na cultura indígena. Muitos
rituais acontecem perto do rio. Quando a criança nasce, as
mulheres
mais
velhas
trazem
echas
e
essas
so
medidas
conforme o tamanho da perna da criança, cortam e em
seguida
vo
at
o
rio
e
soltam
na
gua
corrente. Acredita-
se que esse ritual é para que a criança tenha agilidade nas
067
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
pernas
para correr
e tambm
para
que as
pernas no
quem
tortas,
assim
contou-me
minha
me Assunta.
Segundo
ela
passei por esse ritual na aldeia T
ikuna Belém do Solimões
nos primeiros dias de vida. Outro ritual usado na época que
nasci era
a defumao
com ervas,
breus, cascas
de rvores
para espantar espíritos ruins de perto da criança. Banhos
serenados com várias folhas de plantas eram utilizados
para afugentar doenças (KAMBEBA, 2020, p. 13).
Desde
quando
iniciei
os
estudos
do
Y
oga,
meditao
e
xamanismo
mais profundamente há alguns anos, bem como, retomando a prática da
dança como algo imprescindível a minha existência, compreendo que fa-
lar/viver
cartograas do
corpo
se comprometer
ocupar este
corpo-templo
ou “corpo-território-espírito” como nos convocam Lorena Cabnal (2010)
e
a
Marcha
das
Mulheres
Indígenas
(2019).
Ento,
a
minha
alma
trouxe
poesia para além da dor
. Uma consciência prânica que elevou meu ser em
estado de plenitude cósmica, espiritual, política – uma sabedoria conectada
à minha essência de luz que me sussurrou no meio das matas verdes rodea-
das por rios de guas transbordantes, ser das guas como lha de
Y
emanj
abençoada por Oxum e Ewá que sou:
Alma:
você sabia que tudo isso que eu te trago e que sei que te toca,
sobre
o
que
você
quer
realmente
falar
,
rezar
,
cantar
,
danar
e
tocar
e
que
no
é considerado propriamente como “ciência”, “acadêmico” ou “artístico” é,
na realidade, sabedoria ancestral de muitas que vieram abrindo caminhos
antes de você.
A
ciência que você aprendeu na e com a Jurema Sagrada
(ROSA, 2009 e 2019): segundo as madrinhas e padrinhos, sacerdotisas
e
sacerdotes,
a
ciência
da
jurema
est
em
sua
bebida
mgica
de
encanta
-
ria, no reino encantado do Juremá, na cabocla Jurema, na prática sagrada
da
Jurema
como
um
todo.
Assim
como
você
tambm
j
tinha
recebido
a
permisso
de
aprender
com
os
orixs,
sua
Me
Y
emanj,
seu
pai
Ogum,
sua avó
Y
ans (ROSA, 2005). É a
cosmopercepo que nos fala Oyeronk
Oyewumí
(2004).
A
verdadeira revoluo
que
no
separa as
coisas,
muito
menos
o
seu
ser
.
Sua
divina
presena.
Ento
você
comeou
a
“voltar”
e
“reencontrar” antigos caminhos: tarot, oráculos, pedras, poemas, danças,
movimentos
livres,
cantos
secretos
e
tradicionais,
medicinas
da
oresta,
pinturas com teu sangue sagrado…
Laila:
nem tenho o que argumentar
,
Alma. Faz todo o sentido.
A
minha mente andou to reativa por tanto tempo que agora, mesmo que
me
068
Corpo, políticas e territorialidades
desae,
acolho,
medito,
processo
e,
como
diria
o
Mestre
Irineu
“embora
que
no aprenda
muito,
aprenda sempre
um
bocadinho…”
Enquanto isso,
o meu corpo, ou melhor
, a minha corpa, me gritou: movimento! Equilí-
brio... alegria :) saúde e prazer
. Sim, vamos tantrar
,
Alma…
Corpa:
você precisa se movimentar
. Estar muito no mental adoece.
A
academia adoece.
A
militância política adoece. O ego adoece.
As estrutu-
ras das matrizes de desigualdades (racismo, sexismo, LGBTTQIA+fobias,
etarismo, capacitismo, especismo etc.) adoecem. Se mova para se curar
.
Pois
tudo
isso
pode
ser
tambm
cura.
E
essa
cura
no
só
sua. A
cura
a
gente compartilha.
Laila:
gratido,
corpa.
Agora
eu
sei.
Somos
uma.
Me
perdoe
por
todos excessos de pensamentos, sentimentos tóxicos, palavras “mal-ditas”,
noites
mal
dormidas,
falta
de
rotina
de
sono
e
alimentao...falta
de
um
corpo feliz e leve. Relações desequilibradas e adoecidas. Dor e sofrimento
com
a
minha
“lua”,
desconexo
com
meu
sangue
sagrado,
e
tantas
outras
ausências de mim mesma. Mas te digo: “antes tarde que mais tarde”. No
dia da
cirurgia de
retirada do tumor
ovariano maligno, em
13 de janeiro
de
2021,
eu escrevi
uma carta
pedindo perdo
ao meu
ovrio
direito, prestes
a
ser extirpado, juntamente com a trompa direita e
o apêndice.
V
ocê j tinha
avisado tantas vezes e eu ignorei como se fôssemos separadas. Embora
eu tenha me dedicado tantos anos a cantar e a tocar instrumentos, princi-
palmente o violino e a rabeca, esqueci do meu maior e mais importante
instrumento que é você e dentro de você/com você/em mim/comigo, a mi-
nha voz,
ferramenta de
poder e
de cura.
No a
tcnica pela esttica,
mas a
manifestao do meu ícaro,
meu canto de alma. Sonorizar a cura pela
voz/
som tem
sido a
minha
maior revoluo
compartilhada. Mais
ainda, dentro
desta
consciência,
materializar
essa
cura
pelo
movimento
contigo
-
seja
dançando, caminhando pelas trilhas diversas da vida, me banhando nas
guas
sagradas
doces
de
Mame
Oxum
e
Ew
ou
nas
guas
salgadas
da
mi
-
nha me
Y
emanj, ou (me)
amando e gozando, me
permitindo a um
prazer
pleno e sem culpa abençoado pela Shakti, Lilith ou Pombagira, tem sido
um portal transcendental mágico sem volta.
V
oz:
agora que você entendeu, vou te apresentar mulheres medicina
que
so
mestras
de
si
a
partir
dos
seus
caminhos
de
cura
pela
voz.
Ale
-
xandra Ostos (V
oces Curanderas,
V
enezuela/Peru), Ilein Kuymin (Chile,
Sendero Kuymin) e tantas abuelas que vieram antes delas.
A
sua voinha
que te ensinou a ser
voz que reza.
As Iyalorixs, as pajs,
as rezadeiras, as
069
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Nessas
linhas
que
seguem,
peo
licena
a
Conceio
Evaristo
(2020),
Gloria
Anzaldúa
(2005
e
2000),
Marcia
Kambeba
(2020)
e
Xan
Marall
(2021)
como
uma
mulher
preta
por
ser
lha
e
neta
de
pai
e
avós
pretes, mas lida como branca num país racista, bissexual, bípede, vegana,
yogini, dentre outras subalternizações e privilégios, para seguir tecendo es-
crevivências de
Abya Y
ala
, sagrado território de derramamento de sangue
xams,
as
bruxas,
as
pastoras,
as ciganas,
as
reverendas
e
tantas
mulheres
medicina
que
(se)
curam
pela
voz,
pela
reza/orao/magia,
encantaria...
V
ou
te
fazer relembrar
como a
voz
cura. Como
o som
cura.
E como
você j
sabia disso desde sempre, quando sua voinha Elza e eu voinho Pedro can-
tavam noite adentro nas serestas ou pra fazer você e
suas irms dormirem.
Quando você cantava com suas irms.
Laila:
voz
querida,
gratido.
Que
lembrana
linda
ouvir
voinha
e
voinho cantarem. Cantar
com as minhas irms. T
e digo, escrever esse
tex
-
to-poema pode me adoecer ou me curar
. T
udo depende da maneira como
me alinho à minha essência e ao meu propósito, que se conecta ao propósi-
to maior que é a vida, o Bem
V
iver
, como nos ensina a Marcha das Mulhe-
res
Negras (2015).
E
nesse caminho
eu escolho
a
cura por
essa
consciência
corpo-voz-templo-instrumento-escrita...conto com vocês.
Rezo
Que cada linha desse escrito seja tântrica, plena e sonora.
E que toque os corações como sementes delicadas de cura.
Assim como toca o meu.
Amém.
Axé.
Saravá.
Optchá.
Bruxastê- a bruxa que habita em mim saúda a bruxa que
habita em você.
27
27 - Sobre
o termo “escrevivência”,
Conceio Evaristo compartilha: “Se
eu for pensar
bem a genealogia
do termo, vou
para 1994, quando estava ainda fazendo a
minha pesquisa de mestrado na PUC. Era um jogo que eu fazia
entre a palavra
“escrever” e “viver”, “se ver” e culmina com a palavra “escrevivência”. Fica bem um termo histórico. Na verdade, quando
eu penso em escrevivência, penso também em um histórico que está fundamentado na fala de mulheres negras escraviza-
das que
tinham de
contar suas
histórias para
a casa-grande.
E a
escrevivência, no,
a escrevivência
um caminho
inverso,
um
caminho que
borra essa
imagem do
passado, porque
um
caminho j
trilhado por
uma autoria
negra, de
mulheres
principalmente.
Isso
no
impede
que
outras
pessoas
tambm,
de
outras
realidades,
de
outros
grupos
sociais
e
de
outros
campos para além da literatura experimentem a escrevivência. Mas ele é muito fundamentado nessa autoria de mulheres
negras, que j so donas da escrita, borrando essa imagem do passado, das africanas que tinham de contar a história para
ninar os da casa-grande” (EV
ARISTO, 2020, n.p.).
070
Corpo, políticas e territorialidades
e epistemicídio dos saberes ancestrais dos povos originários e afrodiaspó-
ricos. Os (trans)feminicídios e racismo epistêmicos e sonoros que me for
-
maram dentro de uma lógica eurocentrada e androcêntrica, cisteheteropa-
triacal de pensamento e ignorância do próprio corpo, no âmbito das escolas
de música
e conservatório...a
lógica da
separao, da
tcnica, da repetio,
da suposta neutralidade (há quem ainda acredite na música instrumental
de
concerto ou
no como
absoluta
ou “neutra”...acreditem...)
ou da
própria
etno-musicologia,
que
insiste
em
manter
o prexo
etno
de
origem colonial,
europeia, branca e heterocispatriarcal que, sobretudo no Brasil, produz ou-
tredades desiguais. Quem fala de quem? E como se fala? De quem é o
corpo que fala? Onde está o corpo? Que autoridade é essa?
Dentro de tudo isso, chegam a mim as territorialidades sonoras de
Abya
Y
ala, as minhas próprias sonoridades e escritas como legítimas e
possíveis.
Que
beno
que
outras
vieram
abrindo
caminho
antes
de
mim.
Gratido.
E
nessa
minha
escrevivência
corpo-território-espírito
, comparti-
lho
a jornada
de
Abya
Y
ala
que teve
início
nos EUA
e no
Mxico
em 2018,
com
a realizao
de um
sonho materializado
pelo pós-doutorado
e
residên
-
cia artística nesses países e tambm no Peru, e que reverberam at hoje.
Convocada pelo convite da querida Dinamara Feldens, me permito
partilhar caminhos de pesquisa, poemas, sonhos, sonoridades e processos
de cura
do que
viria a
se tornar
um câncer
,
pelas medicinas
da oresta,
do
santo
daime,
do
xamanismo,
do
yoga,
da
meditao,
do
veganismo,
da
corpa
que
dana e,
ao
m
da cirur
gia
que me
conduziu a
um novo
portal
de
vida-morte-vida
pelos corredores do Hospital
Aristides Maltez, referência
do Estado da Bahia (SUS), em tratamento do câncer
.
So
tantos
os
atravessamentos
para
falar
de
tudo
isso!
Dialogo
aqui com os convites das cartograas do corpo/corpa/corporalidades
e das
vozes
sagradas
das
cantautoras,
xams
e
sacerdotisas,
juntamente
com
a
minha
própria
voz,
para
a
superao
da
enfermidade-mestra
como
mani
-
festao
de
saúde
e
da
consciência
de
si,
das
gastropolíticas
do
eco-femi
-
nismo (SHIV
A, 2020), do veganismo (CARMO; BONETTI, 2018), dos
ensinamentos do
Y
oga e da medicina
A
yuverda, das tecnologias de gênero
em perspectiva interseccional (sempre!) pelos feminismos decoloniais de
Abya
Y
ala, das dissidências sexuais, estudos
Queer
em música (BARZ;
CHENG, 2020; CUSICK, 1994; SIL
V
A, 2019;
WHITELEY
; R
YCENGA,
2006), das pedagogias feministas decoloniais antirracistas, anticapacista e
LGBTTQIAP+….do sagrado feminino amefricana... E sim, algumas per
-
071
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
guntas: como tudo isso soa em mim voz-corpa bissexual lida como bran-
ca e com as mulheres-medicina negras, indígenas e brancas que encontrei
pelo caminho? De que maneira minha alma, voz, corpa-território-espírito
atravessada
sonoramente
por
tudo
isso
e
junto
com
tantas
outras
almas,
vozes, corpas-território-espíritos…? Como foi esse encontro que reverbera
at
hoje
e
est
em
processo
de
“parto”
do
meu
2o
disco
autoral
chamado
“Desde
outro
lugar”,
que
esse lugar
at
ento
desconhecido.
O
que
cura
pelo e com o sonoro ao lado de mulheres medicina. Convido-nos a apreciar
esta jornada sonoro-musical de cura.
Os abrigos e caminhos de alma: Eua e México
Movida pela corpa que dança e anseia por movimento, o Estágio
Sênior/Professora V
isitante e Residência
Artística que realizei aconteceu
em diferentes instituições ou “abrigos” e parcerias fundamentais. Inicial-
mente as ações seriam realizadas no: 1. Diplomado en Estudios Feministas
desde
America Latina (Universidad
Autónoma de la Ciudad de Mexico
– UACM); 2. Red Napiniaca de Etnomusicologia e Programa de Estudios
e Intervención Feministas (Centro de Estudios Superiores de México y
Centroamérica - CESMECA
/Universidad de Ciencias y
Artes de Chiapas
- Chiapas, México); 3. Flotar (Cidade do México), e; 4. Departamento de
Música e Centro de Estudos Latino-Americanos e Centro de Estudos
Afri-
canos (W
illiam and Mary University -
V
irgínia, EUA).
Ao
nal
fui
acolhida
pelas
seguintes
instituiões:
1.
Departamento
de Música e Centro de Estudos Latino-Americanos e Centro de Estudos
Africanos (W
illiam & Mary University -
V
irgínia, EUA); 2. Diplomado
en Estudios Feministas desde
America Latina (Universidad
Autónoma de
la
Ciudad
de
Mexico
–
UACM),
sob
superviso
de
Mariana
Berlanga;
3.
Red Napiniaca de Etnomusicologia e Programa de Estudios e Intervención
Feministas (Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica -
CESMECA
/Universidad de Ciencias y
Artes de Chiapas - Chiapas, Méxi-
co),
sob
a
superviso
de
Maria
Luisa
de
La
Garza
Chavez
e
apoio
de
Carlos
Bonm;
4.
Produo e
curadoria
para residência
artística da
Flotar
(Cidade
do
Mxico); 5.
Residência
artística na
Casa
de V
oz, com
Alexandra
Ostos
(V
ale Sagrado, Peru), e; 6. Residência artística no Brasil, temporada do es-
petculo Cassandra, de
Dinah Pereira e direo
de Luis
Alonso, com trilha
072
Corpo, políticas e territorialidades
sonora original de minha autoria.
Inicialmente foram propostas duas principais ações: 1. Realizar um
período
de
aprofundamento
teórico,
intercâmbio
acadêmico
e
atualizao
sobre estudos de gênero, epistemologias feministas decolonias em
Abya
Y
ala/América Latina, bem como, das pesquisas (etno)musicológicas deste
contexto, considerando tanto os estudos sobre as práticas musicais tradi-
cionais
como
aquelas
da
música
popular
autoral,
com
foco
na
atuao
e
obras de cantautoras , e; 2. Realizar residência artística enquanto composi-
tora
e
artista, fortalecend
o a
interlocuo musical
com
outras compositoras
da cena mexicana, através da parceria com a Flotar
, importante produtora
de
ampla atuao
no Mxico
e Estados
Unidos,
bem
como, na
W
illiam
and
Mary
University
(V
ir
gínia,
EUA). Ao nal,
a
jornada
se
estendeu
ao
Peru
e me trouxe de volta ao Brasil.
No decorrer
do
processo e
como desdobramento
do próprio
projeto,
ao nal, o cronograma
teve algumas alteraões, incluindo novas
parcerias,
alm daquelas
previstas e ampliando a
rea de atuao para
Peru (V
ale Sa
-
grado), Brasil (Salvador e Manaus), EUA
(Chicago) e incluindo também
as
cidades
mexicanas
de
Xalapa
(V
era
Cruz),
onde
tive
ensaios
e
gravaões
com a cantautora
Y
olótzin Cervantes, em San
Andrés Cholula, Puebla, com
entrevista coletiva com Clán de las Libélulas, em Oaxaca (Oaxaca) onde
foram realizadas vivências de corpo, voz e experimentações sonoras com
mulheres e comunidade LGBTT+na Escuela para la Libertad de las Mu-
jeres, no Espao
de Medicina T
radicional de Enriqueta
Contreras, parteira
indígena de etnia zapoteca e Casa Garita, espaço de residência artística, e
por
m, em
San
Cristóbal das
las Casas,
onde
foram realizadas
entrevistas,
gravações de campo, vivências de corpo, voz e experimentações sonoras
com mulheres e comunidade LGBTT+.
As protagonistas
e interlocutoras,
cujos trabalhos
procurei me
apro
-
ximar
enquanto
pesquisadora-cantauT
ora,
so
compositoras
de
diferentes
gêneros
musicais
com
atuao
na
cena
musical
do
contexto
mexicano
e
tambm
mulheres
que
atuam
como
sacerdotisas
e
xams,
que
cantam
e
tocam músicas para celebrar e curar o sagrado feminino. Estas possuem
28
28 - Por agora me detenho apenas às jornadas vivenciadas nos EUA
e Mxico.
29 - T
ermo designado para compositoras nos países latino-americanos de língua hispânica. Militantes feministas latino-
-americanas também o utilizam no sentido de fortalecer suas identidades de a(r)tivistas feministas escritoras e também
compositoras, caso da pensadora e cantautora dominicana Ochy Curiel, importante referência dos estudos de gênero,
feminismo negro, lésbico e decolonial (CURIEL, 2010). Isabel Nogueira e eu utilizamos estes termos para falar de nossos
próprios trabalhos enquanto artivistas feministas e compositoras (ROSA; NOGUEIRA, 2015).
29
073
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
uma
relao
particular
com
o
ato
composicional
e
a
gerao
de
seus
am
-
plos
repertórios
musicais
destinado
à
cura
do
corpo
e
da
alma,
por
no
se
considerarem autoras de várias de suas canções, mas que, assim como no
contexto do candomblé de caboclo narrado por Sonia Chada (2006) e nas
minhas próprias pesquisas sobre o sagrado no contexto das religiões de
matrizes
africanas
e
afro-indígena
da
Jurema
sagrada
(ROSA,
2009,
2005),
consideram “receber” seus cantos sagrados das divindades que as acompa-
nham e/ou que acreditam.
Coleção asè –
William & Mary University
(Richmond, V
irgínia,
EUA)
A
primeira
ao
do
estgio
de
pós-doutorado
e
residência
artística
foi
realizada
nos
Estados
Unidos
numa
imerso
de
uma
semana
no
De
-
partamento de Música e Centro de Estudos Latino-Americanos e Centro
de Estudos
Africanos da W
illiam and Mary University (V
irgínia, EUA)
-
sob
a
superviso
do
Prof.
Dr
.
Michael
Iyanaga,
docente
da
instituio
e
ex-aluno de intercâmbio do PPGMUS/UFBA, co-fundador da Feminaria
Musical, tendo colaborado no nosso primeiro capítulo de livro publicado
(ROSA
et al
., 2013). Neste momento, Carol Barreto e eu tivemos a oportu-
nidade de realizar intercâmbios com pesquisadoras/es, estudantes e artistas
da
instituio,
com
performances
da
Coleo
Asè
de
Carol
Barreto,
ao
qual
assino a sua trilha sonora em parceria com Iuri Passos e trio feminino de
atabaques
do Projeto
Rum
Alagbè:
Brenda Silva,
Adeline Seixas
e Daniela
Penna (ROSA
et al.,
2019).
Ao
nal
da
jornada,
houve
rodas
de
conver
-
sas sobre nossos trabalhos de pesquisa e processos criativos em moda e
música numa perspectiva de artivismo feminista antirracista no Brasil, em
que realizamos
a
performance de
encerramento
no formato
de desle
per
-
formtico
com
a
trilha
sonora
ao
vivo,
que
contou
com
a
participao
de
professoras/es
e
estudantes
majoritariamente
negras
da
W
illiam
&
Mary
University
,
tanto
deslando
com
as
peas
da
Coleo Asè,
como
tambm
tocando
juntamente
comigo
sua
trilha
original,
uma
importante
oportuni
-
dade
de
fortalecimento
de
aões
de
intercâmbio
e
internacionalizao
da
universidade pública brasileira, no caso a UFBA.
074
Corpo, políticas e territorialidades
Imagem 1 -
Performance Coleo
Asè, W
illiam & Mary University
(V
irgínia, 2019).
Fonte -
Acervo pessoal da autora. Com Carol Barreto (1 à esquerda) e estudan-
tes de diferentes cursos.
a
México: El frio y las color
es de los muertos
V
iajei
de Nova
Y
ork
para a
Cidade do
Mxico no
dia 31
de
outubro,
em pleno
Halloween
para,
nalmente, vivenciar a
tradicional
Fiesta de los
muertos
mexicana.
Um
rito
de
passagem.
Ali
estava
pedindo
as
bênos
e honrando a ancestralidade daquela terra e dos meus e minhas ancestrais
para
estar
ali
e
desenvolver
o
trabalho
e
a
jornada
de cura
que
me
propunha
ali em diante.
Participar de atividades na UACM, do seu Programa Diplomado en
Estudios Feministas desde
America Latina (Universidad
Autónoma de la
Ciudad de Mexico – UACM) foi uma grande oportunidade para a atuali-
zao
das
perspectivas
teórico-metodológica
fundamentadas
pelos
femi
-
nismos decoloniais, bem como, do Programa de Estudios e Intervención
Feministas (Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica -
CESMECA
/Universidad de Ciencias y
Artes de Chiapas - Chiapas, Méxi-
co).
Ambos os programas so de referência no assunto no país.
075
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Em ambos os programas tive a oportunidade de aprofundar parcerias
com as pesquisadoras e discentes destes importantes centros de referência
sobre o tema, participando ativamente das suas atividades acadêmicas e
sociais, tais quais, eventos, reuniões de pesquisa, aulas e rodas de conversa
em comunidade, pois ambos têm parcerias com estudantes e grupos de mu-
lheres
indígenas do
país.
V
ale
ressaltar que
j participei
de eventos
em am
-
bas as universidades. Estive na UACM em duas oportunidades, em 2009
e 2016, nas quais tive oportunidade de participar de atividades do grupo
de
pesquisa
coordenadora
Pela
Profa
Dra
Norma
Mogrovejo.
Nesta
últi
-
ma, fui convidada como palestrante na Seminária Feminismos desde
Abya
A
yala, conduzida pela mesma. Conheci a Profa Mariana Berlanga Gayón,
que aceitou ser umas de minhas supervisoras de Estágio do presente pro-
jeto,
na
parte
a
ser
realizada
na
UACM,
em
2009,
durante
uma
atividade
do mesmo grupo de pesquisa sobre estudos de gênero e sexualidade, grupo
ao
qual
ela
integrava
à
poca,
juntamente
com
a
Profa
Norma
Mogrovejo
(MOGROVEJO, 2019, 2016), que também me supervisionou na Escuelita
Feminista.
A
Profa Mariana vem trabalhando com o tema do feminicídio
(BERLANGA
GA
YÓN, 2018) com o qual também venho trabalhando há
algum tempo no contexto musical da Jurema Sagrada e da perspectiva dos
(trans)feminicídios e racismos epistêmicos (ROSA, 2018a).
Imagem 2 -
Conferência magistral no Diplomado de Estudios
Feministas (UACM), Cidade do Mxico, janeiro de 2019.
Fonte -
Acervo pessoal da autora. ‘
076
Corpo, políticas e territorialidades
Dando continuidade à parte do cronograma realizado no âmbito
acadêmico, acompanhar as atividades do Programa de Estudios e Interven-
ción Feministas e do grupo de pesquisa Red Napiniaca de Etnomusicolo-
gia, ambos do Centro de Estudios Superiores de México y Centroamérica
- CESMECA
/Universidad de Ciencias y
Artes de Chiapas (Chiapas, Mé-
xico), possibilitou fortalecer a parceria que foi iniciada em 2016, durante o
4o Encuentro de Etnomusicología, realizado pela Red Napiniaca de Etno-
musicología, ao qual fui convidada como uma de suas conferencistas. De
acordo com a Profa. Dra Maria Luisa de la Garza Chavez, que aceitou ser
uma das supervisoras deste plano de estudos, o grupo tem como um dos
seus propósitos de:
“[...]”potenciar
el
trabajo
de
indivíduos
y
grupos
que
hacen investigación etnomusicológica, y de ampliar el
conocimiento sobre las culturas musicales, principalmente
e Chiapas y de Guatemala, pero no restringios a estas
regiones (GARZA;
AGUILAR, 2013).
T
ive a oportunidade de
conhecê-la na ocasio do encontro da
Inter
-
national
Association for Popular Music - IASPM, que aconteceu na Casa
de las
Americas (HA
V
ANA, CUBA), em 2016. Já em Chiapas, durante o
4o Encuentro de Etnomusicología, conversei com a Profa. a respeito de
atividades de estudos feministas, que estava em recesso, à época e de uma
futura interlocuo acadêmica tal qual esta que apresento no momento.
Durante a estadia de 10 dias em San Cristóbal de las Casas, cidade
de
populao
majoritariamente
indígena
das
etnias T
sotsìl
e
T
setsil,
tive
a
oportunidade
de
conhecer
a
loja
da
cooperativa
de
comunidades
zapatistas,
com diversos materiais, cartazes, roupas, livros e CDs produzidos por estas
comunidades.
Em especial,
me chamou
ateno àqueles
diversos
materiais
produzidos por grupo de mulheres sobre educao
e comunicao popula
-
res e feministas. Experiência que trouxe importantes inspirações para tro-
cas pedagógicas e trabalho voluntário a ser desenvolvido no âmbito da mú-
sica
com
jovens
e
adultas/os,
experiência
que
venho
realizando
na
Escola
Nossa
Senhora
de
Ftima
desde
2015,
ao
acompanhar
estgios
docentes
em turmas de
EJA
– Educao de
Jovens e
Adultos
eo o Grupo de
Mulhe
-
res do
Alto das Pombas – GRUMAP
, grupo parceiro da Feminária Musical.
O 4o Encuentro de Etnomusicología, teve como tema principal
“Amúsica e os mitos”, sendo um momento de experiências muito posi-
tivas,
desde
uma
produo
acadêmica
engajada,
em
parcerias
com
as
co
-
077
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
muni
dades interlocutoras, pois contava também com palestrantes e perfor
-
mances
de
músicos
e
grupos
indígenas
locais,
um
caminho
j
defendido
pela etnomusicologia latino-americana (OCHOA, 2002, 2003a, 2003b)
e,
especicamente,
a
brasileira
(ARAUJO,
2017;
LUHNING;
TUGNY
,
2017; LUHNING, 2006) pelos feminismos decoloniais (AL
V
AREZ, 2009;
ANZALDÚA,
2000,
2005),
numa
perspectiva de
saberes
compartilhados,
que acredito ser fundamental para o contexto de uma pedagogia feminista
antirracista, que procuro ter como referência na Feminária Musical e nas
minhas práticas enquanto docente e orientadora.
Desde
uma
perspectiva
de
produo
de
conhecimento
em
interlo
-
cuo
e
iniciativa
de
internacionalizao,
a
Profa.
Maria
Luisa
que
or
ga
-
nizou o livro “La Música y los mitos” como produto do referido encontro,
com artigos apresentados onde tive capítulo publicado sobre os “mitos de
invisibilizao
à
produo
de
conhecimento sobre
o
sagrado
feminino
em
música” (ROSA, 2018b), tema de minha conferência durante o encontro, e
que me
inspirou para o
projeto de pós-doutorado e
residência artística. Na
realidade, foi a partir desta oportunidade de retornar ao sagrado e aos mi-
tos que, ao falar sobre “os mitos das invisibilizações”, pude aprofundar as
conexões entre minhas pesquisas e vivências sobre o sagrado feminino no
contexto das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas e as pesquisas
e
engajamentos
atuais
desde
as
epistemologias
feministas
decoloniais,
ar
-
tivismo feminista e pedagogia feminista (HOOKS, 2013).
Incorporar atividades de Residência
Artística no plano de trabalho
seguiu
tambm a
linha de
integrao
e consolidao
das minhas
produões
acadêmicas e artísticas, que, na realidade, sempre estiveram conectadas
(ROSA; NOGUEIRA, 2015). Nesta parte,
foram realizadas performances,
ocinas
sobre
artivismo
feministas,
corpo
e
improvisao
experimental
e “intuitiva”, inspirada pela dançarina e mulher medicina Inaê Moreira
(2020) na Cidade do México, produzidas pela Flotar
, produtora cultural de
atuao no Mxico, Brasil e EUA.
30
30 - T
ive a abençoada oportunidade de participar de vivências conduzidas pela mesma, tanto na Cidade do México, em
2018, como em Salvador
, em 2019.
Ainda em 2019, participamos como artistas do evento Close to There – Perto de Lá,
em Chicago, com curadoria da Flotar e Harmonipan.
31 -
A
Flotar vem produzindo o trabalho de Carol Barreto, com quem venho realizando parceria enquanto compositora
das trilhas sonoras de suas coleções, que ganharam as passarelas de Paris, Luanda, Nova
Y
ork, Chicago etc. (REIS,
2017).
Desde 2012,
venho
tocando
nos
desles performticos
de
suas
coleões e,
juntas,
realizamos
residência
artística
em
Nova Y
ork, atravs
do
Edital de
Mobilidade Artística da
Secretaria
de Cultura
do
Estado da
Bahia
– SECUL
T
,
ao
que
foi
produzida
pela
Flotar
com
quem
venho
trabalhando
desde
2015,
atravs
das
obras
de
Carol
Barreto
e
agora,
a
partir deste plano de trabalho, do meu próprio trabalho enquanto artista, compositora-cantautora, docente, pesquisadora
e artivista feminista.
31
078
Corpo, políticas e territorialidades
Imagem 3 -
Gravao com a cantautora de canto mecidina
Y
olótzin Cervantes (V
era Cruz, México).
Fonte -
Acervo pessoal da autora.
Uma das experiências mais especiais da
jornada mexicana foi reen
-
contrar com
Y
olótzin Cervantes, que havia conhecido na Cidade do Mé-
xico
em
2016,
na
casa de
Norma
Mogrovejo,
quando
tocamos
juntas
pela
primeira
vez.
Em
2019
fui
ao
seu
encontro,
em
Xalapa,
V
era
Cruz,
para
gravar
duas
canões:
Mujer
Sabia
,
de
autoria
de
Y
olótzin
e
Ixchel
,
de
minha
autoria.
Ali
cantamos
e
tocamos
juntas
nossa
ancestralidade
pela
sonoridade da Jarana, instrumento de corda dedilhada tradicional veracru-
zano
e
tambor
xamânico,
maracas
e
pau
de
chuva.
Mujer
Sabia
canta
“la
mujer que sabe”, sabedoria antiga de feminino sagrado
indígena que reve
-
rencia
a
Me
T
erra
e
tambm
o
seu
ventre.
J
Ixchel,
deusa
das
guas,
da
lua
e
da
fertilidade,
nasce das
guas
sagradas
de
Isla
Mujeres,
onde
ca
o
seu templo. Ixchel chega para celebrar a abundância e a beleza da vida no
feminino. O milagre da vida que se manifesta pelo ventre.
32 - Disponível em:
https://www
.youtube.com/watch?v=TiADY15kKeg.
Acesso em: 17 out. 2021.
33 - Disponível em: https://www
.youtube.com/watch?v=4IYhK_ChxMQ. Acesso em: 7 out. 2021.
32
33
079
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
O sagrado feminino amefricano de
Abya
Y
ala
Considero
sacerdotisas
e
xams
as
mulheres
que
so
lideranas
re
-
ligiosas e/ou que trabalham com música e cura através de suas práticas te-
rapêuticas diversas.
Nesta jornada de cura
e conhecimento sonoro-musical
de
mulheres
de
Abya
Y
ala,
propus
tambm
uma
aproximao
com
o
tra
-
balho daquelas tanto oriundas dos contextos tradicionais afro-mexicanos
ou
indígenas,
sobretudo
no
Estado
de
Chiapas,
cuja
populao
indígena
majoritria,
e
tambm
de
mulheres
de
origem
urbana
que
no
necessaria
-
mente possuem origem tradicional ou étnica de povos e ou/famílias que
trabalham com cura, como comumente se dá nos contextos tradicionais
de
matrizes
africanas
e
indígenas
(LUHNING,
1992;
MELLO,
2005;
SE
-
GA
TO, 1984;
THEODORO, 1996), mas que se descobrem
curandeiras
ao
longo
de
suas
jornadas
de
vida
e
de
cura
como
o
caso
da
antropó
-
loga estadunidense Barbara
T
edlock (2008) que, realizando sua pesquisa
de campo sobre xamanismo na Guatemala, acabou sendo submetida a um
processo de iniciao xamânica, iniciando a partir
daí, sua jornada de cura
como xam.
Este
interesse
nasceu
da minha
própria
jornada
enquanto
pesquisa
-
dora, pois, ao adentrar o universo sagrado das religiões de matrizes afri-
canas e afro-indígenas em Pernambuco, há quase 20 anos atrás, migrei do
ateísmo para uma identidade de alguém que passa a se reconhecer como
conduzida por
seus guias
espirituais diversos
em sua jornada.
J enquanto
artista,
com
mais
de
20
anos
de
estudos
e
ininterrupta
atuao
nas
cenas
musicais pernambucanas e baianas enquanto violinista e rabequeira, canto-
ra
e
compositora,
passo
a
fazer
uma conexo
sagrada
tambm
com
a
minha
produo musical
autoral que
culminou
no meu
primeiro CD
“Água viva:
um disco líquido
” (2013) , todo dedicado à obra homônima de Clarice Lis-
pector e tambm
aos orixs femininos das
guas:
Y
emanj e Oxum.
Desde
ento,
tendo
escrito
tambm
sobre
processos
criativos
em
música
numa
perspectiva
feminista
e
decolonial
(ROSA;
NOGUEIRA,
2015).
Uma
de
suas faixas recebeu o Prêmio Caymmi de Música na categoria Música Ins-
trumental , pelo voto popular e, o disco como um todo, tornou-se trilha
34 - Contemplado pelo edital da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia – SECUL
T (2013). Disponível em:
www
.
soundcloud.com/laila-rosa.
Acesso em: 12 out. 2021.
35 - Ressaltando
o dado de que fui
a única compositora dentre os
14 indicados que compuseram o CD
do Prêmio. Dispo
-
nível em: https://programa.radioca.com.br/tag/premio-caymmi.
Acesso em: 12 out. 2021.
34
35
080
Corpo, políticas e territorialidades
sonora de premiados espetáculos de dança e circo, abrindo os caminhos
para
composiões
de
trilhas
sonoras
para
teatro
e
desles
performticos
(Angola,
Paris,
EUA,
Canad
etc.)
e
realizao
de
ocina
sobre
sagrado
feminino
com
mulheres,
que
se
tornou
tema
de
dissertao
de
mestrado
(TEIXEIRA,
2016).
Alm
disso,
venho
realizando
diversos
shows
e
al
-
gumas curadorias de festivais feministas de música e compositoras, com
destaque para o Sonora – Festival Internacional de Compositoras (2016
e 2017), que acontece em mais de 20 cidades do mundo e que considero
como uma ao coletiva revolucionria
e de cura de mulheres or
ganizadas
enquanto sociedade civil no campo da música como estratégia de enfrenta-
mento do sexismo e dos (trans)feminicídios musicais.
Importante destacar colaborações com coletivo de compositores, ar
-
tistas e pesquisadoras como a Sonora: Música(s) e Feminismo(s) (USP),
como a idealizao
coletiva do Simpósio
T
emtico “A
produo
sonora de
mulheres: processos, práticas e poéticas em situações de deslocamentos,
atravessamentos e interseccionalidades,” coordenado pela Profa Dra Isabel
Nogueira (UFRGS), compositora, cantora e pianista e por mim, durante o
13o Mundo de Mulheres e Seminário Internacional Fazendo Gênero 1
1
(2017).
Em2018,
juntamente
com
a
Profa
Dra
Harue
T
anaka
(UFPB),
tam
-
bm pianista
e sanfoneira, idealizamos
juntas e coordenaremos
o simpósio
“A
produo
musical
e
sonora
de
mulheres”,
durante
o
28º
Congresso
da
Associao
Nacional
de
Pesquisa
e
Pós-Graduao
em
Música,
ANNPOM,
realizado na UF
AM, sendo o primeiro sobre estudos de gênero e música da
história da associao (NOGUEIRA; ROSA; T
ANAKA, 2018).
Outra importante referência empírica relacionada ao tema deste
plano
de
trabalho
o
contexto
do
V
ale
do
Capo,
Chapada
Diamantina
(Bahia), onde frequentei há vários anos e resido desde 2020, quando foi
deagrada
a
pandemia
por
conta
da
COVID-19.
O
mesmo
conhecido
internacionalmente como “V
ale da Cura”, justamente por ter
forte um mo
-
vimento
de
xamanismo
e
parteria
natural,
desde
a
populao
nativa,
ma
-
joritariamente
afro-indígena,
com
histórico
de
parteiras,
rezadeiras,
etc.
e
também, de mulheres de várias partes do mundo que têm o México como
36
36 - Disponível em: https://soundcloud.com/laila-rosa-1/trilha-da-colecao-ase-de-carol-barreto.
Acesso em: 12 out. 2021.
37 - T
ive oportunidade de participar como convidada das duas edições realizadas em Salvador (2016 e 2017) como artista
convidada e
curadora.
Na 1a
edio, concedi
entrevista
em que
falo um
pouco sobre
o
conceito de
feminicídio musical.
Disponível em: https://www
.youtube.com/watch?v=dkqQxOf2tls. Acesso em: 12 out. 2021.
38 - Disponível em: http://www
.sonora.me/sonora/. Acesso em: 12 out. 2021.
39 - Disponível em: h
ttp://www
.wwc2017.eventos.dype.com.br/simposio/view?ID_SIMPOSIO=118.
Acesso em: 12 out.
2021.
37
38
39
081
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
importante referência de xamanismo, cura e espiritualidade, através dos
seus cantos de cura.
Foi
no
V
ale
do
Capo,
onde
em 2017,
tive
a
oportunidade
de
partici
-
par do retiro/curso “V
ozes Curandeiras” com a
Alexandra Ostos, venezue-
lana residente do vale sagrado peruano (Machu Picchu), ela é psicóloga e
terapeuta sonora. Esta experiência fortaleceu o tema da música como cura
em mim enquanto pessoa, pesquisadora e compositora. Segundo
Alexan-
dra:
40
-
Foi
lanado
um
documentrio
intitulado
“Mulheres
V
iajantes,
entrevistando
12
mulheres
que
vivem
no
V
ale
do
Capo.
A
maioria delas chegou l com um propósito de cura, sendo algumas terapeutas/xams, como o caso da italiana
Federica Ilai, que conheo e
que possui exatamente o perl que estou falando, Federica recebe
vrios cantos de cura e de
louvor ao Divino e ao sagrado feminino. Disponível em:
http://gshow
.globo.com/Rede-Bahia/Aprovado/noticia/2017/02/
veja-todos-os-episodios-da-serie-mulheres-viajantes.htmldocumentrio
.
Acesso em: 12 out. 2021.
41
-
V
ozes
Curandeiras
no
Brasil.
Disponível
em:
https://www
.facebook.com/events/275572306225131/;
https://www
.
facebook.com/vocescuranderas/.
Acesso em: 12 out. 2021.
42 - Realizado no Espaço
Akash (Salvador). “W
orkshop V
oces Curanderas in Bahia 2017”. Disponível em:
https://www
.
youtube.com/watch?v=AarqUMYfytc.
Acesso em: 12 out. 2021.
43
-
Compartilhei
um
pouco
a
respeito
de
uma
entrevista
concedida
durante
a
vivência
do
Capo.
V
oces
Curanderas:
testimonios y experiencias. Disponível em:
https://www
.youtube.com/watch?v=RurdJJRlOG8.
Acesso em: 12 out. 2021.
40
A
voz conectada com a música é a ferramenta mais
poderosa que temos. Ela pode transformar e curar
sicamente,
emocionalmente
e
espiritualmente.
Ela
tem
sido usada como ferramenta de cura em todas as tradições
xamânicas ao redor do mundo e como um meio para se
conectar com o invisível. Cantamos para a terra para a boa
colheita, para aceitar a morte e para facilitar o parto, entre
outros usos tradicionais.
A
música torna-se sagrada quando
em
conjunto
nosso
corpo
e
a
inteno
de
nossas
mentes,
permite a expresso do nosso espírito (OSTOS, 2017).
41
Antes
desta
vivência
no
V
ale
do
Capo,
participei
tambm
do
“W
orkshop
V
oces
Curanderas
in
Bahia
2017”
com
Alexandra
Ostos,
-
cando profundamente surpresa e, ao mesmo tempo, inspirada por ambas
as experiências que considero igualmente transformadoras, por alinharem
conhecimento técnico e musical sobre extenso repertório de cantos tra-
dicionais venezuelanos e peruanos, técnicas de canto vibracional, alinha-
mento de chakras com a voz e outras, empregadas pela terapeuta, como
ferramenta de cura que vivenciamos e compartilhamos coletivamente em
ambos os momentos.
Ainda sobre esta vivência, vale ressaltar que o encontro com
Ale-
xandra Ostos (V
enezuela) e Ula T
echari (Espanha), terapeuta e cantora que
42
43
082
Corpo, políticas e territorialidades
estava produzindo a vivência
V
ozes Curandeiras do Brasil, resultou num
encontro
musical cujo
produto
foram pequenos
videoclipes
que gravamos
ali
mesmo
no
local
do retiro,
sendo
um
deles, a
gravao
de
“T
empo,
vento
que avoa”, música instrumental de minha autoria que originalmente foi
gravado
como
baio
e,
pela
primeira
vez,
ganhou
sua
verso
“xamânica”
com a presença do tambor xamânico, efeitos sonoros de penas, texturas vo-
cais contemplativas e etéreas representando o conceito
tempo-vento-tempo
presente em toda a atmosfera sonora, sobretudo rítmica, da composio.
Amplio, portanto, o conceito de “vozes curandeiras”, utilizado por
Alexandra Ostos para nomear suas vivências pelo mundo, para falar sobre
as
vozes
de
mulheres
em
sua
diversidade
tanto
na
produo
de
conheci
-
mento teórico quanto musical – e me incluo entre elas, me situando na
perspectiva dos saberes localizados enquanto mulher lida como branca, cis
e
bissexual
(HARA
W
A
Y
,
1995).
É
atravs
da
produo
de
conhecimento
sobre estudos de gênero e
Queer
em música e da musicologia feminista,
epistemologias feministas decoloniais, sagrado feminino, matrilinearidade
ancestral das cosmologias africanas e indígenas (CUSICK, 1994; GAR-
GALLO
CELENT
ANI,
2012;
MELLO,
2005;
NOGUEIRA;
CAMPOS,
2013;
P
ALOMBINI, 2003;
ROSA;
NOGUEIRA, 2015;
TEIXEIRA,
2016;
THEODORO, 1996; WERNECK, 2007;
WHITELEY
; R
YCENGA, 2006)
que rompemos com invisibilizações históricas do androcentrismo acadê-
mico pautado pela branquitude hegemônica que está presente também na
música (BENTO, 2002; SOVIK, 2009), que tenho chamado
de (trans)femi-
nicídio epistêmico e musical, combinando o conceito de (trans)feminicídio
abordados por diversas autoras (BENT
O, 2014; BERLANGA
GA
YÓN,
2018; LAGARDE; 1994) como inscrições de violência material e simbó-
lica ou o que Rita Segato nomeou como “a guerra contras as mulheres”
(SEGA
TO, 2016) para pensar sobre o campo do sonoro-musical.
Musicalmente
falando,
atravs
no somente
dos
seus cantos,
mas
de suas práticas musicais enquanto compositoras dos mais diversos gêne-
ros
musicais,
independentemente
de
se considerarem
ou
no,
sacerdotisas
ou
xams,
que
mulheres
se
unem
e
se
curam,
curando
tambm
o
Cistema
44 - Clipe “V
ocês Curanderas” (by Ecoltura V
isual) - T
empo, vento que avoa (Laila Rosa):
Alexandra Ostos (V
enezuela):
voz e tambor xamânico; Laila Rosa (Brasil): voz e rabeca e Paula Perea (Espanha): voz, penas e efeitos sonoros diversos.
Disponível em:
https://www
.youtube.com/watch?v=VtgzjNJS_Fk
. Acesso em: 12 out. 2021.
45 - T
ema do “3o
Encontro Novembro Negro nas Artes (ENNA): reexões sobre o
racismo e (trans)feminicídios epistê
-
micos e musicais”, evento idealizado e organizado pela Feminaria Musical, realizado no histórico
T
erreiro do Gantois,
em dezembro de 2017.
44
45
083
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
(VERGUEIRO, 2016) cisgênero, sexista, heteronormativo, racista, lesbo-
-homo-transfóbico, capacitista, etarista capitalista e colonial, dentre outras
matrizes
de
desigualdades.
É
atravs
da
música
que
nós,
mulheres,
nos
fortalecemos e nos expressamos individual e coletivamente, bem como,
furamos os bloqueios de autoridade masculina no campo da autoria, rom-
pendo com as históricas tentativas de silenciamento através da invisibili-
zao
sistemtica
e/ou
desqualicao
de
suas
obras
e
atuaões
musicais,
materializando reescritas da história ao incluir corpos, identidades e sono-
ridades at
ento ignoradas pela
história da
música androcêntrica, racista
e
hegemônica (SCOTT
, 1992; CURIEL, 2010; BRAH, 2006).
A
motivao
para
esta
jornada
foi
fruto,
portanto,
de
um
caminho
de
pesquisa, militância e artivismo de quase duas décadas sobre o sagrado fe-
minino de matriz africana e indígena ou amefricana (GONZALEZ, 1988)
em música no contexto das religiões de matrizes africanas e afro-indígenas,
mais
especicamente,
o
universo
do
xangô
ou
candombl
em
Pernambuco,
e
da
Jurema
Sagrada,
temas
da
minha
dissertao
de
mestrado
(ROSA,
2005) e tese de doutorado, respectivamente (ROSA, 2009).
A
partir destas
pesquisas, pude aprofundar a perspectiva dos estudos de gênero e feminis-
mos interseccionais e negro no universo das religiões de matrizes africanas
e,
posteriormente,
como
j
mencionado,
desenvolver
tambm
uma
cone
-
xo espiritual que, desde ento, vem transformando minha vida, pesquisas
e produções artísticas enquanto pessoa, compositora e musicista.
T
ive a oportunidade de adentrar neste sagrado universo em 1999
enquanto bolsista Pibic, realizando pesquisa orientada pelo Prof. Dr
. Car
-
los
Sandroni
na
UFPE.
A
partir
desta
pesquisa,
j
como
mestranda
do
Programa
de
Pós-Graduao
em
Música
da
UFBA,
orientanda
da
Profa
Dra Sonia Chada, iniciei um aprofundamento dos estudos sobre gênero
e
música,
apresentando
artigo
sobre
a
pesquisa
no
XV
Simpósio
Baiano
46
-
T
rago
ainda
que,
durante
o
doutorado,
sob
a
orientao
da
Profa
Dra Angela
Lühning,
fui
contemplada
com
bolsa
CAPES
de doutorado
sanduíche de
12 meses,
minha primeira
viagem para
o
exterior,
graas aquela
conjuntura política
de
apoio à pesquisa no Brasil nos governos Lula e Dilma.
Ali estudei na New
Y
ork University (NYU) e Columbia Univer-
sity
, sob
a
coorientao
da Profa.
Dra.
colombiana Ana Maria
Ochoa, realizando
pesquisas
e
participando de
atividades
no Centro de Estudos Latino-Americanos (CLACS/NYU). Pude cursar
, pela primeira vez, componentes sobre estudos
de gênero, feminismos e musicologia feminista com as musicólogas Suzanne Cusick (NYU) e Ellie Hisama (Columbia
University) que
me inspiraram
para criar o
componente optativo
“Introduo aos estudos
de gênero, corpo
e sexualidades
em música” no PPGMUS/UFBA. No contexto pandêmico, na inquietude da alma pela cura, o componente tornou-se um
curso, se
ampliando enquanto projeto
da feminria
musical do curso
de extenso
“Escutas de si
e do mundo:
introduo
aos estudos de gênero, corpo e sexualidades em música”. Disponível em:
https://www
.youtube.com/watch?v=cQB8R-
qgHPl4
. T
emos ainda páginas no facebook (
https://www
.facebook.com/feminariamusical/
) e instagram (
https://www
.
instagram.com/femi_naria/?hl=en).
46
084
Corpo, políticas e territorialidades
de Pesquisadoras(es) sobre Gênero, em 2004, organizado
pelo histórico
Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM (UFBA) ,
do qual, posteriormente, passei a cursar disciplinas como aluna e depois,
como docente, ingressar como pesquisadora e docente do seu Programa de
Pós-Graduao
em
Estudos
Interdisciplinares
sobre
Gênero,
Mulheres
e
Feminismo (PPGNEIM/UFBA).
Desde 2012, venho liderando pesquisas, e publicado sobre o tema,
coordenando a Feminaria Musical: grupo de pesquisas e experimentos so-
noros do PPGMUS, que também integra a linha de pesquisa sobre Gênero,
Arte e Cultura, do NEIM, bem como, orientando bolsistas PIBIC, TCCs,
dissertações de mestrado e teses de doutorado sobre estudos de gênero e
música numa perspectiva interseccional e decolonial, com destaque para a
dissertao
de
Laurisabel
Silva
sobre
os
Jazes
em
Salvador
dos
anos
50
a
atuao das
mulheres negras no
mesmo (SIL
V
A, 2014),
a tese
de doutora
-
do de Jorgete Lago
sobre as mestras da cultura popular em Belém do Pará
(LAGO, 2017),
a dissertao de
Francimria Ribeiro Gomes
sobre a atua
-
o musical de
três diferentes geraões de
mulheres negras em
Cachoeira,
Bahia
(GOMES,
2017)
e,
mais
recentemente,
a
orientao
da
doutoranda
Nzinga Mbandi, dentre outras. T
odas elas acadêmicas negras militantes,
47
47 - Sobre um pouco da história do
NEIM: “A
retomada do projeto “emancipacionista” das mulheres no Brasil, em mea
-
dos
dos anos
70,
foi marcada
no apenas
pela
ampla mobilizao
de
mulheres em
torno
de questões
especícas à
condio
feminina em nossa sociedade, mas também pelo crescente interesse em estudos e pesquisas em torno dessa temática,
dando margem ao sur
gimento de grupos, núcleos de estudos nessa área em diferentes universidades brasileiras, bem
como em associaões cientícas
nacionais, constituindo-se em espaos privilegiados para
a necessria permuta de expe
-
riências e o
aprofundamento de reexões
teórico-metodológicas sobre a
problemtica da mulher e
relaões de gênero. A
história do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher – NEIM tem reetido estes avanos. Criado em maio de
1983, como núcleo ento
vinculado ao Mestrado em Ciências Sociais
da UFBA, o NEIM se destaca
no apenas por ser o
núcleo de estudos feministas
mais antigo do país, como
tambm por sua atuao marcante
e continuada na promoo de
uma serie de atividades
nas reas de Ensino, Pesquisa e Extenso, tendo
sempre em vista a formao de uma
consciência
crítica
acerca das
relaões de
gênero hierrquicas,
predominantes em
nossa sociedade,
e da
consequente especicidade
da
condio
feminina. Em
1995, o
NEIM
conquistou um
lugar
de maior
destaque
na UFBA,
ascendendo
à categoria
de órgo
suplementar
.
Hoje
o
Núcleo
reconhecido
pela
sua
competência,
tanto
no
âmbito
nacional
quanto
internacionalmente,
destacando-se dentre os principais centros de ensino e pesquisa na área dos estudos sobre a mulher e as relações de gênero
do
país. No
âmbito nacional
tal reconhecimento
materializa-se
com a
criao do
programa de
Pós-Graduao (Mestrado
e
Doutorado) em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo (PPGNEIM), o primeiro nessa temática
no país e na Amrica Latina Em 2009, mais um passo foi dado no
avano dos estudos nessa rea com a criao
do curso
de
Bacharelado em
Estudos de
Gênero
e Diversidade
com
concentrao em
Políticas
Públicas, no
período
noturno com
oferta de 50 (cinquenta) vagas anuais. T
rata-se de
uma graduao que visa à formao de prossionais que possam atuar
na
rea
de
Gênero
e
Diversidade
(raa/etnia,
gerao,
direitos
sexuais
e
outras
desigualdades
sociais)
no
planejamento,
execuo
e
avaliao
de
políticas
públicas.
Formado
inicialmente
por
um
pequeno
grupo
de
professoras
e
alunas
da
Faculdade de
Filosoa e Ciências
Humanas, muitas
oriundas do Grupo
Feminista Brasil Mulher, o NEIM
logo passou
a
contar tambm
com a participao
de docentes vinculados
a outras
unidades de ensino
e pesquisa
da UFBa.
Atualmente
o
NEIM
dispõe
de
uma
equipe
de
mais
de
25
pessoas,
incluindo
professoras
pesquisadoras,
pesquisadoras
associadas,
bolsistas, estagiárias/os, e pessoal técnico-administrativo.
Ao longo destes anos conquistamos o reconhecimento da socie-
dade brasileira através dos movimentos sociais, da academia e dos organismos de governo. Nosso trabalho é conhecido
e reconhecido em muitos países. T
udo isso
conquistado com muito trabalho, eciência, responsabilidade e compromisso
social.” (NEIM, s.d., grifo nosso). Disponível em: http://www
.neim.ufba.br/wp/apresentacao/. Acesso em: 12 out. 2021.
085
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
sendo a última princesa de tradicional família congadeira de Minas Gerais.
Orientei
tambm
o
T
rabalho
de
Concluso
de
Curso
–
TCC
no
Bacharelado
de Música Popular/UFBA, de Ellen Carvalho, que se decidou ao trabalho
das compositoras, onde ela realizou show que mesclava canções autorais e
das compositoras entrevistadas pela Feminaria Musical. O primeiro sobre
o tema no curso de música popular (CAR
V
ALHO, 2015).
V
ale destacar ainda, que assim como a minha tese de doutorado
tornou-se
tema
de
estudo
sobre
produo
de
conhecimento
em
gênero
e
música no Brasil (MOREIRA, 2012), a Feminária Musical tornou-se tema
de tese de doutorado de
Anni Carneiro (CARNEIRO, 2019), como grupo
feminista e musical que adota uma pedagogia feminista antirracista que,
alm
de
produzir
conhecimento
cientíco
e
artístico,
tambm
promoto
-
ra de saúde no âmbito da UFBA, pois trabalhamos com práticas de cor
-
po, voz, yoga, etc.
A
mesma, é minha orientanda, e atualmente também
docente da F
ACED. Outra ex-orientanda do mestrado e tutora do grupo
também foi recém-admitida como docente do Bacharelado de Gênero e
Diversidade da UFBA
e continua como nossa colaboradora. Outras ex-bol-
sistas PIBIC ingressaram no mestrado e as tutoras e tutores de mestrado
ingressaram no doutorado. Um deles na Universidade de
A
veiro, Portugal.
Importante ressaltar ainda que, atualmente, a maioria das integrantes da
Feminaria Musical é de mulheres negras atuantes dos movimentos sociais
de mulheres negras, feministas e LGBTQIAP+.
T
odo o panorama apresentado da minha trajetória enquanto pesqui
-
sadora, docente, cantautora, artivista feminista ancoram este novo momen-
to “Desde outro lugar” de aprofundamento em todas as questões colocadas
e que foram viabilizadas pela oportunidade do Estágio Sênior/Professora
V
isitante e residência artística no Exterior
. Este consiste num momento
esperado
desde
quando
nalizei
o
doutorado
em
2009
e
que
precisou
ser
adiado para cumprir o Estágio Probatório na Universidade, seguido do fato
de
eu
ter
assumido
car
go
de
gesto
enquanto
coordenadora
do
PPGMUS
(2016-2018).
Embora nunca tenha abandonado o tema do sagrado feminino em
música
desde
quando
iniciei
minha
jornada
enquanto
pesquisadora,
após
ingressar na UFBA
como docente (201
1), o foco das minhas pesquisas se
48
48 - Orientei também TCC’
s sobre o tema no curso de Licenciatura em Música, como o de Lorena Martins dos Santos
(SANTOS, 2018)
sobre mulheres bateristas, sendo ela
tambm baterista que, como contrapartida,
ofertou ocina gratuita
de bateria para mulheres, realizada da Escola de Música da UFBA
neste mês de junho.
086
Corpo, políticas e territorialidades
ampliou, passando a ter um desdobramento de cunho mais epistemológico
“geral” sobre produo de
conhecimento sobre mulheres e música no
Bra
-
sil
(em
todas
as
suas
subreas
de
conhecimento,
sendo
sagrada
ou
no)
e
compositoras dos mais diversos gêneros musicais, atuantes no cenário mu-
sical
soteropolitano,
de
modo
a
romper
com
a
sistemtica
invisibilizao
sobre o tema, bem como, as produções artísticas das compositoras.
A
proposta
do
projeto
nasceu
desta
imerso
nas
epistemologias
feministas
em
música,
da
militância
artivista
e
atuao
extensionista
e
performtica
autoral
da
Feminaria
Musical,
que
j
somam
quase
10
anos
(ROSA, 2012).
Como marco inicial, a pesquisa pelo Programa Permanecer (2012)
resultou num capítulo publicado em livro pioneiro sobre Estudos de gênero
e música no Brasil (ROSA,
et. al.
, 2013), publicado pela editora da
As-
sociao
Nacional
de
Pesquisa
e
Pós-Graduao
em
Música
– ANPPOM
(NOGUEIRA;
CAMPOS,
2013)
e,
desde
ento,
temos
publicado
em
co
-
autoria, realizado
diversas aões,
tais quais,
participao e
or
ganizao
de
eventos, performances, além de parcerias com movimentos sociais, de mu-
lheres e feministas em âmbitos local, nacional e internacional, totalizando
cerca
de
50
aões.
V
ale
destacar
ainda
que
em
2018,
o
projeto
teve
mais
três planos de trabalho aprovados, com duas bolsas aprovadas pelo PIBIC-
-AF UFBA
(2018/2019) e outros três planos aprovados em 2021, com uma
bolsa, pelo programa
de iniciao cientíca
para estudantes de
graduao,
fortalecendo
a continuidade
do projeto
que conta
com a
colaborao
de es
-
tudantes
da
graduao
e
tutoras/es
de
mestrado
e
doutorado,
orientandas/os
do PPGMUS e PPGNEIM, docentes da UFBA
e UFRGS, além de diversas
colaborações externas.
Como
marco
mais
recente para
a
pesquisa
e
toda
atuao
da
Femi
-
naria
Musical,
vale
ressaltar
a
minha
participao
como
convidada
de
mesa
sobre gênero e música no mundo, representando a
América Latina, durante
o Congresso do International Council for
Traditional
Music – ICTM (Li-
merick,
Irlanda,
2017),
onde
apresentei
dados
sobre
a
mesma,
e
o
perl
e
ações do grupo; organiza
mos o 3o Encontro Novembro Negro nas
Artes
(2017),
realizado
no
histórico
T
erreiro
do
Gantois,
numa
ao
que
mo
-
bilizou parcerias entre PPGMUS, PPGPROM, Curso de Música Popular
,
49 -
At
o ano de 2021,
se contabilizam aprovaões de
18 bolsas de pesquisa
de iniciao cientíca (3 bolsas
IC-Perma
-
necer/PROAE e 15 Pibic/PROPG), 2 bolsas de PIBIEX T
essituras e 1 bolsa de
ACCS (Ao
Curricular em Comunidade
e Sociedade).
49
087
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
NEIM
Associao So Jor
ge Eb Oxossi (T
erreiro do Gantois) e represen
-
tantes dos movimentos sociais como Grupo de Mulheres do
Alto das Pom-
bas
–
GRUMAP
e
Coordenao
de
Política
LGBT
da
Bahia
(Secretaria
de Justiça, Direitos Humanos e Desenvolvimento Social – SJDHDS – do
Governo da Bahia), além da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia –
SECUL
T
, pois o evento representou também contrapartida de Residência
Artística realizada em Nova
Y
ork (2017) enquanto compositora e pesqui-
sadora, realizando performances com a Docente e Design de Moda Carol
Barreto (Bacharelado em Gênero e Diversidade/UFBA) em galerias de arte
e
palestras
na
New
Y
ork
University
e
Columbia
University
.
Por
m,
em
2021,
criamos
o
Projeto
ACCS
no
Capo:
as
vozes
curandeiras
femininas
ancestrais e
contemporâneas do
V
ale do
Capo, com a
participao de mu
-
lheres
medicina
que
so
cantoras,
rezadeiras,
erveiras,
parteiras,
terapeu
-
tas, parteiras, artistas, produtoras culturais, etc.
50
-
Compartilhei
a
coordenao
geral
do
evento
com
o
Prof.
Iuri
Passos
(Curso
de
Música
Popular)
e
as
Profas
Carol
Barreto e Maíra Kubik, ambas docentes do Bacharelado de Gênero e Diversidade e NEIM, sendo a última diretora do
referido Núcleo.
51
-Aprovado
pelo
edital
PIBIEX/UFBA
2021.
O
mesmo
ter
como
produtos
nais
um
cd
com
a
gravao
dos
cantos
medicina de
autoria das convidadas e
um mini-doc com
trecho das rodas
de conversa e da
gravao do cd.
T
odas as
rodas
de conversas esto disponíveis no canal da Feminria Musical, no youtube.
51
50
O sagrado feminino amefricano de
Abya
Y
ala
Situando
a
minha
fala
e
jornadas,
considero
que
o
projeto
de
pós
-
-doutorado e residência artística consistiu num importante desdobramento
de
toda
esta
jornada
acadêmica
e
sonoro-musical. Ainda
que
em
diversos
momentos a mesma tenha sido dolorosa, por conta dos diversos enfrenta-
mentos, tem também sido poética, musical e fortalecedora, de cura mesmo,
como
a
palhaa
insubordinada
do
poema
que
escrevemos
juntas
em
San
Cristobal
de
las
Casas,
Chiapas,
que,
ao
desejar
se
conectar
com
outras
mulheres, é aquela:
Que sube la montaña en la madrugada.
Que canta,
Que piensa,
Que siente.
088
Corpo, políticas e territorialidades
Desde este lugar completamente implicado de quem “canta, pensa
e sente”, considero que o Estágio Sênior/Professora
V
isitante nos EUA
e
México foi uma experiência de fundamental importância de maneira inte-
grada:
das
atividades
acadêmicas
e
da
produo
artística
que
inclua
tam
-
bém propósitos de cura do sagrado feminino amefricano, nos termos de
Lélia Gonzalez (1988).
O que nasce a partir daí emer
ge dos (en)cantos dos encontros de
Abya
Y
ala
com
Y
olótzin
Cervantes,
Norma
Mogrovejo,
Mariana Berlanga,
Norma Contreras, Inaê Moreira, Juci Reis, Carol Barreto, Clan de las Libé-
lulas,
Alexandra Ostos, Ilein Kuymin Punta de Lanza, Dina Mazariegos e
tantas outras que vêm tecendo caminhos de cura pela palavra, pela poesia,
pela arte, pela corpa, pela voz, pelo grito… e tudo isso segue reverberando
nos projetos
que sucederam essa
jornada, mesmo
em tempos pandêmicos:
a
retomada
dos
projetos
de pesquisa
sobre
cantautoras
na
Bahia
no
“novo
normal”
pandêmico,
a
produo
de
conhecimento
sobre
mulheres
e
mú
-
sica no Brasil e as memórias da Feminária Musical nesses quase 10 anos
de
jornada
(PIBIC/UFBA);
o
projeto de Ao Curricular
em
Comunidade
(ACCS
no
Capo):
as
vozes
curandeiras
ancestrais
e
contemporâneas
do
V
ale
do
Capo,
que
prevê
gravao
dos
cantos
medicina
de
autoria
das
mulheres medicina convidadas para nossas rodas de conversa online e o
Projeto
Salve
as Y
abs:
cantautoria
feminina
para
os
orixs
femininos
do
V
ale
do
Capo
(Edital
T
essituras/UFBA),
que
prevê
um
cd
todo
dedicado
aos cantos de autoria feminina para os orixás femininos de mulheres do
V
ale
do
Capo,
e
tambm
de
uma
composio
autoral
em
parceria
com
a
bolsista Marina
Coelho. So
frutos colhidos
e sementes
plantadas. Planta
-
deiras de sementes boas que somos.
Eu vim do corpo da minha mãe.
Ela me deu semente boa.
Nutre meu corpo.
Se espalhe em bençãos.
Sou plantadeira de semente boa.
(Minuska Lima)
52
-
Álbum
completo
disponível
em:
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D
Deusas e diabas:
Mitos polifacéticos e
forças do feminino
099
As
guras
do
feminino
no
imaginário
em
torno
das
mulheres
se
apresentam como guerreiras,
sedutoras, mães, feiticeiras e curandeiras.
Os
poderes
associados
à
capacidade
reprodutiva,
à
sexualidade
e
à
adivinha
-
ção
das
mulheres
eram
percebidos
como
ameaçadores
de
modo
a
compor
sua
gura,
endeusada
ao
mesmo
tempo
em
que
execrada,
como
uma
bruxa.
Com múltiplas referências
que tratam dos
mitos enquanto ingredientes vi
-
tais
da
civilização
e
da
psique
humana,
neste
capítulo,
pretende-se
apresen
-
tar ao
leitor guras
que perpassam
mitos clássicos, destacando
as yabás
do
panteão iorubano e as imagens da pomba-gira. T
ais
guras expressam for
-
ças
associadas
a
elementos
da
natureza,
papéis
na
divisão
social
e
sexual
do
trabalho
e
características
emocionais,
temperamentos,
tipos
de
volição
e
sexualidades
variadas.
As
guras
femininas
apresentam
complexidades
e
paradoxos
conceituais,
situando
as
mulheres,
seus
corpos,
suas
forças
e
seus
modos
de
existência
entre
deusas
e
diabas.
O
intuito
é
questionar
o
imaginário
que
historicamente
aprisiona
o
feminino
em
dualismos,
bus
-
cando dar visibilidade à complexidade polifacética dos diversos modos
de
habitar corpos e mundos.
Intr
odução
Desvendar
a
origem
do
mundo,
das
coisas,
dos
muitos
reinos
da
natureza
-
incluídos
aí
os
humanos
-
e
das
relações
que
regem
a
vida
em
sociedade
são
inquietações
que
perpassam
o
estudo
de
várias
disciplinas
há
séculos (PIRES, 2002). Utilizando-se desde os mitos às teorias cientícas,
diferentes sociedades
elegeram inúmeras
e criativas
justicativas para sua
organização
social.
Para
povos
originários,
tais
explicações
baseavam-se
nos
mitos de
origem
divina,
enquanto
nas
civilizações ocidentais
contem
-
porâneas
a
ciência
cumpre
a
função
de
buscar
explicações
para
a
ordem
social
existente
e,
assim,
legitimá-la
(STREY
,
1998).
Aqui,
antes
do
que
um
objeto
de
pesquisa,
o
mito,
enquanto
força
gurada
de
n
cerimônias
e
narrativas, toma
o corpo
de um deus
ou deusa,
que também
pode ser trans
-
formado
num
diabo,
demônio,
como
queira
ser
chamada
a
guração,
por
excelência,
do
mal.
Como
um
dos
grandes
mitos
da
civilização,
a
luta
entre
o
mal
e
o
bem
está
profundamente
entranhada
na
subjetividade
humana,
produzindo, ainda
hoje, identidades. O que
se compreende como entidade,
Mitos bíblicos e clássicos
100
Corpo, políticas e territorialidades
personicação
mítica,
apresenta
a
guração
de
valores,
potências,
habili
-
dades
e
elementos
da
natureza
que
condizem
ao
mundo
em
que
vivemos
e que nos
tornam um ente que
se conecta e se
distingue da natureza e que,
de
algum
modo,
identica
características
subjetivas.
No
presente
ensaio,
apresentamos
guras míticas
e
literárias, mítico-literárias,
dada
a imanên
-
cia
entre
cções
de
tipos
distintos
que,
ao
mesmo
tempo,
tem
sempre
a
mesma
origem
e a
mesma função:
traduzir
, por
formas e
nomes, forças
que
nem sempre o conhecimento racional capta.
Figuras
míticas
de
culto auxiliam
a
compreender
diferentes
formas
de relação
vividas ao longo
da história pelo/as
humano/as. Não
se trata de
buscar
origens
universais
ou
mitos
monolíticos
contemplados
apenas
via
uma
face. Escapa-se
de
uma perspectiva
evolucionista
para a
compreensão
das
relações
humanas
via
o
perspectivismo.
Como
método
de
exploração
de todas as facetas de um objeto ou plano, perspectivar é escolher o movi
-
mento
e analisar
todas facetas
possíveis. O
estudo dos
mitos
requer análise
das
guras que
por sua
narrativa tomam
corpo
ao
se apresentarem
em
mui
-
tos territórios e
povos, em vários momentos da
história. T
rata-se de
resga
-
tar
a
historicidade
destas
relações
entre
corpos,
sexos,
gêneros
e
guras
a
m de compreender
seu engendramento, em especial
no que concerne
aos
processos de subjetivação feminina (NAR
V
AZ, 2020).
Porém,
ao
invés
de
nos
determos
em
fatos
históricos,
apresentare
-
mos
guras
que
expressam
amálgamas
em
identidades
constituídas. Ape
-
sar
da
disseminação
de novos
discursos sobre
pluralidade,
multiplicidade e
diversidade,
a insistência
dos
antagonismos nas
narrativas
reproduzidas no
imaginário social contemporâneo tem reforçado o velho maniqueísmo dos
sistemas simbólicos
ocidentais, sendo tal
dualidade o que
o presente texto,
com
guras
afrobrasileiras,
intenciona
quebrar
.
“Se
a
sociedade patriarcal
não assumiu o conito
entre os sexos e
as anomalias sociais, o candomblé
os
absorve”
(CARNEIRO;
CUR
Y
,
1993,
p.
26).
Embora
não
se
preten
-
da,
aqui,
discorrer
acerca
do
candomblé,
guras
advindas
de
seu
panteão
multifacetado são
apresentadas para
dar corpo
a questionamentos sociais
e
civilizatórios acerca dos modos de subjetivação pelo feminino.
Para
Balandier
(1997)
o
mito
aborda,
em
sua
linguagem
própria,
a
ambiguidade do social e
o aleatório que o afetam:
ele resulta de uma osci
-
lação necessária entre
aliança e enfrentamento, ordem
e desordem. Mircea
Eliade
arma
que
o
mito
é
um
ingrediente
vital
da
civilização
humana;
lon
-
ge
de
ser uma
fábula
vã, o
mito
é ao
contrário uma
realidade
viva, à
qual se
recorre
incessantemente;
não
é
absolutamente uma
teoria
abstrata
ou
uma
101
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
fantasia artística, mas verdadeira codicação da religião dita “primitiva” e
da sabedoria prática:
É
a
irrupção
do
sagrado
no
mundo,
irrupção
contada
pelo
mito,
que
nada
realmente
o
mundo.
Cada
mito
mostra
como
uma realidade
veio à
existência, seja
ela a
realidade total,
o
Cosmos,
ou
apenas
um
fragmento:
uma
ilha,
uma
espécie
vegetal, uma instituição humana (ELIADE, 1992, p. 51).
A
mitologia
de
Roland
Barthes
(1993)
possibilita
estudar
os
deslo
-
camentos e
as incongruências
de
ordem cultural
e estética
no que,
por sua
recorrência, se torna um mito.
Aqui, usamos a perspectiva de Barthes para
pensar
o
mito
em
suas
gurações
populares,
imiscuídas
na
tradição
oral
e
na
iconograa
de
deusas,
entidades
de
culto
e
guras
demonizadas
que dão
a
ver
o
problema
de
aceitação
e
propagação
do
feminino
no
Brasil
hoje.
Mi
-
tos e tragédias gregas (BULFINCH,
2001; KOL
TUV
, 1997; PIRES, 2002;
RINNE,
1988)
contam
que,
na
origem
do
Universo,
as
primeiras
deusas
eram polifacéticas, criativas e destrutivas, boas e más ao mesmo tempo.
Ao
estudar
o
feminino
através
dos
tempos,
Martha
Robles
(2019)
traz
diversas
guras
para
mostrar
múltiplas
facetas
da
mulher
em
guras
míticas,
literárias
e
históricas,
numa
compreensão
civilizadora
de
que
há
um
feminino integrado
e
um
feminino que
arrasta
o
poder
da mulher
para
queda.
Aqui,
ressaltamos
forças
independentes
dos
poderes
masculinos,
não
circunscritas
apenas
à
fecundidade.
Hécate,
encontrada
nas
encruzi
-
lhadas, entidade misteriosa, apresenta tanto as
trevas e os horrores, quanto
o esplendor da noite de lua cheia (BULFINCH, 2001).
T
ragédias clássicas como “
As Bacantes
” e “
Medéia
”, de Eurípedes,
falam
em
mulheres
independentes
e
poderosas,
que
integravam
sexuali
-
dade
e
maternidade,
bondade
e
maldade
em
uma
só
gura,
a
exemplo
de
Hera
(ROBLES,
2019).
Medéia,
que
matou
por
ciúme
os
próprios
lhos
ao
ser
traída
pelo
marido,
encarna
ora
a
imagem
negativa
de
mãe
má,
ora
a
imagem de
sabedoria,
poder e
força
da
mulher que
não
se
submete à
in
-
delidade
masculina
legitimada
pela
ordem
patriarcal.
As
“
Bacantes
”
são
mulheres
de
T
ebas
que
abandonam
seus
lares
à
noite
e
celebram
orgias,
a
ponto
de
uma
delas
matar
o
próprio
lho
sem
o
saber
(RINNE,
1988).
Em
“
Antígona
”,
tragédia
de
Sófocles,
Electra
e
Antígona,
lhas
de
Édi
-
po, apresentam mulheres
que, mesmo vivendo sob
a égide paterna, ousam
desaar
a
dominação
masculina
reinante
em
T
ebas
(PIRES,
2002).
O
po
-
102
Corpo, políticas e territorialidades
der
feminino
é
também
apresentado
pelas
sacerdotisas,
que
conhecem
a
arte
do
amor
e
da
adivinhação.
Em
“
O Banquete
”,
Platão
atribui
tudo
o
que aprendeu sobre o
amor à sacerdotisa Diotima de
Mantinéia
.
A
palavra
Mantinéia “relaciona-se com a mântica, a arte
da adivinhação e do delírio.
O
dom de
ler sinais
é poder
dado a
poucos. Sacerdotisa
dos mistérios,
tudo
o
que
diz
ou
ensina
Diotima
(ROBLES,
2019,
p.
21)
liga-se
estreitamente
à
‘doença sagrada’,
o amor” (MA
T
OS, 2002, p. 1
15). Os poderes
femininos,
associados
à
capacidade
reprodutiva,
à
sexualidade
e
à
adivinhação
eram
percebidos, no
entanto, como
ameaçadores.
Aparece,
então, o
mito do
do
-
mínio
do
Universo
por
Zeus,
que
toma
para
si
a
capacidade
reprodutiva
e
engrandece a paternidade, destituindo as imagens femininas de seus pode
-
res.
Em
outros
mitos,
como
os
de
Pandora,
Perséfone
e
Psique,
as
mulheres
são apresentadas como
curiosas, frívolas, dependentes e
feitas apenas para
agradar aos deuses masculinos (BULFINCH, 2001; RICHLIN, 1991).
As origens
do mundo e
da humanidade, segundo
o ‘Gênesis’, reve
-
lam um
Deus-Pai-Criador severo
e autoritário.
Dominar a natureza,
extrair
dela seus
recursos, conquistar
outros povos
e submetê-los para
construir a
civilização
estão
presentes desde
o
Adão bíblico.
Criado à
imagem e
seme
-
lhança
de Deus,
o homem
é
dotado do
privilégio
de dominar
todos os
seres
vivos, ao
qual é
prescrito que
subjugue a terra,
o céu,
o mar
e todas as
suas
criaturas. A
mulher
é
criada
a
partir
do
homem,
como
produto
dele.
Não
tolerando
a
desobediência
de Adão
e
Eva,
que
outorgam
a
si
o
direito
ao
saber e à autonomia,
Deus os castiga com o sofrimento
do trabalho e a dor
do parto (DADOUN, 1998).
O
mito
de
Lilith,
a
deusa
diaba,
que
apresenta
a
outra
face
de
Eva,
conta
que
esta
mulher
feita
do
húmus
juntamente
com Adão
feito
do
bar
-
ro,
foi
expulsa
do
paraíso
por
reivindicar
prazer
sexual.
Não
querendo
se
submeter
a
Adão
e
nem
a
Deus,
Lilith
é
condenada
pelo
Deus-Pai-Cria
-
dor
.
Quando
Eva,
primeira
mulher
gerada
não
de
matéria
própria,
mas
do
corpo
de
Adão,
prova
o
fruto
do
conhecimento
do
Bem
e
do
Mal,
Deus
lhe
castiga
com
as
dores
do
parto
e
com
a
submissão
ao
homem
a
quem
“pertence”.
Lilith
se
torna
um
demônio
popular
,
um
mito
aterrorizante,
e
Eva, a
pecadora
por excelência.
Na iconograa,
Lilith,
essa que
se mostra
indomável, se mistura
à imagem da deusa
Astarte, aparecendo com
pés de
ave.
Enquanto
Lilith
é
castigada,
a
V
irgem
Maria
é
venerada,
não
como
deusa,
mas
enquanto
mãe
do
Senhor-Jesus-Deus.
Maria
é
a
Serva
do
Se
-
nhor
, mediadora
do
‘Deus Criador
’, uma
vez
que concebe
a
partir do
‘Es
-
pírito Santo’.
A
imagem da
mulher ideal passa
a ser
a de Maria,
que não
é
103
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
mulher
, visto
ser gurada
como a
mãe que
sofre, adorada
por sua
condição
de humildade, resignação e
subordinação. Idealiza-se, a partir daí, a
repre
-
sentação feminina da boa mãe, nutridora, protetora, santa e assexuada.
Na Inquisição,
durante a
Idade
Média, a
força ameaçadora
das mu
-
lheres
é
simbolizada
na
gura
da
bruxa
e
condensada
numa
gura
ainda
mais
poderosa,
a
do
diabo,
gura
masculina
(KOL
TUV
,
1997).
T
al
ima
-
gem, mito que
atribui o poder da
bruxa ao diabo, destitui
a força feminina,
pois
sua condensação
mágica
num
corpo
e
psiquismo diferenciados,
feiti
-
ceira,
não
está
isenta
de
machismos
e
estereotipias.
Neste
sentido,
busca-se
compreender
os
mitos
para
que
não
nos
tornemos
submissas
aos
traços
miticadores das forças que nos compõem.
Para
o
medievalista
norte-americano
Jerey
Russel,
em
seus
estu
-
dos
sobre
as
gurações
do
mal
na
história
do
pensamento,
o
conceito
de
mal
não
possui
nenhuma
precisão,
tampouco
coerência.
O
mal,
antes
de
ser
conceito,
é
uma abstração:
“devemos
considerar
que
o
mal é
sentido
ime
-
diata, direta
e existencialmente,
em lugar
de ser denido
categoricamente”
(RUSSEL, 1991, p.
3). Descrições de experiências
que envolvem o “mal”,
como
crianças
sendo
cruelmente
castigadas,
são
usadas
pelo
autor
para
denir o mal como percepção: “experiência direta e imediata
de algo feito
a um
indivíduo” (RUSSEL,
1991, p.
3). Russel
trata do
mal em
termos de
dor
e
sofrimento e,
embora
seus
exemplos
tragam situações
concretas
nas
quais
o
mal
é
exercido
sobre
o
físico,
também
aborda
o
mal
em
suas
formas
incorpóreas.
Porém,
o
mal
não
é
uma
abstração,
pois
é
sentido
e
conheci
-
do.
Compreendemos
o
mal
porque
fazemos
analogias
com
nosso
próprio
sofrimento: “Embora
a dor
esteja a 15
mil quilômetros
ou a
cinco mil anos
de
distância,
isso
não
importa. A
voz
grita,
é
ouvida
e
sabemos
do
que
se
trata”
(RUSSEL,
1991,
p.
3).
Estas
considerações
são
apenas
o
princípio
da
obra
de
Russell,
que
não
intenciona
tratar
do
problema
do
mal,
mas
pesqui
-
sar
as formas
pelas quais
a demonização
se gura
a ponto
de poder
armar
que “Diabo é o conceito de Diabo” (RUSSELL, 1991, p. 29).
Uma
reversão
do
caráter
miticador
das
guras
clássicas,
em
es
-
pecial
a
bruxa,
pode
ser
observada
no
paradoxo
da
“prostituta
sagrada”
(QUALLS-CORBETT
,
1990),
a
qual,
em
nossas
pesquisas
(ZORDAN,
Giras poder
osas
104
Corpo, políticas e territorialidades
2021)
se
imiscui
a
guras
sincréticas,
destacando
aqui
a
entidade
Pomba
-
-Gira, Pompogiro ou Pombagira. Esta é amaldiçoada ao mesmo tempo em
que
bendita; amada
e
odiada; temida
e
venerada.
Ainda
que
carregue uma
representação cultural,
numa perspectiva outra, na
qual as guras apresen
-
tam
forças
e
trazem
essências
que,
mais
do
que
simbólicas,
são
efetivas
composições
de
modos
de
existência,
esta
gura
que
gira
faz
uma
revira
-
volta
nas
representações
mitológicas
e
literárias
que
a
civilização
ergue
e
cultua como mito. Ela não se representa facilmente, ela se apresenta.
A
Pombagira
“pede
passagem”
nos
terreiros das
religiões
afro-bra
-
sileiras
para
lutar
contra
o
‘mal’,
tomado
como
proibição
de
desejos
legí
-
timos, contra a castração e opressão para vencer
a desigualdade, o precon
-
ceito,
a
discriminação.
T
rata-se
de
uma
gura
que
rompe
com
os
papéis
instituídos,
não aceitando
que
as mulheres
quem na
condição
de subalter
-
nas,
de
submissas
ao
domínio
masculino.
Para
essa
entidade,
todo
tipo
de
dominação
caracteriza-se
como
um
‘mal’,
que
aniquila
os
oprimidos,
por
isso, ela se
coloca à disposição para
desconstruir esses conceitos
estabele
-
cidos,
social,
política,
cultural
e
religiosamente,
conforme
é
exteriorizado
por meio de pontos cantados destinados a exaltar a Pombagira.
Oli
Costa,
em
sua
tese
de
doutorado
(2015),
analisa
a
Pombagira
como
uma
ressignicação
mítica
da
deusa
Lilith. A
Pombagira
surgiu
no
Brasil
colonial,
imiscuindo-se
com
as
bruxas
da
imagética
do
Renascimen
-
to
(ANCHIET
A,
2021)
e
perpassou
o
período
imperial
por
meio
do
ima
-
ginário popular
.
Sedimentou-se ao
longo do
tempo através
das crenças
re
-
ligiosas europeias,
africanas,
ciganas e
indígenas, expressando
uma gura
popular
de
grande
interesse
aos
estudos
feministas
e
para
antropologia
da
imagem. A
Pombagira
apresenta-se
de
forma
sincrética
e
com
muitos
no
-
mes.
A
mais conhecida alude à
gura de uma rainha espanhola com traços
ciganos, identicando-se
como Maria Padilha de
Castela e expressando-se
nos rituais dos terreiros das religiões e cultos afrobrasileiros.
A
partir
de
pesquisas
efetuadas
sobre
o
mito
primordial
de
Lilith,
Costa
(2015) observa
as semelhanças
míticas e
comportamentais presentes
na
entidade
Pombagira
com
a
deusa-diaba
Lilith
no
que
tange
a
sua
re
-
beldia
e
sua
ânsia
pela
liberdade.
Interessam
as
guras
míticas,
presentes
em
imagéticas
de
muitos
povos
e
nações,
que
não
aceitam
o
cerceamento
advindo das instituições religiosas e culturais,
as quais, por meio da domi
-
nação
masculina,
tentam
controlar
o
sexo feminino,
inibindo
e
colocando a
mulher
como
um
ser objetal,
negando
a
sua condição
de
sujeito na
história.
105
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
A
Pombagira,
em
sua
controversa
atuação,
gura
a
libertação
das
mulhe
-
res
que
se
encontram
em
desigualdade
perante
os
homens
ou
estejam
na
condição de
propriedade dos
mesmos com
a legitimação
da sociedade
e da
Igreja.
As
Pombagiras,
assim
como
os
Exus,
são
porta-vozes
dos
oprimidos,
as
vozes
das
ruas,
das
denúncias
do
sistema,
dos
condenados,
dos
que
estão
à
margem
da
sociedade,
dos
excluídos,
dos
desprezados,
daqueles
que
são
estereotipados,
tais
como,
por
exemplo,
as
prostitutas,
os
gigolôs,
os
homossexuais,
os
michês,
os
malandros
e
os
amantes;
todos
esses
que
carregam
os
estigmas
do
pecado
original,
do
ilícito,
vivenciado
nos
amores
proibidos
pelos
padrões
convencionais
e
legais.
Destacamos
que
a
Pombagira
exerce
forte
domínio,
nos
casos
amorosos,
unindo
ou
separando
os
casais,
conforme
for
solicitada.
De
modo geral,
é a
protetora
das prostitutas,
que
recorrem
aos
seus
serviços,
a
m
de
conquistarem
o
amor
ilícito,
de
um
cidadão
que
as
desprezam,
favorecendo
os
meios
nanceiros
para
o
alcance
de
tal
objetivo.
A
mulher
que
ousa
romper
com
o
estabelecido
corre
o
risco
de
ser
estereotipada
como
devassa
ou
prostituta,
ou
seja,
uma
Pombagira (COST
A, 2015, p. 104).
Essas
entidades
estão
vinculadas
à
gura
do
Exu,
ancestral
iorubá
que
preside a
comunicação
e toda
transmissão,
ligado
diretamente ao
cor
-
po, daí
sua associação
à alegria,
ao gozo
e ao
prazer (PRANDI,
2001).
As
guras de Lilith e de Pombagira,
transgressoras da própria guração espe
-
rada
em
relação
a
uma
deusa
ou
gura
demonizada
em
livros
sagrados
e
tradições,
correspondem à
inversão
dos
valores que
a
sociedade estima. A
estigmatização
da
sexualidade
feminina,
em
especial
a
possibilidade
de
seu
livre
prazer
,
assim
como
da
liberdade
que
o
gozo
de
seu corpo
apresenta
ao
mundo, condensa-se nessa gura, encarnação
de conceitos feministas, que
se
chama
Pombagira.
Pode-se
compreender
que
“o
vocábulo
genérico
de
Pomba
Gira
deu
origem
a
uma
nova
categoria
de
entidades”
(AUGRAS,
2001,
p.
295)
que
dão
corpo
à
liberdade
dos
corpos
fora
do
binarismo
femi
-
nino-masculino, tanto de homens como de mulheres, cis ou trans.
Conforme
Dravet
(2013),
na
mitologia
Y
orubá,
antes
dos
homens
dominarem
as
mulheres,
eram
elas
que
os
humilhavam
e
dominavam,
zom
-
bavam
deles
e
determinavam
a
ordem
social
do
culto.
Várias
sociedades
de
106
Corpo, políticas e territorialidades
mulheres
ocupam
o
imaginário
relativo
a um
tempo
mítico,
a-histórico,
em
que
elas detinham
o
poder
.
E,
de fato,
há
relatos
de sociedades
femininas,
inclusive
de guerreiras
em todos
os lugares
do planeta.
Na
história
Y
orubá,
contam
que
houve
duas
sociedades
secretas
de
mulheres
poderosíssimas:
a sociedade Elekô, conduzida por Obá e a
Sociedade Geledê, associada ao
culto
das grandes
mães.
Assim,
no começo
do mundo,
a
mulher intimidava
o homem
desse tempo,
e o
manejava com
o dedo mindinho.
É por
isso que
Oyá
(conhecida
mais
comumente
nos
cultos
afro-brasileiros
sob
o
nome
de Y
ansã
ou Iansã)
foi
a primeira
a
penetrar
no segredo
dos
Egúngún (an
-
cestrais
masculinos
desencarnados). Assim,
quando
as
mulheres
queriam
humilhar
seus
maridos,
reuniam-se
numa
encruzilhada
sob
a
direção
de
Y
ansã,
deusa
que,
por
muitas
vezes,
confunde-se
com
pombagiras
e
ciga
-
nas. Na
encruzilhada em T ou
Y
(encruzilhadas em
forma de
útero), nesse
encontro de caminhos, contam que
Y
ansã encontrava as mulheres com um
grande
macaco
domado,
domesticado,
o
qual
usava
roupas
e
cava
ao
pé
do
tronco
de
um
igi
(árvore).
Depois
de
cerimônia
especial,
o
macaco
se
-
guia as ordens
de
Y
ansã, fazendo
o que por ela
fosse determinado.
A
doma
se
dava por
meio
de uma
vara que
ela
segurava, conhecida
como
ísan. Esta
cerimônia
acontecia
diante
dos
homens
que,
assustados
com
a
aparição,
fugiam.
A
tradição
oral
relata
que
os
homens
resolveram
“acabar
com
a
vergonha”
de
estarem
sendo
dominados
pelas
mulheres
e,
então,
assumi
-
ram formas
terricantes a m de
fazerem as mulheres fugirem.
Dizem que
Y
ansã
foi a primeira a escapar e desapareceu para
sempre da face da terra.
Mesmo assim,
com a
força e
o
poder que
tinha, o
poder feminino
se man
-
teve
preservado
e
sua
continuidade assegurada.
Depois
disso,
sabe-se
que
os
homens
dominaram
as
mulheres
e
são
senhores
absolutos
do
culto
aos
Egúngún, proibindo às
mulheres penetrarem no segredo de toda
sociedade
secreta.
Contudo,
sociedades
secretas
femininas
autorizadas
a
participar
em
território
Y
orubá
continuaram
a
existir
em
circunstâncias
especiais.
Isso
explica
por
que
Y
ansã-Oyá
é
adorada
e
venerada
por
todos
na
qua
-
lidade
de
Rainha
e
fundadora
da
sociedade
secreta
dos
Egúngún
na
terra.
Com a fuga, são sete
pássaros que se escondem na noite: três pousaram
na
árvore do bem, três na
árvore do mal e o sétimo permaneceu voando
entre
uma e outra.
Esta
lenda
se
mistura
à
da
orixá
Iyami
Oxorongá,
bruxa
e
pássaro,
uma espécie
de mãe primordial,
dona das barrigas,
tão assustadora quanto
Lilith, cujo termo traduz toda
feitiçaria possível, pois as Iyá mi, ancestrais
míticos
femininos,
falam
dos
poderes
femininos
em
seus
aspectos
mais
107
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
perigosos
e
destrutivos,
bem
como
criativos
e
geradores
de
vida.
Perso
-
nicam
os
poderes
ligados
ao
cultivo
da
terra
e
à
sensibilidade
ligada
à
natureza.
Essas
ancestrais
também
são
chamadas
de
Ajé
,
o
que
em
iorubá
signica
bruxa
ou
feiticeira,
embora
não
sejam
realmente
bruxas,
mas
as
avós,
ou
as
mães
em
cólera
que,
sem
sua
boa
vontade,
as
sociedades
se
desintegrariam
e a
vida
não poderia
continuar (CARNEIRO;
CUR
Y
,
1993;
DRA
VET
,
2013;
REIS,
2020;
VERGER,
2018).
Iyami
Oxorongá
tem
a
coruja,
pássaro
noturno,
como
efígie.
Seus
mitos
são
poucos
conhecidos,
mas
sabe-se
que
homens
só podem
se
aproximar
aos
locais
de
culto
desta
Senhora
se
for
convidado
e,
mesmo
assim,
terá
de
se
apresentar
de
saia
e
cabeça
coberta.
Os
mistérios
em
torno
dessa
Senhora
dos
Pássaros,
que
aqui
arriscamos
ligar
ao
mito
de
Lilith,
envolvem
castigos
por
ousadia
de
aproximação,
temor
de
que
o pássaro
pouse
na
cabeça
dos
praticantes,
pos
-
sível
sinal de
mau agouro.
Aquilo
que se
oculta
na noite
é mistério,
arcano,
arcaico, de algum modo precisa ser temido.
O
fato
dessas
entidades
se
esconderem
garante
a
manutenção
do
que
só
o
segredo
pode assegurar
. Paradoxalmente,
é
no oculto
e
no silêncio
que
o
saber dos
fundamentos
se preserva.
Salienta-se que
o
segredo e
o
voto de
silêncio
sempre
preservaram
saberes
que
os
livros,
tal
como
as
civilizações
de
semiótica
abstrata
os
concebe,
não
conseguem
fornecer
.
Parece
que
as
senhoras dos pássaros, feiticeiras, são as responsáveis por preservar as co
-
nexões entre homens, mulheres e os que não participam desta dualidade.
Além
da
Senhora
dos
Pássaros,
a
cosmogonia
afrobrasileira
tam
-
bém
apresenta
mitos
de
vários
Orixás
femininos. Na
Umbanda,
cultuam-se
seis: Nanã,
Y
ewá, Obá,
Y
emanjá,
Y
ansã, Oxum, sendo a sétima, Otin,
uma
entidade demiúr
gica controversa.
Um olhar
em torno
de como
são caracte
-
rizadas
e
cultuadas
essas
deusas também
traz
elementos
sobre a
construção
do poder feminino nas religiões
de matriz africana do Brasil e seus
desdo
-
bramentos
no
imaginário
coletivo.
Guardado
o
mistério
dos
Pássaros
na
escuridão,
Orixás
manifestam
alguns
de
seus
aspectos
nas
suas
aparições
e
atuações
nos
corpos
e
na
terra.
O
termo
orixá
relaciona
ori
(cabeça,
co
-
nhecimento, força
interna)
com ésas
(espírito ancestral).
Os
poderes guar
-
dados
e
simbolizados
pelos
Orixás
femininos,
yabás
,
Mães
(ya)
Rainhas,
se sintetizam em
poder matricial original
(Nanã), poder selvagem,
ordeiro
Y
abás: forças femininas
108
Corpo, políticas e territorialidades
e
guerreiro
(Obá
e
Y
ansã),
poder
de
geração
e
conhecimento
(Y
emanjá
e
Oxum),
poder
de
sedução
(Oxum
e
Y
ansã)
e
poder
mágico
(Ewá
e
Otin).
Embora
possamos
determinar
o
tipo
de
poder
correspondente
a
cada
Orixá,
todos
se
encontram
reunidos
nas
Orixás
femininas,
constituindo
uma
só
força
que
poderíamos
chamar
de
força
matriz
do
universo,
força
que
dá
a
vida,
gera,
transforma,
ama
e
cria.
Os
orixás
apresentam
elementos
e
forças
da
natureza,
estando,
cada
orixá,
associada
a
determinados
elementos
tais
como
plantas,
animais,
cores,
atmosferas,
situações
climáticas
e
emoções
(CARNEIRO; CUR
Y
, 1993; COST
A, 2015; DRA
VET
, 2013;
REIS, 2020;
VERGER, 2018).
A
existência
de
orixás
femininos,
masculinos
e
ambivalentes
ou
andróginos,
expressa
uma
compreensão
profunda
da
própria
sexualidade
humana,
apresentada desde
os mitos
de
origem.
As
diferentes modalidades
de incorporação expressam
isso. Nanã Buruku,
cuja origem localiza-se
no
Daomé,
é
a
grande
deusa
da
fertilidade,
a
mãe-terra,
também
conhecida
como a vovó ou a grande ancestral. Faz-se presente, como Lilith, na lama.
Sua
força
é
a
dos
rios
lodosos,
seu
axé
está
no
fundo
dos
lagos
e
nos
am
-
bientes encharcados, apresentando a mistura da terra com a
água, lócus de
fertilidade.
Enquanto
ancestral
original,
Nanã
apresenta
o
próprio
princípio
da
fertilidade,
pois
ela
mesma
foi
autogerada.
Procriadora,
trata-se
de
um
ente
que
dá
a
vida.
Nanã
não
gosta
de
homens,
anciã,
é
quase
assexuada.
Contam
nos
terreiros
que
foi
rejeitada
por
Oxalá,
por
gerar
seres
“anor
-
mais”:
dela veio
Omulú
ou Obaluaiê,
que
carrega todas
as
doenças conta
-
giosas e
traz as epidemias e
Oxumaré, tanto homem
quanto mulher
, que
se
transmuta na
serpente mítica
que também
é o arco-íris,
o qual
liga o
céu e
a terra.
Deusa das águas
paradas, lagoa
onde está todo
o profundo
mistério
do
mundo,
Nanã
talvez
seja
o
orixá
feminino
mais
arcaico,
certamente
a
divindade
mais
velha
ligada
aos
mistérios
das
águas.
Nanã
gura
os
mis
-
térios da
vida e da
morte, protegendo os
ór
gãos
reprodutores da mulher
.
A
percepção
de
innitas
potencialidades
humanas
se
personica
em
Nanã.
T
odas
as
potências
da
natureza,
encarnadas
humanamente,
se
expressam
no
resto
do
panteão
iorubá,
apresentadas
pelos
demais
orixás.
Na
iconogra
-
a, se mistura com Sant’Ana, a avó.
As
yabás,
por pressão
colonizadora,
de
um
modo ou
de
outros,
são
sincretizadas
com
a
V
ir
gem
Maria,
quando
não
sua
mãe,
Ana,
como
no
caso
de
Nanã. Y
emanjá,
orixá
do
mar
,
a
mais
popular
das
yabás,
se
torna
Nossa
Senhora
dos
Navegantes,
enquanto
Oxum,
senhora
do
ouro,
orixá
das
águas doces,
Nossa
Senhora
da Conceição,
em
sua
precipitação como
109
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
cascata,
Nossa
Senhora
das
Graças.
Embora
não
se
ignore
o
problema
do
embranquecimento
das
forças
ancestrais
africanas,
o
presente
texto
traba
-
lha
a
partir
do
pluralismo
que
se
imiscuí
de
modo
que
oposições
deixem
de
ser
a
impossibilidade
de
se
enxergar
outra
faceta
e
permitir
o
circular
amplo
dessas
entidades.
Na
umbanda,
religiosidade
sincrética
brasileira,
as
potências
cósmicas
se
exprimem
nos
Erês
e
Caboclos,
que
qualquer
iniciado,
homem
ou
mulher
,
poderá
pertencer
ou
“carregar”,
de
modo
a
outros
panteões, orientais
e
indígenas, participarem
dos
cultos. Se
pensar
-
mos em termos de arcanos,
elemento que extrapola os mitos, uma vez
que
suas
múltiplas
variações
de
imagens
traduzem
uma
polivocidade
de
forças,
concretas,
empíricas,
vividas,
ainda
que,
por
sua
ancestralidade,
tais
deu
-
sas,
um
tanto
demonizadas
em
alguns
segmentos
sociais,
especialmente
em
igrejas
neopentecostais
não esclarecidas,
trazem em
suas
guras poten
-
tes efígies de resistência, mesmo quando sincretizadas.
T
ais
deusas
manifestam
forças
inevitáveis
da
vida
e
da
natureza,
Otim, que
quando
mulher tinha
quatro
seios e
contam que
virou
um rio,
o
trabalho
da
dor
com
a
cortadeira
Obá,
a
relação
com
os
mortos
(eguns)
com
as
movimentações
da intrépida
Iansã
ou
Oiá e,
ainda,
as brumas
e segredos
que
sussurra
Ewá,
a
única
verdadeiramente
virgem,
que
não
se
envolve
e
nem pertence
aos homens
e que é
o campo,
o fundo, o
plano imperceptível
por
onde
as
orixás
que
aparecem
surge.
Os
dois
Orixás
femininos
mais
relacionados
à
luta,
ao
trabalho
pesado e
à
guerra,
as
portadoras
de
faca
e
espada, são
Obá e
Y
ansã. Oxum,
que tem
múltiplos aspectos,
muitas faces,
muitas idades, também
aparece como guerreira. São
as Orixás que mais se
aproximam da força
feminina original em seu
aspecto selvagem, na
mani
-
pulação
e
entendimento,
do
manejo
de
instrumentos
e,
no
caso
de
Oxum,
a
leitura
de
oráculos.
T
odas
essas
deusas,
mesmo
na
doçura
e
suavidade,
apresentam agressividades
animais.
A
força
bruta –
mesmo que a
da névoa
–
faz-se
sentir
em
seus
elementos,
derrames,
expansões.
Ninguém
conse
-
gue car indiferente
ao vento, a neblina
densa, as correntezas
violentas e a
um
feitiço
ao qual
somente
o destino,
conhecido como
Ifã, pode
responder
.
Obá,
honra
à
própria
palavra em
sacrifício,
devoção
e
serviço.
Y
ansã,
guer
-
reira inquieta,
impulso e
movimento, dança
como a hindu
Kali, numa
ação
recíproca
entre
o
que
destrói
e
o
que
proporciona
a
reconstrução.
Oxum,
que joga
um facho
protetor com seu
espelho, trabalha
na defesa, responde
a um grande instinto protetor afastando o mal dos próprios lhos. Esse as
-
pecto
que
impede
a
aproximação do
inimigo
se
faz presente
primeiramente
em Nanã, aquela que absorve o pútrido e torna fértil o pior
, não admitindo
110
Corpo, políticas e territorialidades
o elemento agressor em sua proximidade.
Y
emanjá,
embora
muito
ameace,
protege
multidões
de
lhos
seus
e
os
lhos
de
todas
as
outras.
Sua
popularidade,
Rainha
do
Mar
,
a
torna
uma entendida
quase suprema
no imaginário brasileiro.
A
força feminina
é
ativa, quando unida se
torna quase invencível, portanto, perigosa. Nada
de
fragilidade,
vulnerabilidade,
fraquezas
associadas
ao
feminino.
Ninguém
pode
se
aproximar
indevidamente. A
mulher
guerreira
é
uma
imagem
de
destaque
porque
muitas
mulheres,
não
raro,
têm
que
lutar
sozinhas
para
manter
suas famílias,
criar seus
lhos,
pagar suas
contas.
Mais que
a
gura
da mãe, a da guerreira é certamente hoje
uma gura emblemática da femi
-
nilidade brasileira.
O
povo
de
santo
diz
que
“com
as
lhas
de
Iansã”,
essa
que
manda
e desmanda,
que tem a força
de um búfalo, a
única que dança
com Omulu,
“ninguém
pode”.
Filhas
e
lhos
dela
são
temidos
e
respeitados.
Os
mitos
falam
de
Iansã,
senhora
dos
raios
e
das
tempestades,
com
Xangô,
Iansã
com
Ogun, Iansã
com
Oxóssi ou
Odé. Mulher
ardente,
ela passa
por
todos.
Se,
na sociedade
de moral
patriarcal a
insubordinação feminina
não é
acei
-
ta, ela
é venerada
no candomblé, na
umbanda e
em outras expressões
de fé
afro-brasileiras.
Iansã
e
Obá,
mesmo
que
exemplos
de
entrega
amorosa
e
física,
é
expressão
de
uma
diligência
que,
em
parte,
o
cristianismo
apresen
-
ta
na “serva
de
Deus”
que Maria
declara
ser
,
no Evangelho
de
São
Lucas,
único
que
a
menciona.
Essa fortaleza,
fruto
de
uma
disciplina
das
ações
e
passe
certeiro,
de
algum
modo
também
é
observada
nas
heroínas
do
Antigo
T
estamento,
de
acordo
com
Robles,
em
Dalila,
acrescentando-se
Débora,
Ruth,
Ester
,
Judith
e
Dina.
T
odavia,
muito
distante
da
gura
da
Mulher
Forte (ESTÉS,
2012), o
grande
estereótipo da
mulher brasileira
é o
da sen
-
sualidade
e da
beleza.
Oxum, aquela
a quem
Exu
deu canal
para
Orunmilá,
Aquele que
tudo sabe
e dá pistas
para que
Oxum desvende e
Y
ansã, aquela
que
subjugou
os
homens
em
seus
próprios
caminhos,
encarnam
as
gran
-
des
sedutoras.
Contam
os
Babas,
Pais
de
Santo,
que
todos
os
Orixás
são
apaixonados por elas. Oxum, aparentemente, é
mais passiva, não se mexe,
chora muito,
é toda de cafunés
e mel.
Y
ansã, impulso que
conduz à ação, é
sempre
ativa.
Enquanto
a sedução
de
Oxum se
dá
pela
graça física,
sabores
e
adornos,
o
poder
de
Y
ansã
está
nas
atitudes,
no
seu
movimento,
na
sua
coragem
e luz.
Deusa
do fogo
e das
tempestades, assim
como seu
marido
e
Rei, Xangô,
tem
domínio sobre
os trovões,
ela controla
ventania e
tem, em
si,
os
raios.
Carrega
uma
reluzente
espada
e
o
eiru
ou
eiroxim,
uma
arma
espiritual
de
crina de
cavalo
com a
qual Iansã
espanta os
espíritos
dos mor
-
111
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
tos. Por isso,
há relatos em terreiros
que dizem que
Iansã é a única
a entrar
nos ritos secretos dos homens.
Há
raros
exemplos
de
presença
feminina
em
sociedades
secretas,
poucas
eram
autorizadas
a
participar;
“A
chea
da
Sociedade
Secreta
Fe
-
minina Geledé,
existente na
África e
que alguns
dizem ter existido
no Bra
-
sil,
é
atribuída
à
Obá”
(CARNEIRO;
CUR
Y
,
1993,
p.
25),
orixá
dos
mis
-
térios e das paixões. Obá, não temos certeza, parece ser
uma destas sibilas
iniciadas,
não
por
ter
cortado
a
própria
orelha,
mas
por
ser
conhecida
como
iyabá
guerreira,
que
tem
por
armas
um
escudo,
por
vezes
uma
adaga,
que
também é a faca sacricial e o instrumento de
corte na preparação de ebós
(oferendas).
É
uma
das
mulheres
de
Xangô,
para
quem
se
sacricou.
Por
isso, protege a orelha que não tem.
Y
ewá,
aquela
que
pouco
se
dene
entre
a
água
e
o
ar
,
assim
como
Otim, espécie
de Dafne
masculina, ninfa
tanto da
água quanto da
mata, as
-
sim como
Oxumaré, homem
e mulher
ao mesmo
tempo, são
forças ligadas
à
magia
e
a
transformação.
Magia,
uma
espécie
de
bori,
conhecimento,
arte,
ciência,
um
saber
de
si
e
das
forças,
é
o
que
possibilita,
via
instrumentos,
guras,
cânticos, danças,
conexão com
o que
não é
dado simplesmente
aos
cinco sentidos,
e sim,
ao que, sem
deixar de
se relacionar com
estes senti
-
dos,
se
liga
a
um
tipo
de
sentido
outro,
que
nem
sempre
a
palavra
ou
a
coisa
exprime.
Ewá ou Y
ewá
se
estende a
toda
atmosfera, aquela
que
também é
orvalho,
aurora,
que
se
mostra
em
transições
e
na
variação
coloríca
dos
fundos
míticos.
Sua
força
é
um
elemento
etéreo,
que
mostra
a
passagem
entre a escuridão e a luz, diluindo os contastes presentes em toda criação.
Como nas Escrituras, as tradições africanas
da Costa da Guiné con
-
tam
que
o
que
se
cria
advém
de
um
fundo
escuro
innito,
no
qual
se
dis
-
tingue a luz, que
se conduz por uma vida como
um raio ou astro luminoso
e
quando
for
seu
destino,
volta
daquilo
que
brilhou
em
vida
ao
ambiente
escuro da
morte. Intuição,
vidência e escuta
além do
audível tornam essas
guras
bruxas,
no
sentido
colonial
e
barroco
do
termo.
Mulheres
que
po
-
dem
ver
o
que
ninguém
percebe,
conhecem
o
bem
e
o
mal
para
além
das
atitudes
que
ferem
os
seus
corpos.
Sabem
daquilo
que
os
outros
não
po
-
dem saber
,
pois saber
que bem
e mal
são
ilusões necessárias
para conter
a
crueldade da
existência,
as faz
trabalhar com
o
poder oculto,
dos pássaros
Magia e transformação
112
Corpo, políticas e territorialidades
da
noite,
daqueles
que
se
guiam
na
escuridão,
que
pressentem
ameaças
e
transpõem obstáculos.
São o sétimo
pássaro, aquele que
voa entre a
árvore
do
bem
e
a
árvore
do
mal:
a
feitiçaria
é
o
próprio
conhecimento
das
árvores
e impede que caia em armadilhas.
A
sabedoria feminina,
relegada a gura
da bruxa, é
considerada nos
terreiros,
entre
os
tantos
mistérios
dos
Orixás
-
mesmo
frente
os
de
Osanha,
aquele
que
faz
as
poções
e
maneja
com
as
ervas
-
o
aspecto
mais
perigo
-
so, fascinante
e assustador
das práticas
e ritos
afro-ameríndios brasileiros.
Diante de mistérios,
gurados em arcanos, se
requer grande cuidado. Uma
vez
sentidas
as
suas forças,
não
se pode
car
indiferente.
T
rata-se
de
forças
naturais, por
vezes microscópicas, quase
imensuráveis, que, se
não as res
-
peitarmos, acabam com a humanidade.
A
aparição
da
Pombagira
gera
efeitos
sociais
e
culturais
no
femi
-
nino,
operando
nas
de-formações
e
amálgamas
quanto
à
compreensão
da
gura
mulher
-feiticeira
no
imaginário
brasileiro.
O
fascínio
das
deusas,
em
qualquer
que seja
o aspecto
que sua
gura apresente,
é
o conhecimento
em
torno do que vem a ser uma força feminina. O
desconhecimento deixa hu
-
manos
profundamente crédulos,
inseguros,
manejáveis, certos
de
que exis
-
tem
malefícios.
Palavras
incompreendidas
regem
atos
dos
que
não
conse
-
guem
enxergar
as
consequências
daquilo
que
reproduzem.
Se
há
receio
e
preconceito
em
relação
a
seus
cultos,
gerando
inúmeras
reações
pejorativas
perante
sua
devoção
e
ainda
rejeição
aos
ensinamentos
práticos
que
a
ritua
-
lística
apresenta, seja
na
história, seja
na atualidade,
é
porque os
dualismos
que
regem
a
humanidade
entre
os
que
se
consideram
do
“bem”
e
os
que
são
apontados
como
“maus”
ainda
não
foram
superados.
Personica-se
este
problema
na
gura
da
bruxa
no
Ocidente,
observando
a
repressão
a
que
foram
submetidas
aquelas
associadas
a
tais
conhecimentos,
segredos
e mestrias.
A
História,
especialmente
a
que
marca
o
início
do
mercantilismo
global
que
vivemos
até
hoje,
que
trata
da
perseguição
a
mulheres
tidas
como
“bruxas”
(FEDERECI, 2017),
constitui
indício
do quão
difícil é
para
a sociedade aceitar mulheres sábias
e livres. Outro indício são as
caricatu
-
ras
e
demonizações
que
o
elemento
selvagem,
acrescido
do
poder
feiticeiro
do
conhecimento
da
vida,
da
morte,
das
curas
e
das
artes,
suscita
ao
ima
-
ginário
coletivo. A
mulher
é
tomada
como
louca,
histérica,
endemoniada,
indomável,
desgraçada,
víbora.
Mesmo
que
este
poder
seja
reverenciado,
por outro
lado, quando
ele se
manifesta na
vida terrena, as
reações daque
-
113
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
les que não o compreendem podem ser violentas e destruidoras.
Na
umbanda
sincrética
são
Exus
e
Pombagiras,
guias
de
defesa
e
transformação,
forças
que
abrem,
trancam,
inuenciam
e
amarram
os
acontecimentos de
modo que
todos
cumpram seus
destinos e
desígnios da
melhor
forma
possível.
A
força
feminina
básica,
ao
ser
gurada
nas
Pom
-
bagiras, associa-se, mais do que um princípio mágico de conexão, ao ima
-
ginário da prostituta, mulher
sedutora, perigosa, “mulher da vida”, de
vida
livre, mulher
de vários
homens. Ela
é a
que, de bom
grado, levanta
a saia.
Essa
gura é
temida por
seu
poder
, dizem
que
permite tudo
na obtenção
de
prazer
, que age no
amor e relacionamentos.
T
em muitos nomes
e aspectos:
Maria
Molambo,
Maria
Padilha,
Sete-Saias,
Mirongueira,
Pomba-gira
da
Praia,
Maria
da
Praia,
Dona
da
Lira,
Rainha
do
Cabaré,
Rainha
da
Encruza,
Pomba-gira Menina, Dama
de Preto, Rosa
Caveira, Maria Quitéria, Maria
Bonita,
Maria Navalha,
da Lua,
da Figueira,
A
dos
Sete Cruzeiros,
Pomba
-
-gira Cigana, Diaba, Madame Satã, Rainha da Noite, Rainha dos
Infernos,
Senhora das Feras, Pomba-gira
das
Almas, Mulher de Branco, a da
Calun
-
ga, Filha
de Omulu, Senhora
das
T
revas, entre outros
(COST
A,
2015). Ex
-
plicam nos
terreiros que cada
uma dessas
tem uma história,
cada uma tem
um
poder
,
qualidades
diferentes
nas
mãos,
uma
maneira
de
se
portar
e
se
movimentar
. Cada qual expressa uma força, para cada caso invoca-se uma
pomba-gira diferente.
T
anto homens
como mulheres incorporam
a pomba
-
-gira,
as
forças
femininas
estão
em
todos,
e
a
força
está
além
da
diferen
-
ciação
de
gêneros,
ou
seja,
trata-se do
feminino
e
não
necessariamente
de
mulheres.
Esse
feminino,
na
cosmogonia
afrobrasileira,
é
força
emotiva,
intuitiva, instintiva
e vinculada
ao selvagem.
Desdobra-se em
poder de
ge
-
ração, poder guerreiro, poder de sedução e poder de feitiçaria.
Os
poderes
presentes
nos
Orixás
preservados
pelo
segredo
de
uma
liturgia
mágica,
calados
pela
dominação
masculina
e
supremacia
branca,
quando
aparecem,
incomodam.
A
pomba-gira
não
é
uma
gura
isolada,
oculta
na
noite,
de
modo estritamente
profano.
Transcendente
entre
o
que é
mais caro e sagrado
ao espírito que agrega a
humanidade e as divisões
so
-
ciais, ela
porta
de todas
as
forças do
feminino autogeradas
com
Nanã, nas
manifestações
de
força, belezas
e
atitudes
de Y
ansã
e
Oxum,
no espiritual
inabarcável
dos
oceanos
de
Y
emanjá,
na
transubstanciação
de
Y
ewá,
nos
sacrifícios de
Obá, nos segredos
de Otim e
em todos os
mistérios que, por
ignorarmos
a
amplitude
desta
cultura,
desconhecemos.
Essa
pomba-gira
que
gargalha,
canta,
xinga,
quebra
tabus,
expressa
o
que
não
se
ousa,
dança
e
gira
no
corpo
palpável,
em
força
imanente.
Sua
presença
na
vida
brasi
-
114
Corpo, políticas e territorialidades
leira
vem
tirar
o
corpo
da
imobilidade,
incitando
ao
movimento
e
à
ação.
Gosta
de
zombar
,
debochar
,
rir
de
tudo
aquilo
que
as
civilidades
impõem
como
limitação
aos
homens
e
às
mulheres,
atuando
diretamente
nos
cor
-
pos. “Os sábios percebiam o espírito da deusa como imanente ao
corpo de
todas as
mulheres” (W
ALKER, 2001,
p. 70),
de modo
a poder se
dizer que
a pomba-gira trata de
um tipo dionisíaco do feminino. Essa gura
trabalha
nas
regiões
em
que
residem
os
maiores
tabus:
amor
,
morte
e
sexualidade.
Se ela
gosta de
brincar
, faz
pouco
caso das
civilidades e
prefere a
liberda
-
de;
se ela
é movimento
e
ação, não
surpreende
que a
Pombagira
jogue e
ria
com
aquilo
que
mais
desestabiliza
a
ordem
social.
Pode-se
dizer
que
Ela,
a
Demônia,
tão
próxima
das
Deusas,
bagunça,
literalmente,
com
os
bina
-
rismos,
com papéis
denidos e
marcações que
determinam corpos,
almas
e
pessoas como parte de algo.
Desconstruir
a
lógica
binária,
partidária,
de
cunho
opositório,
impli
-
ca romper
com lugares marcados.
Não se
trata de reproduzir
classicações
entre dominantes e dominados, excluídos
e incluídos, mas localizar as po
-
sições dos
sujeitos
nos discursos
por meio
do que
Foucault
apontou como
“sinais de pertencimento”. Essa breve análise
mostra, pelas entidades aqui
descritas,
as
fugas das
marcações sociais
frente
a um
sistema moral
estabe
-
lecido pela
lógica dualista.
Neste
aspecto, os
limites das
possibilidades de
posicionamento entre
ser
“do bem”
ou ser
“do
mal” funcionam
como me
-
canismos
de
controle
na
agência
dos
processos
de
identicação.
Em
uma
de suas entrevistas
em
Micr
ofísica do Poder
, Foucault
lamenta, após mais
de uma década de
trabalho incansável, que sua obra funcione “para
alguns
como sinal de pertencimento”,
como se ao tratar dos loucos, dos
doentes e
dos detentos, estivesse estabelecendo um “lado correto”.
Fazendo uma
forma
de história
sobre
a ótica
dos
excluídos, dos
in
-
fames,
dos execrados,
dos
diferentes, Foucault
não
estava promovendo
ne
-
nhum
lugar
,
tampouco
inscrevendo
os sujeitos
de
seus estudos
neste
ou na
-
quele “lado”:
“é preciso
passar para
o
outro lado
– o
“lado correto”
– mas
para
procurar
se
desprender
destes
mecanismos
que
fazem
aparecer
dois
lados,
para
dissolver
esta
falsa unidade,
a
natureza ilusória
deste
outro
lado
que tomamos partido”
(FOUCAUL
T
, 1996, p. 239).
Não há Deus tampou
-
co
Demônio
quando a
Figura é
analisada
em todas
as suas
facetas. Imagem
Quebra do dual
115
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
do
mal
por
excelência,
guras
diabólicas,
merece
atenção
porque
é
por
meio
de sua
iconograa que
alguns elementos
relativos ao
mal
se estabele
-
ceram:
predominância do
preto e
do vermelho,
guampas, asas
de morcego,
hibidrismo
animal,
pupilas
verticais,
caninos
aados,
entre
outros.
Entre
-
tanto, é fácil constatar
que diabos e demônios
não são as guras malécas
mais recorrentes nas narrativas
atuais, sendo preteridos por alienígenas
ou
vampiros.
Apesar
de
não
serem
os
malvados
“da
ocasião”,
as
guras
do
diabo
e de
seus demônios
legaram suas
roupagens na
construção
de
muitos
vilões e, quando femininos, não passam indiferentes e causam reações.
As tentações diabólicas e sua ameaça
de danação eterna cumpriram
um
papel
de
extrema
importância
histórica:
a
disseminação
do
medo.
Se
hoje
em
dia
não
é
mais
o
diabo
que
assusta,
mas
sim
a
violência
e
a
crimina
-
lidade anunciadas
diariamente
pelos noticiários,
a
função do
medo
é sem
-
pre a mesma:
acuar e retrair
os sujeitos que
por ventura ousem ultrapassar
os
limites do
perigo. Eciente
mecanismo de
controle, o
medo
funciona na
linha
limítrofe
na
qual
paradoxalmente
trafegamos.
Na
ameaça
dos
perigos
que
colocam
em
risco
nossas
almas
e
nossas
vidas,
o
discurso
da
salvação
é
efetivado juntamente com
a danação daquilo
que, por desconhecimento,
o
ignoto gura
como o
Mal.
A
busca de
um “lugar
seguro”, espaço subjetivo
no qual o
“si” pode existir
sem ameaças é sempre
um eciente mecanismo
para
o
estabelecimento
de
regimes
discursivos
tomados
como
“verdade”.
Senhor
das
mentiras,
mestre
do
engano,
personicação
da
destrutividade
deliberada
(RUSSEL,
1991, p.
16),
o
diabo,
Satanás,
o acusador
de
Deus,
é o agente fundante das contradições.
A
verdade absoluta é questionada.
Conhecemos a
bipartição
do absoluto e
a dissolução
do que
se tinha
como
“verdadeiro” porque
a
serpente, animal
das
Grandes
Mães arcaicas,
uma
das
gurações
do
demônio,
nos
incitou
a
experimentá-lo.
O
mito
do
paraíso,
no
qual
o homem
prova
o fruto
do
conhecimento do
bem
e do
mal,
ilustra
o
papel
do
diabo
como
agente
da
dualidade
que
cindiu
a
humani
-
dade,
nos afastando
da
unidade criador/criação
experimentada
no paraíso.
Dividido
e descentrado,
o sujeito
trará
até os
dias de
hoje
as marcas
do que
as religiões cristãs
e judaicas denominam
“pecado original”: nossa atração
por outra verdade, pelo contra-discurso que nos seduz.
As
guras
–
sejam
elas
personicações
conceituais
ou
apresenta
-
ções
visuais
e
literárias
de
forças
–
tanto
as
sagradas
quanto
as
tomadas
pejorativamente, têm
a capacidade
de contrapor os
ditos que
levam à
men
-
tira
total. O
que
mente
é
o que
impede
de
vermos
o outro
lado
das
coisas,
116
Corpo, políticas e territorialidades
os muitos
lados de
algo, o
que nos
faz pensar
para além
da perspectiva
que
nos
é
oferecida.
Para
o
racionalista,
cuja
redenção
é
o
pensamento,
o
mal
é
força
desconhecida
e
selvagem,
o
instinto
que
não
se
deixa
levar
pela
razão.
O
mal
é
tudo
aquilo
que,
em
menor
ou
maior
intensidade,
denota
furor
animal
ilimitado.
Incontrolável,
o
mal
foi compreendido
no
alvorecer
das
ciências,
como
o
inconsciente
dominando
a
consciência.
Por
outro
lado
(até mesmo
o mal
tem dois
lados), a
consciência é o
próprio conhecimento
do mal. Do ponto de
vista psicanalítico, uma vez controlado o mal origina
o
recalcamento:
a
visão
ascética
do
mal
como
desejo.
Mesmo
vencido
e
exilado
para
os
conns
da
inconsciência,
o
mal
está
sempre
presente
e
a
consciência
precisa
abstraí-lo
sob
alguma
forma,
determinando
um
modo
de relação.
Sem
detectar onde
tal opositor
impede o
movimento,
de modo
a nunca o conhecermos sem castigos e sem temor
, pouco se avança.
Para
Foucault,
a
sociedade
é
um
campo
de
lutas
em
que
as
forças
opositórias
dinamizam
relações
de
poder
onde
posições,
mesmo
quando
há
subjugações,
são negociadas
e intercambiadas.
O poder
não comporta
neu
-
tralidades,
sua
imposição
sempre
compreende
certos
antagonismos,
mas
sempre
num embate
de forças.
Nesse sentido,
o
mito do
herói versus
vilão,
o do
amor sacro versus o
profano, gura uma luta
pelo poder que
mostra o
quanto
as
posições de
sujeito
nunca
são
imparciais.
A
busca
de
identica
-
ção com o
herói, a linda princesa,
a luz, é o
desejo, problemático, de estar
-
mos do
“lado correto”. O
problema é que
esse “lado
bom” é innitamente
mutável e depende dos múltiplos fatores que denem as subjetividades.
Apesar da complexidade que envolve
os processos de subjetivação,
somos
ensinados a
pertencermos
ao
“bem” e
lutarmos
por
ele sempre
que
necessário,
mesmo
quando
suas
convicções
estejam
aniquilando
outros
e
nitidamente
fazendo “mal”
a quem
aos “bons”
identiquem como
“maus”.
Aprendemos
que
o
“bem”
sempre
vence,
pois
os
poderes
de
“Deus”,
da
ciência
ou
da
moral
predominante,
tomados
como
o
Poder
de
todos
os
poderes,
sempre
estão
“certos”.
As
implicações
desta
miticação,
inde
-
pendentemente
da
posição
identitária
em
que
nos
colocamos,
envolvem
a
defesa
de
nossas
verdades
e
uma
postura
ética
quase
sempre
dualista:
“anal,
de
que
lado
você
está?”.
Por
isso
é
que
estamos
constantemente
procurando
alguma
coisa
para
culpar
,
para
servir
de
bode
expiatório
e
cum
-
prir
com
a
função
de
“mau”.
Detectar
o
mal
em
alguma
coisa,
sujeito
ou
sistema
é
um
recurso
para
aliviar
a
complexidade
dos
problemas
que
nos
circundam
e
a
impossibilidade
de
resoluções
que
a
maquinaria
civilizatória
117
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
pode apresentar
.
Desmiticar o mal e
torná-lo inexistente é como
arrancar
a
mola
propulsora de
todo o
processo e
não ter
como justicar
a barbárie,
o
erro, a ignorância, a estranheza, a selvageria, a anormalidade, a desordem.
A
educação
perderia
todo
o
seu
sentido,
tudo
seria
“bom”
neste
universo
indistinto no
qual não
temos nada
a
vencer
,
mais nada
para ensinar
e tam
-
pouco
aprender
, onde
não
existe
a
necessidade
de
combatermos
e
fazermos
nossas
verdades
preponderarem.
Orixás
e
yabás
são
guras
polifacetadas
que rompem com tais preponderâncias.
Mitos,
mesmo
quando
aparatos
difusores
de
“verdades”,
traçam
este
campo
no
qual todo
mal
é
ilusório, espetacular
e, por
vezes,
indolor
. Nosso
mundo
“real” está
intimamente
imbricado
com
gurações míticas,
guras
cujo
impacto
em
nossas
vidas
tem
sido
cada
vez
maior
.
Ao
mesmo
tem
-
po
em
que
a
cultura
visual
midiática,
com
sua
enunciação
contundente
e
breve,
dissemina
as
clássicas
posições
antagônicas
das
velhas
narrativas,
aprende-se
que as
verdades são
extremamente relativas
e que
podemos
nos
servir delas de
acordo com os interesses da
ocasião, sem deixarmos de
ser
corretos e do “bem”. Sobre esta incoerência
ética se constitui um modo de
existência
restritivo
e
belicoso,
perpetuado
nas
formas
binárias
de
com
-
preender o mundo, dividindo-o entre mocinhos e bandidos, santas e putas.
Os panteões
multifacetados, com
diversidades de forças,
deidades e
entidades com ensinamentos vários, Pombagiras, Macunaímas, Estamiras,
Zés
Pelintras
e
Ciganas
do
Pandeiro
aludem
a
identidades
não
mais
insti
-
tuídas sobre
o que se
é e o
que não
se é, entre
ser isto e
ser aquilo, mas
sim
sobre
isto
e
mais
aquilo,
sobre
nem
isto
e
nem
aquilo,
sobre
outra
coisa,
diferente.
Não
mais
a
diferença
entre
Bem
e
Mal,
mas
singularidades
de
devires
que
escapam
a
qualquer
aprisionamento.
Uma
subjetividade
além
dos
processos
identicatórios
na
qual
a
ética,
ao
invés de
ser
construída
so
-
bre conceitos
opostos e
excludentes,
que aceitam
somente um
único mito,
se
pautará
na
impossibilidade
de
uma
só
versão.
Produzida
por
afetos
inter
-
cambiáveis,
existe
aquela versão
que
dá
pistas
para
todas as
demais
e
que
compreende
manifestações
variadas
da
verdade.
Em
nossas
pesquisas
em
torno
do
feminino
(ZORDAN,
2005,
2017,
2019,
2021;
NAR
V
AZ,
2005,
2009,
2021),
especialmente
quanto
ao
tema
do
presente
ensaio,
o
qual
descreve
relações
que
ancoram
mitos
de
tradição
oral
em
imagens,
uma
composição
multirreferencial
de
autores
possibilita
trabalhar
com
pontos
estratégicos nunca reduzidos à lógica dual.
Nesse sentido, temos
investigado o que as
guras e narrativas míti
-
118
Corpo, políticas e territorialidades
cas
têm
a
nos
dizer
sobre
o
feminino,
que
modos
de
subjetivação
nos
ofere
-
cem, com
suas pedagogias, seus
rituais, suas magias
e bruxarias,
suas dan
-
ças,
suas
músicas,
seus
gestos.
Invocar
suas
forças
possibilita
a
invenção
de
novos modos
de habitar
o
corpo, a
T
erra,
fazer mundos,
descolonizando
o pensamento e
desconstruindo as formas
binárias hegemônicas de pensar
corpos,
sexos,
gêneros,
sobretudo
sobre
as
mulheres
e
sobre
o
feminino,
com suas forças e magias.
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Corpo, políticas e territorialidades
Angélica V
ier Munhoz
Inauã W
eirich
Ribeiro
Jeferson Cristian Zick Camar
go
T
Territorialidades da docência:
Um olhar para o arquivo do
Projeto Objetos de Pensar
123
Este texto, que conta com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamen-
to de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), está atrelado ao Grupo
de Pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq), existente desde
2013 e vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Ensino da Univer
-
sidade do V
ale do
T
aquari - Univates.
T
em como objetivo apresentar uma
pesquisa que vem sendo produzida com o material empírico criado pelo
Projeto Objetos de Pensar nos anos de 2019 e 2020. O referido projeto foi
desenvolvido pelo grupo de pesquisa CEM, em parceria com o Projeto de
Extensão Pensamento Nômade e a Área de
Artes da Univates. T
eve como
objetivo propor a criação de per
guntas/questões/indagações/problematiza-
ções que não necessariamente precisem de respostas e que coloquem o
pensamento a se mover
, saindo dos lugares comuns, dos clichês, das coisas
já ditas e pensadas no campo educacional.
A
partir desse objetivo, foi publicado um livro,
Objetos de pensar:
exer
cícios para a docência
(MUNHOZ
et al.
, 2020), com cinquenta obje-
tos de pensar
. Desses objetos, dezesseis foram experimentados em trinta
e
duas
ocinas.
Essas
ocinas
foram
desenvolvidas
em
escolas
e
Univer
-
sidades, com estudantes e professores de ensino básico, ensino superior e
pós-graduação. Além
das
ocinas,
foi
realizada
uma
exposição
com
seus
resultados e objetos na Galeria Sesc Lajeado, no período de 16 de outubro
a 1 de dezembro de 2019.
T
odas as atividades e materiais produzidos no
projeto
–
objetos
de
pensar
,
diários
de
ocinas,
exercícios
realizados
nas
ocinas
e exposição
–
passaram
por
um
processo arquivístico.
Destaca-se
que, no contexto pandêmico causado pelo vírus SARS-CoV
-2, foi lançado
um segundo projeto, intitulado Objetos de Pensar na Pandemia. Os 40 ob-
jetos inscritos foram publicados no livro “
Objetos de pensar na pandemia:
exer
cícios para indagar/per
durar a docência”
(MUNHOZ
et al
., 2020).
O processo arquivístico realizado com o material do primeiro Pro-
jeto Objetos de Pensar será apresentado nas próximas seções. Iniciamos
abordando o método de arquivo de Michel Foucault (2020) sob a pers-
pectiva topológica dos enunciados (DELEUZE, 2005). Nessa via, toma-
mos o arquivo como um território onde os enunciados se movimentam por
meio de ações verbais. Seguimos com a apresentação dos procedimentos
de arquivamento e arquivização desenvolvidos por
Aquino e V
al (2018).
Posteriormente, expomos o processo de arquivização de imagens de do-
cência, cujo arquivo se desdobrou em um novo processo de arquivização
dos verbos que traçam movimentos, produzindo territorialidades em tor
-
no de “docência”, “docente”, “professor(a)” e “prof(a)”. Na última seção,
124
Corpo, políticas e territorialidades
Nesta seção, apresentamos o modo como compreendemos o arqui-
vo em Michel Foucault, a partir da obra
A ar
queologia do saber
(2020).
O arquivo pode ser entendido como “a lei do que pode ser dito, o sistema
que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singula-
res” (FOUCAUL
T
, 2020, p. 158); em outras palavras, o arquivo pode ser
um conjunto de materialidades, mas também aquilo que faz funcionar de-
terminados discursos. Os discursos, por sua vez, compõem determinadas
territorialidades, as quais demandam um mapeamento das repetições enun-
ciativas, dos traços, das fronteiras, das linhas do arquivo.
Essas territorialidades compostas em um arquivo expressam-se per
-
formativamente por mínimos movimentos. Os movimentos das territoriali-
dades exprimem intensidades por meio de gestualidades enunciativas, que
acabam por dar margens a um espaço intensivo.
Assim, podemos compre-
ender o arquivo como um território onde os enunciados passam a ser toma-
dos como intensidades que ali se movimentam, em uma heterotopologia
(FOUCAUL
T
, 2013).
Nessa abordagem arquivística, o arquivo funciona em uma pers-
pectiva topológica dos enunciados; uma “topologia dos enunciados, que
se opõe à tipologia das preposições e à dialética das frases” (DELEUZE,
2005, p. 18). Os enunciados, nesse sentido, passam por um processo de
localização no território do arquivo.
Ao descrevê-los, buscamos desenhar
“as margens povoadas
de outros enunciados” (FOUCAUL
T
, 2020, p. 1
18),
compreender as intensidades que produzem um território-arquivo.
No território de um arquivo foucaultiano, há um front de análise
(FOUCAUL
T
, 2020), em que é preciso haver estratégias de rastreamento
dos enunciados. Para tal tarefa, tomamos os procedimentos de arquivamen-
to e arquivização de
Aquino e V
al (2018). Esses procedimentos permitem
que nos apropriemos do material empírico do Projeto Objetos de Pensar
como um território e localizemos os enunciados-intensidades que nele se
expressam. Enquanto território, o arquivo também é corpo que, permeado
por discursividades, se faz lugar (FOUCAUL
T
, 2013).
Ar
quivo-Corpo-T
erritório
descrevemos os principais movimentos da docência traçados no arquivo
criado.
125
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
O procedimento de arquivamento (AQUINO; V
AL, 2018) possibi-
lita o rastreamento dos enunciados no território-arquivo, de maneira que
“corresponde, portanto, à tarefa de reordenação transversal das fontes, por
meio das (re)montagens das lacunas discursivas em torno de determina-
dos problemas concretos abrigados no e pelo arquivo” (AQUINO;
V
AL,
2018, p. 49). O arquivamento atua como uma espécie de desterritorializa-
ção (DELEUZE; GUA
TT
ARI, 1992) dos discursos, tomando a posição dos
enunciados e criando, assim, um novo mapa.
Esse processo de arquivamento funciona a partir dos problemas
demarcados pelos pesquisadores, cujo interesse varia no encontro com o
arquivo. No caso do Projeto Objetos de Pensar
, o material empírico foi
reorganizado, desterritorializado,
a partir dos objetos de pensar utilizados
nas
ocinas.
Dessa
forma,
criamos
um
arquivo
em
que
foram
indicadas
as materialidades repetíveis (FOUCAUL
T
, 2020), tais como: os próprios
Objetos aplicados,
anotações
capturadas por
foto, fotos
das
ocinas, fotos
do material produzido pelas/os participantes, desenhos, diários de campo
produzidos pela equipe do projeto, minicartazes, cartazes, post its, vídeos,
cartas e tirinhas com frases utilizadas em dinâmicas.
Esse processo de arquivamento possibilitou desterritorializar os
enunciados das materialidades repetíveis, o que culminou em uma reter
-
ritorialização de um arquivo de imagens de docência. O arquivamento
funcionou como uma desterritorialização dos discursos e possibilitou uma
reterritorialização arquivística, visto que uma “desterritorialização absolu-
ta não existe sem reterritorialização.” (DELEUZE; GUA
TT
ARI, 1992, p.
131). Com a desterritorialização-arquivamento, pudemos reterritorializar o
arquivo a partir de imagens de docência, por um procedimento de arquivi-
zação (AQUINO; V
AL, 2018).
A
arquivização funciona como uma díade de imaginação-monta-
gem (AQUINO; V
AL, 2018) e reterritorializa os discursos do arquivo.
A
“arquivização oportuniza o encontro não somente com os papéis inertes
da
história,
mas
com
potências
ativas,
na
qualidade
de
pontos
de
inexão
que mobilizam e produzem ressonâncias, dada sua capacidade de produzir
desvio” (AQUINO; V
AL, 2018, p. 50, grifo nosso). Em um primeiro mo-
vimento de arquivização, tomamos o desvio das “imagens de docência”.
As “imagens de docência” foram utilizadas como um princípio or
-
ganizador
, de modo que compomos um novo arquivo de enunciados, que
produziram um novo território arquivístico. “A
desterritorialização de um
126
Corpo, políticas e territorialidades
tal
plano
não
exclui
uma
reterritorialização,
mas
a
arma
como
a
criação
de uma nova terra por vir” (DELEUZE; GUA
TT
ARI, 1992, p. 117).
A
ar
-
quivização-reterritorialização permitiu uma dobra do arquivo, uma nova
terra,
com
a qual
produzimos
um
artigo já
submetido
em
revista cientíca
.
Esse novo território tornou possível a criação de mais um processo
de arquivização. Em outras palavras, este texto é um terceiro movimento
arquivístico, criado a partir do desvio mobilizado pelas potências ativas
(AQUINO; V
AL, 2018) que se movimentam no arquivo. O arquivo das
imagens de docência do Projeto Objetos de Pensar foi reorganizado com
base nos enunciados que continham imagens de docência, docente, profes-
sor(a), prof(a).
Quadro 1 -
Arquivo das imagens de docência do
Projeto Objetos de Pensar
.
Objeto/Ocina
Imagem de docência
T
odos os professores muito prestativos durante o vídeo;
Uma
profa
disse:
“Para,
não
ca
olhando.
Não
gosto
que
me
olhem
enquanto escrevo”, e foi escrever em uma sala ao lado;
1.2
Descrição ocina
Durante
a
nossa
jornada,
aprendemos
que o
professor
auxilia
na cons
-
trução do conhecimento.
O professor é um intermediador desse conhecimento.
1.3
Carta 3
Fonte -
Elaborado pelos autores, 2021.
Como é possível observar no quadro acima, o arquivo ganhou outro
território, onde as imagens de docência reordenaram o material empíri-
co.
A
partir dessa desterritorialização, produzimos uma nova arquivização,
que será descrita na próxima seção.
53 - O título do artigo submetido foi “Arquivamento e arquivização de imagens poéticas de docência no arquivo do
Projeto Objetos de Pensar”.
53
Ar
quivização no território das imagens de docência
No corpo, experimentamos e arquivamos os acontecimentos – o
continuum variável de nossas existências –, traduzidos em ações de com-
127
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
bate contra o pensamento representacional, a autodestruição, as subjeti-
vações instituídas. Porém, ao arquivarmos no corpo os acontecimentos e
nossas experimentações, também o tornamos um vetor de exploração dos
limites e das possibilidades gestuais. Então, como experimentadores que
somos, o que nos interessa é o verbo. Como diz Deleuze (1998, p. 77), “os
verbos no innitivo são devires ilimitados”.
Em
cada
conguração
espaço-temporal,
o
corpo
pode arquivar
e,
si
-
multaneamente, pôr em movimento determinadas ações verbais, que tam-
bém podem ser gestualidades. Nesse sentido, ao arquivar o corpo se torna,
ele mesmo, arquivo de gestualidades. “O corpo, em suma, como arquivo
e arquivista de gestos instauradores da existência” (MUNHOZ;
AQUINO,
2020,
p.
45).
T
al
como
arma
Lepecki
(2015,
p.
35,
tradução
nossa):
“há
uma vontade de arquivar
, e arquivar também pode ser experimentar”.
A
partir da arquivização das imagens de docência do Projeto Ob-
jetos de Pensar
, buscou-se suspender os verbos que giram em torno das
palavras “docência”, “docente”, “professor(a)” e “prof(a)”. Essas palavras
funcionaram como territorialidades no arquivo, as quais se movimentam
por meio de verbos.
Assim, enquanto territorialidades, não abordamos es-
sas imagens (docência, docente, professor/a, prof/a) como sujeitos, visto
que, em uma perspectiva nietzschiana, este tal substrato – “sujeito” – não
existe; “não existe ‘ser
’
por trás do fazer
, do atuar
, do devir; ‘o agente’
é
uma
cção
acrescentada
à
ação
–
a
ação
é
tudo.”
(NIETZSCHE,
2009,
p.
33). Nesse modo de pensar
, os nomes, substantivos, sujeitos, são posições
(FOUCAUL
T
, 2020), e não “essências” de um ser
.
Ao localizarmos as posições no território do arquivo, o que passa a
interessar
-nos são as intensidades que as territorialidades expressam. Com
isso,
identicamos
os
verbos
colados
às
palavras
“docência”,
“docente”,
“professor(a)” e “prof(a)”, e não qualquer verbo expresso nas imagens.
Essas
quatro
palavras
são
cções
acrescentadas
aos
diversos
verbos
que
se reterritorializam nas imagens. Os verbos, portanto, falam dos movimen-
tos de docência enquanto territorialidades que se des-re-territorializam em
meio ao arquivo de imagens de docência do Projeto Objetos de Pensar
.
T
omando o arquivo como território, per
guntamo-nos: de que modos
a docência se des-re-territorializa no arquivo de imagens de docência do
Projeto Objetos de Pensar? Procedemos, então, a uma leitura de todas as
imagens
de
docência,
a
m
de
localizar
os
verbos
que
faziam
a
docência,
o docente e o(a) professor(a)/prof(a) se movimentarem. Buscamos mapear
128
Corpo, políticas e territorialidades
Quadro 2 -
Exemplo de critério de exclusão de imagens.
esses verbos, utilizando o seguinte critério: excluir imagens cujos enuncia-
dos não continham verbos associados com os termos – “docência”, “docen-
te”, “professor(a)” e “prof(a)”. No quadro abaixo, por exemplo, podemos
observar que na imagem excluída havia a nomeação do termo “professo-
res”, contudo, o verbo da oração não se refere a um movimento da docên-
cia. Já na imagem incluída, o termo “professor” não é o sujeito da oração,
mas o verbo “solicitado” denota uma ação executada pelo professor
.
Imagem exc
luída
Imagem incluída
Quantos
estudantes
conseguem
ler
durante
o
nal de semana?
Férias ou menos um
livro so
-
licitado pelo professor? (1.3 Carta 13).
Havia empatia entre alunos e professores?
(1.3 Carta 1).
Fonte -
Elaborado pelos autores, 2021.
Em alguns casos, havia “dobradinhas verbais”, ou, gramaticalmente
falando, locuções verbais. Nesses casos, tomamos o verbo principal da lo-
cução para traçar a linha do movimento realizado pela docência.
Quadro 3 -
Arquivo dos verbos localizados.
Dizer
Preocupar
Esforçar
Despertar
Invcentivar
Decidir
Falar
Escrever
Prestar
Auxiliar
(não) Ser
Mexer
Acreditar
Mudar
Solicitar
Fazer
Interessar
Usar
Resgatar
(Re)Pensar
Mediar
Aprender
Reetir
Oportunizar
Sentar
Perguntar
Saber
Cochichar
Exibir
Apresentar
Enxergar
Absorver
Te
r
Chamar
Aderir
Ensinar
T
rabalhar
Desistir
Motivar
Seguir
Revolucionar
Promover
Modicar
Sentenciar
Censurar
Entrosar
Participar
Compartilhar
Assinar
Analisar
Buscar
Desacomodar
Conformar
Dirigir
Ler
Estar
V
ariar
Receber
Virar
Conseguir
Explicar
Pegar
Polinizar
Sentir
T
rançar
Sonhar
Marcar
Carregar
Ir
Comentar
Dedicar
Chorar
Demorar
Pedir
74 verbos
Fonte -
Elaborado pelos autores, 2021.
129
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Conforme o
quadro acima,
foram identicados
74 verbos
diferentes
que traçam linhas dos movimentos da docência no território do arquivo
do Projeto Objetos de Pensar
. Desses verbos, alguns se repetiram muitas
vezes, enquanto outros apareceram uma única vez. Os verbos que não se
repetiram foram um total de 54:
mediar
, enxer
gar
, r
evolucionar
, pr
eocupar
,
falar
, mexer
, inter
essar
, saber
, absorver
, pr
omover
, esforçar
, escr
ever
, acr
e-
ditar
,
usar
,
r
eetir
,
cochichar
,
desistir
,
modicar
,
pr
estar
,
mudar
,
r
esgatar
,
oportunizar
,
exibir
,
chamar
, motivar
,
sentenciar
, solicitar
, apr
esentar
, ade
-
rir
, seguir
, censurar
, entr
osar
, buscar
, explicar
, sonhar
, dedicar
, participar
,
desacomodar
,
variar
,
pegar
,
mar
car
,
chorar
,
compartilhar
,
conformar
,
po
-
linizar
, carr
egar
, demorar
, assinar
, dirigir
, virar
, pedir
, analisar
, conseguir
e trançar
.
Fonte -
Elaborado pelos autores, 2021.
Ser (não ser)
Dizer
Ler
Auxiliar
Fazer
(Re)Pensar
Te
r
Despertar
Incentivar
T
rabalhara
Estar
Ensinar
Decidir
Aprender
Sentar
Receber
Sentir
Ir
Comentar
Perguntar
5
10
15
20
25
0
T
abela 1 -
V
erbos que se repetem nas imagens.
130
Corpo, políticas e territorialidades
Já os verbos que se repetiram foram um total de 20, como podemos
observar
no
gráco
acima.
São
eles:
ser (não ser), dizer
, ler
, auxiliar
, fa-
zer
,
(re)pensar
,
ter
,
despertar
,
incentivar
,
trabalhar
,
estar
,
ensinar
,
decidir
,
apr
ender
, sentar
, r
eceber
, sentir
, ir
, comentar
, per
guntar
.
O verbo
(não) ser
é o que mais se repetiu: 22 vezes. O segundo verbo que mais se repetiu
foi
dizer
, que apareceu sete vezes. O verbo
ler
apareceu cinco vezes. Os
verbos
auxiliar
, fazer
, (r
e)pensar e ter
apareceram quatro vezes. Os verbos
despertar
,
incentivar
,
trabalhar
e
esta
r apareceram três vezes. Os verbos
ensinar
, decidir
, apr
ender
, sentar
, r
eceber
, sentir
, ir
, comentar e per
guntar
se repetiram apenas duas vezes.
Intensidades de Docência ou des-r
e-territorialização?
Após
identicarmos
as
intensidades
que
se
expressam
no
arquivo,
perguntamo-nos: se
ação
e
cção
não
são
duas
coisas
separadas,
não
fun
-
cionam em uma relação de causa e efeito, de que modo as intensidades de
docência são expressas no território do arquivo? Essa per
gunta permitiu-
-nos, em um primeiro movimento, observar uma diferença entre “docên-
cia/docente” e “professoras(es)”. No arquivo das Imagens de Docência do
Projeto Objetos de Pensar
, a territorialidade docente que mais é investida é
a
de
“professor(a)”.
Podemos
armar
isso
porque,
para
161
repetições
do
descritor “prof” (prof, professor
, professores, profe, professora, psico-pro-
fe, profa), há apenas sete repetições do descritor “doc” (docente, docentes
e docência).
Antes de continuarmos a pensar sobre as diversas intensidades de
“professores(as)”, gostaríamos de olhar para a territorialidade da “docên-
cia/docente”, uma vez que essas territorialidades se repetiram poucas ve-
zes. Observam-se, no quadro abaixo, as sete imagens que mostram movi-
mentos a partir do termo “docente” ou “docência”. No quadro, dividimos
as imagens que emergiram junto a “docente(s)”
e “docência”, sendo que,
para o primeiro, temos cinco imagens e, para o segundo, apenas duas.
Ao buscar a repetição “doc” no arquivo, a primeira imagem do qua-
dro acima se reagrupou junto da territorialidade “docente”; entretanto, essa
imagem foi eleita no arquivo em virtude do termo “psico-profe”, que está
associado ao verbo “ser”. Observa-se que aqui o “docente” está associado
a um movimento de “encontro-inspiração”, sendo que o sujeito da ima-
gem, “eu”, se encontra associado à cção de “ser uma psico-profe”. Sobre
131
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
o tema do verbo “ser”, haverá uma seção mais adiante na qual se pode
observar que o “ser”, nesse procedimento arquivístico, toma um caráter de
movimento, não de essência, de forma que “psico-profe” é uma territoriali-
dade de docência no corpo-arquivo.
A
segunda e a terceira imagens do qua-
dro também remetem ao verbo “ser”, e há um “jeito de ser” docente, uma
possibilidade de “ser” a(o) docente, coisa que discutiremos mais adiante.
Quadro 4 -
T
erritorialidade de docência/docente.
Fonte -
Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
Docente(s)
Do
encontro
–
inspiração
docente
anal,
você
é
a
‘culpada’
de
eu
ser
uma
psico-profe
hoje.
(3.3 Carta 2).
Seu jeitinho
quieto foi
me cativando,
e seu modo
de olhar
o mundo e,
principalmente, encarar
os processos de
ensino e aprendizagem me
mostraram outro jeito
de ser docente (3.3
Carta
2).
Na
cadeira da
sua frente,
convide para
sentar
a pessoa
que te
inspirou
a ser
a(o) docente
que
és hoje. (3.1 Objeto).
Após a leitura individual, os docentes recebem a
segunda folha, contendo a primeira senten
-
ça,
decorrendo
dez
minutos
para
a
escrita,
o
segundo
relato
é
entregue,
acompanhado
de
mais olhares desconados. (2.2 Descrição ocina).
É
essa
escuta
e
cuidado
ao
(à)
outro
(a)
que
carrego
comigo
–
ou
tanto
–
na
minha
prática
docente (3.3 Carta 2).
O que a docência faz também pode ser arte. (4.1 Objeto).
Como a sua docência trança linhas? (6.1 Objeto).
Docência
A
quarta imagem coloca a territorialidade docente em um lugar de
recebimento, pois o docente estava em uma posição de participante da
ocina.
Percebe-se
que
esta
posição
de
sujeito
é
dada
pelo
ocineiro
que
descreveu
a
ocina
(característica
do
tipo
de
materialidade
repetível:
2.2
descrição ocina, na
qual a imagem
emer
giu).
O docente aqui
recebe uma
folha em que há uma sentença, tendo ele 10 minutos para escrita. Esse do-
cente, ao receber uma folha, põe-se a escrever depois de ler; é recebedor e
escritor e leitor
.
A
quinta imagem, por sua vez, coloca o docente em uma
posição da prática, uma prática carregada com um “eu” que escuta e cuida.
O docente é uma territorialidade que tem uma prática e que escuta e que
cuida.
132
Corpo, políticas e territorialidades
As duas imagens de “docência” estão associadas aos verbos “fazer”
e “trançar”. Interessante notar que a forma “docência” emer
giu apenas na
materialidade de “objeto”, ou seja, não foi produzida pelos participantes
das
ocinas
do
Projeto,
mas
por
autores
de
dois
objetos
diferentes.
Essa
forma emerge
junto de imagens com arte. O primeiro enunciado, na for-
ma
armativa,
põe
o
fazer
da
docência
como
arte,
enquanto
o
segundo
enunciado, na forma interrogativa, trata a docência como uma intensidade
artesanal que “trança linhas”.
A
“docência” ou “docente”, enquanto territorialidades, foram ex-
pressas como “inspiração”, “jeito de ser”, “ser”, “recebem folhas”, “práti-
ca”, “arte” e algo que “trança linhas”. Nas poucas vezes em que emer
giram,
não houve repetições enunciativas. Entretanto, ao serem colocadas junto
dos descritores “prof, professor
, professores, profe, professora, psico-pro-
fe, profa”, a repetição enunciativa do verbo “ser” reaparece. Na próxima
seção, descrevemos os modos pelos quais a intensidade do “(não) ser”
emergiu no arquivo de imagens de docência do Projeto Objetos de Pensar
.
“Ser” ou “Não ser”: Eis o (a) pr
ofessor (a)
No
texto
“Geolosoa”,
de
Deleuze
e
Guattari
(1992),
os
lóso
-
fos apresentam uma similaridade entre Hegel e Heiddeger ao abordarem a
origem
da
losoa
ocidental:
a
Grécia Antiga.
Nessa
origem,
a
diferença
grega que permite o emer
gir de uma losoa ocidental seria o verbo
ser
.
Desterritorializado, o grego se reterritorializa sobre sua
própria língua e seu tesouro linguístico, o verbo ser
.
Assim,
o
Oriente
não
está
antes
da
losoa,
mas
ao
lado,
porque
ele
pensa,
mas
não
pensa
o
Ser
.
E
a
losoa
mesma
passa
menos por graus do sujeito e do objeto, evolui menos do
que habita uma estrutura do Ser (DELEUZE; GUA
TT
ARI,
1992, p. 124)..
O “ser” como verbo em uma estrutura linguística aparece na his-
tória ocidental desde a
Antiguidade; ao usarmos este verbo, fazemo-nos
ocidentais. Não obstante, “não existe absolutamente o ‘ser
’
e depois a re-
lação. Existe o ‘ser
’, o verbo cujo ato cuja transitividade se formam em
relação(ões), e somente dessa maneira” (NANCY
, 2017, p. 25). Mesmo
que ocidentais, ao distanciarmo-nos de uma imagem de pensamento dog-
133
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
mática do ser
, este ser deixa de ser “ser em-si”. “A
copresença e a aparição
desviam juntas o em-si e a construção: ‘ser
’
não é mais em-si, mas conti-
guidade, contato, tensão, torção, cruzamento, agenciamento.” (NANCY
,
2017, p. 40).
Esse verbo “ser”, que não é compreendido aqui como dotado de
uma essência, passa a ser entendido como intensidade que se expressa no
arquivo, uma intensidade de um corpo-território, um enunciado que se mo-
vimenta por meio de discursos. Dos enunciados-intensidades que emer
gi-
ram no território do arquivo das Imagens de Docência do Projeto Objetos
de Pensar
, o verbo “ser” e sua forma negativa “não ser” repetiram-se 22
vezes em 20 imagens diferentes. Foi o verbo que mais se repetiu em torno
das territorialidades “docente”, “docência”, “professoras(es)”. O segundo
verbo que mais se repetiu foi “dizer”, aparecendo sete vezes somente.
Essa disposição verbal chamou-nos a atenção, visto que tomar o
verbo apenas como uma ação nos faria, gramaticalmente, ignorar o verbo
“ser”, já que este não é considerado um verbo de ação. Porém, tomado
como intensidade que se expressa no território do arquivo, emerge como a
força mais expressiva. “Será que justamente nisso não somos – gregos?”
(NIETZSCHE, 2016, p. 31). Segue abaixo quadro com as imagens de do-
cência nas quais o verbo “ser” emer
giu.
Quadro 5 -
As formas do verbo ser que emer
giram no arquivo.
O professor é um intermediador desse conhecimento, (1.3 Carta 3).
Assim acredito que o professor não é o dono do saber
, (1.3 Carta 6).
No
ambiente
escolar
,
deve
ocorrer
a
troca
de
conhecimentos
entre
professor
e
aluno,
estes
constroem juntos. O professor não é o dono do saber! (1.3 Carta 19)
.
Quem sou eu como professora? (1.3 Carta 53).
A
primeira
inquietação
diz
respeito
a
um
fazer
pedagógico
pautado
em
uma escuta
qualicada
e
a
partir
disso
pergunto
para
vocês,
é
possível
uma
escola
onde
o
aluno
seja
o
professor?
(1.3 Carta 60).
Este
pedido,
súplica
e
angústia
me
despertou
para
o
tipo
de
professor
que
tenho
sido.
(1.3
Carta 60).
Sou professor de Língua Espanhola, do Instituto XXXXXXXXXX, pertencente à Universidade
XXXXXXXXXX, localizado no interior do estado do
Amazonas. (1.3 Carta 66).
134
Corpo, políticas e territorialidades
Fonte -
Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
O professor não é o dono do saber (1.4 T
irinha 1).
A
partir disso,
comecei
a me
questionar
sobre
a função
de
ser
professor
,
e
ser mesmo,
com
letra maiúscula, se meu papel realmente era
só ensinar a minha disciplina e não perceber as
situações/problemas encarados
por
ele. Sabe,
ser professor
é ser
pai e
mãe também,
é abra
-
çar
, conversar
, interagir sobre os medos do futuro, é
ACOLHER, [...] (2.3 Carta 13).
Na
cadeira da
sua frente,
convide para
sentar
a pessoa
que te
inspirou
a ser
a(o) docente
que
és hoje. (3.1 Objeto).
É
aquele
que,
por
anos,
de muitas
pessoas,
se
tornou
a
referência
de
sabedoria,
da
desco
-
berta, do questionamento que leva ao movimento. (3.1 Objeto).
(professor) É o condutor de muitas viagens. (3.1 Objeto).
“vou ser tudo, menos professora”, e acaba sendo professora; (3.2.1 Descrição ocina).
prática de hoje - quem estou sendo como professora?; (3.2.1 Descrição ocina).
Por que acreditamos que o professor é um inventor da sua prática. (3.1 Objeto).
T
alvez,
o meu
percurso
de hoje,
professora que
trabalha com
direitos e
diferenças, só
tenha
sido
assim por
aquele encontro
potente e
de afetos
revolucionários que
fez e
faz
pulsar a
pro
-
fessora
que
posso ser
,
anal, estamos
sempre transformando
aquilo que
somos (3.3
Carta 1).
Depois
não quis
mais ser
professora, tive
outras professoras
inspiradoras
e outras
nem tanto,
principalmente aquelas
que
me diziam
que “éramos
todos iguais”
e que
“os direitos
e deveres
eram iguais”. (3.3 Carta 1).
“serei tudo, menos profe” (3.3 Carta 2).
Seu jeitinho
quieto foi
me cativando,
e seu modo
de olhar
o mundo e,
principalmente, encarar
os
processos
de
ensino
e
aprendizagem
me
mostraram
um
outro
jeito
de
ser
docente
(3.3
Carta 2).
independentemente do curso que eu faria, eu seria profe. (3.3 Carta 2).
Do encontro – inspiração
docente, anal, você é a “culpada” de
eu ser uma psico-profe hoje.
(3.3 Carta 2).
Como podemos observar acima, o verbo “ser”, associado às terri-
torialidades indicadas mais acima, emer
giu nas materialidades de carta,
objeto,
tirinha
e
descrição
da
ocina.
Das
20
imagens
que
emergiram
do
arquivo; 14 são da materialidade carta; uma imagem emer
giu na materiali-
dade de tirinha; quatro imagens em materialidade objeto de pensar; e duas
imagens
em descrição
de
ocina. Essas
cartas
são materiais
empíricos pro
-
duzidos
nas
ocinas
a
partir
de
dois
objetos
de
pensar
diferentes,
os
objetos
135
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
“Os jovens e as funções da escola” e “A
artista está presente”.
O verbo “ser” aparece de forma auxiliar
, conjugado e negativo.
As
formas que apareceram nas imagens foram:
é, não é, sou, seja, tenho
sido,
inspir
ou a ser
, vou ser
, acaba sendo, estou sendo, somos, jeito de ser e
seria
.
As territorialidades em torno das quais o verbo aparece foram: “pro-
fessor(a)”, “professor(es)”, “profe”, “docente” e “psico-profe”. Em torno
da
territorialidade
“docente”,
especicamente,
apareceram
duas
formas,
enquanto “ser docente” e “jeito de ser docente”.
Em relação à forma do “(não) é” (re) selecionamos as sete imagens
de docência que apresentamos no quadro abaixo.
Quadro 6 -
Na forma do (não) é.
O professor é um intermediador desse conhecimento, (1.3 Carta 3).
Assim, acredito que o professor não é o dono do saber
, (1.3 Carta 6).
No
ambiente
escolar
,
deve
ocorrer
a
troca
de
conhecimentos
entre
professor
e
aluno,
estes
constroem juntos. O professor não é o dono do saber! (1.3 Carta 19).
O professor não é o dono do saber (1.4 T
irinha 1).
É
aquele
que,
por
anos,
de muitas
pessoas,
se
tornou
a
referência
de
sabedoria,
da
desco
-
berta, do questionamento que leva ao movimento. (3.1 Objeto).
(professor) É o condutor de muitas viagens. (3.1 Objeto).
Por que acreditamos que o professor é um inventor da sua prática. (3.1 Objeto).
Fonte -
Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
(Re)suspendido, (re)arquivizado, (re)territorializado, o “(não) é”
permitiu-nos observar os atravessamentos que o verbo compôs nas ma-
terialidades de carta, tirinha e objeto.
A
forma do “não é” emergiu
duas
vezes, repetida no discurso “o professor não é dono do saber”. De uma ter
-
ritorialidade que “não é dona do saber”, o professor emer
ge como um “in-
termediador desse conhecimento”, que “troca” ou “constrói” em conjunto
com “aluno”.
T
ornou-se “referência de sabedoria, da descoberta, do ques-
tionamento que leva ao movimento”. O professor “é o condutor de muitas
viagens” e “um inventor da sua prática”.
A
incerteza entre ser e (não) ser
professor
aparece
na forma
de
pergunta e
também
na
forma
de
armação,
como pode ser visto no quadro 7.
136
Corpo, políticas e territorialidades
A
forma pergunta aparece em três imagens, mas incertezas
e ques-
tionamentos sobre ser professor emergiram em outras seis imagens:
Quadro 7 -
A
incerteza entre ser e não ser professor
.
Fonte -
Dados da pesquisa. Elaborado pelos autores, 2021.
A incer
teza em for
ma de pergunta
Quem sou eu como professora? (1.3 Carta 53).
A
primeira
inquietação
diz
respeito
a
um
fazer
pedagógico
pautado
em
uma escuta
qualicada
e
a
partir
disso
pergunto
para
vocês,
é
possível
uma
escola
onde
o
aluno
seja
o
professor?
(1.3 Carta 60).
prática de hoje - quem estou sendo como professora? (3.2.1 Descrição ocina).
Este
pedido,
súplica
e
angústia
me
despertou
para
o
tipo
de
professor
que
tenho
sido.
(1.3
Carta 60).
A
partir disso,
comecei
a me
questionar
sobre
a função
de
ser
professor
,
e
ser mesmo,
com
letra maiúscula, se meu papel realmente era
só ensinar a minha disciplina e não perceber as
situações/problemas encarados
por
ele. Sabe,
ser professor
é ser
pai e
mãe também,
é abra
-
çar
, conversar
, interagir sobre os medos do futuro, é
ACOLHER, [...] (2.3 Carta 13).
“V
ou ser tudo, menos professora” e acaba sendo professora; (3.2.1 Descrição ocina).
T
alvez,
o
meu
percurso
de
hoje,
professora
que
trabalha
com
direitos
e
diferenças
só
tenha
sido
assim,
por
aquele
encontro
potente e
de
afetos
revolucionários que
fez
e
faz pulsar
a
pro
-
fessora que
posso ser
, anal estamos
sempre transformando
aquilo que somos
(3.3 Carta
1).
Depois
não quis
mais ser
professora, tive
outras professoras
inspiradoras
e outras
nem tanto,
principalmente aquelas
que
me diziam
que “éramos
todos iguais”
e que
“os direitos
e deveres
eram iguais”. (3.3 Carta 1).
“serei tudo, menos profe” (3.3 Carta 2).
A incer
teza em for
ma de ar
mação
O quadro acima foi dividido em duas partes.
A
primeira parte apre-
senta as perguntas enquanto
interrogações que emergiram no arquivo. Em
duas das interrogativas, o verbo implica em uma questão existencialista,
nas quais se questiona: “Quem sou eu como professora?” e “quem estou
sendo como professora?”. Na segunda interrogação, por sua vez, a per
gun-
ta ‘quer
’
transformar o aluno em professor: “é possível uma escola onde o
aluno seja o professor?”.
A
segunda parte, a questão do “ser professor”, exibe outras formas
de pôr as incertezas. Nesse sentido, houve um movimento que “despertou
para o tipo de professor que tenho sido”, “comecei a me questionar sobre
a função de ser professor” ou algo que “faz pulsar a professora que posso
ser”. Outra forma que emergiu foi a possibilidade de ser professora, em que
posso “ser tudo, menos professora e acaba sendo”, e, “serei tudo, menos
137
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
profe”. Nessa forma, também houve a decisão de que “depois não quis
mais ser professora”.
Reterritorialização (Considerações nais)
Este texto partiu de um arquivo de imagens da docência produzido
em meio ao material empírico do Projeto Objetos de Pensar
.
As imagens da
docência foram tomadas como territorialidades de um território-arquivo.
As territorialidades “docência”, “docente”, “prof(a/e)” e “professor(as/es)”
funcionaram como intensidades que se expressaram por meio de verbos.
Foi encontrado um total de 74 intensidades, sendo que, destas, apenas 20
se repetiram. Destas 20, a que mais se expressou foi o “(não) ser”. Desse
modo,
podemos
armar
que,
nas imagens
de
docência
do
Projeto
Objetos
de Pensar
, o problema do “(não) ser” professor apareceu em evidência.
Isso poderia ajudar
-nos a pensar que talvez ainda estejamos presos a uma
imagem de docência que se sustenta em uma identidade, ou seja, aquilo
que cabe no imperativo de ser ou não ser professor
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139
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Douglas Rosa da Silva
Edla Eggert
D
Des-costurar histórias
de quem pesquisou com
tecelãs em Alvorada - RS:
Nossos processos formadores
141
Este artigo apresenta uma análise tramada entre um egresso-bolsista
de Iniciação Cientíca e
sua professora/coordenadora de pesquisa.
Juntos,
buscaram
des-costurar histórias
para
entender os
seus
processos formado
-
res.
Essa
análise,
que
resultou
em
um
processo
amplo
de
aprendizagem,
teve
como
consequência
não
só
uma
reexão
sobre
a
função
e
os
saberes
das
artesãs
dentro
de
sua
comunidade,
mas
também
auxiliou
a
reposicionar
a
experiência
da
professora
e
do
bolsista
enquanto
pesquisadores.
O
arti
-
go destaca as aprendizagens advindas deste processo,
aprendizagens essas
que,
hoje,
compõem
a
memória
afetiva
dos
envolvidos
nesta
experiência
proporcionada pelo projeto de pesquisa.
Durante
a
execução
do
trabalho
de
pesquisa,
foram
realizadas
lei
-
turas
de
autoras
e
autores
contemporâneos
com
o
objetivo
de
entender
e
conceituar os
processos de técnica
e tecnologia implicadas na
produção de
tecelagem.
A
partir
destas
leituras,
e
do
trabalho
de
campo
realizado,
ar
-
gumentos
foram sendo
elaborados,
visando
tornar
visível o
conhecimento
que as
tecelãs detêm sobre
aquilo que por
elas é
produzido.
As
compreen
-
sões
formuladas
no
trabalho
de
revisão
de
literatura
também
foram
sen
-
do
ampliadas
continuamente,
uma
vez
que
foram
promovidas
discussões,
junto
ao
grupo
de
pesquisa, a
respeito
das
observações,
ideias
e
conceitos
encontrados
nas
leituras
realizadas. Além
disso,
e
no
que
compete
ao
tra
-
balho
de campo,
acrescenta-se que
as
visitas ao
Atelier de
T
ecelagem
eram
feitas
com
regularidade
mensal,
ou
seja,
uma
vez
por
mês.
Realizadas
entre
os
anos
de
2013
e
2014,
essas
visitas
tinham
como
nalidade
conhecer
,
promover e
estimular o
conhecimento junto
com as
mulheres artesãs
sobre
a própria produção artesanal.
Mudaremos, a partir
deste ponto, a
perspectiva do artigo para
a ter
-
ceira
pessoa do
plural, a
m
de apresentar
o
nosso ponto
de vista
a
respeito
do
caminho
feito
com
as
artesãs
no
compartilhamento
de
saberes
no
seu
local
de
trabalho,
bem
como
na
sua
comunidade.
Este
processo,
a
nosso
ver
,
revelou
trajetórias
anteriormente
presas
à
condição
de
silenciamento,
e
que
agora,
de
certo
modo,
fazem
outros
caminhos
para
a
emancipação
54 - A
pesquisa junto ao atelier V
era Junqueira,
em
Alvorada foi
coordenada pela Professora
Edla Eggert a
partir do ano
de
2008 e
teve
nanciamento
da F
APERGS
com
bolsa de
IC,
e
de Editais
CNPq
Universal
e Bolsa
PQ
do
ano de
2009
até o ano de 2018. Foram vários desdobramentos produzidos
que introduziram conceitos já publicados como: o conceito
de ¨instalação
cientíco-artesanal¨ (EGGER
T
; BECKER, 2016),
¨tecnologia artesanal¨ (LOPES;
EGGER
T
, 2016), o
con
-
ceito
de
¨Artesanar¨
(EGGER
T
,
2019);
e
o
conceito
de
¨AtelieReferencia¨
(2021).
Douglas
Rosa,
começou
a
participar
como
bolsista de
IC no
ano de
2012 permanecendo
nessa
atividade até
o ano
de 2014.
Ou seja,
mesmo
que o
projeto tenha
sido concluído em 2018, o processo de maturação conceitual seguiu,
pois o tempo lento é determinante para que a teoria
seja desenvolvida.
54
142
Corpo, políticas e territorialidades
individual
e
coletiva
destas
artesãs.
Analisaremos
também
a
relevância
que
este estudo
tem
para um
estudante
de graduação
que
é negro
e
oriundo da
periferia,
uma vez
que a
pesquisa discorre
sobre
o processo
de histórias
in
-
visíveis. Durante o exercício de
pesquisa, duas das perguntas que
constan
-
temente fazíamos
enquanto pesquisadora
e aprendiz
de pesquisador eram:
quais as
contribuições da ação
de des-costura para
aquele que também,
de
certo
modo,
tem
tudo
para
permanecer
silenciado?
Como
o
esforço
para
emancipar conhecimentos de mulheres inseridas na arte popular dialoga
com as tramas que estão externas à pesquisa?
A
pesquisa, quando
considera a condição humana
e também se arti
-
cula
com
as
narrativas
individuais,
consegue
trazer
à
tona
conhecimentos
que
permitem
o
reconhecimento
de histórias
que
não
são percebidas
ou
co
-
nhecidas.
Devido a
esta
condição, e
no nosso
entendimento,
essas histórias
ao
serem
trazidas
ao
centro
da
análise,
promovem
um
caminho
contrário
àquilo
que
é
predestinado
e
previsível.
Neste
estudo,
a
ideia
de
descostu
-
rar
também
implica
analisar
sob
a
ótica
de
quem
pesquisa
e
das
mulheres
pesquisadas,
um
trabalho
que
é
feito
em
paralelo.
A
noção
de
igualdade
apresentada
aqui, por
isso, leva
em consideração
a colisão
e
o encontro
das
tramas individuais de quem pesquisa e com as mulheres pesquisadas.
A
arte, desde
os
primórdios, sempre
conseguiu representar
,
explorar
e
tensionar
algumas
questões
que
atravessam
o
âmbito
social.
Na
produção
artística,
a
linha
divisória
entre
a
arte
popular
e
a
arte
erudita
vem
sen
-
do
constantemente
interpelada,
reexão
essa
que
destitui
um
pensamento
hierárquico
e
homogeneamente
dicotômico
(BIZZOCCHI,
1999),
e
abre
possibilidades
para
um
horizonte
dialógico,
menos
preocupado
com
clas
-
sicações rígidas
e
mais inclinado
para
as percepções
e os
efeitos
da cria
-
ção
artística
(OSTROWER,
2013). A
arte popular
parece
ter
,
então,
uma
função
intrigante na
relação
que
estabelece
com
o meio
comunitário,
pois
essas dinâmicas
artísticas, todas
ligadas a
um trabalho manual,
conseguem
capturar
aquilo
que
acontece
na
efervescência
da
cultura
popular
.
Impor
-
tante
destacar
que,
conforme
arma
Eli
Bartra
(2000,
p.
32),
“a
grande
maioria
dos
textos
sobre
arte
popular
não
menciona
a
existência
de
gêne
-
ros”,
mas
a
elaboração
de
um
artefato
artístico
sob
a
ótica
feminina
pres
-
Pesquisar
o artesanato produzido por
mulheres:
Recortes dessa história
143
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
supõe a presença
de uma subjetividade
e do que Edla
Eggert tem chamado
de
uma
“tecnologia
artesanal”
formulada
por
mulheres,
e
este
é
um
dado
importante
para a
pesquisa.
T
endo
em
vista que
essa pesquisa
foi
com arte
-
sãs,
este
gesto
epistemológico
de
reconhecê-las
como
produtoras
de
conhe
-
cimento, também é
uma contribuição na tentativa
de sistematizar e reetir
sobre
essas
múltiplas
criatividades
femininas,
em
geral
invisibilizadas,
que
formam o campo da arte popular
.
O
artesanato,
neste
sentido,
constitui
uma
parte
importante
do
que
denominamos
de
arte
popular
,
pois,
consegue
trazer
à
tona
uma
série
de
(re)leituras
daquilo
que
está
interiorizado
na
vida
ordinária
e/ou
naquilo
que
é
entendido
como
sendo
“comum”
dentro
de
determinado
contexto.
E
ao
reetirmos
sobre
os
aspectos
de
vida
presentes
neste
objeto
artístico
artesanal, que entendemos,
com uma visão mais
apurada e sensível, outras
faces
da
existência
humana. A
percepção
do
artesanal
como
objeto
resul
-
tado
de
uma
tecnologia
e
de
um
conhecimento
também
é
uma
percepção
que
nos
leva
ao
encontro
do
outro,
ou
melhor
,
da
outra
que
produz.
T
rata-se
de uma tomada de consciência do outro por meio do fazer artístico. E essa
abertura
ao outro
é feita
neste lugar
em que
as
epistemologias da
vida ordi
-
nária
são
produzidas.
Ivone
Gebara
(2008)
entende
a
epistemologia
da
vida
ordinária como
o exercício de
apresentação daquilo que
decorre da
ordem
do
dia a
dia.
Essa epistemologia
demanda um
olhar
para este
lugar
das coi
-
sas de
menor importância,
já conhecíveis.
Portanto, os
detalhes, os
saberes
consolidados, a
rotina, todos esses
são elementos vão
inspirar uma postura
de
criação,
e não
mais de
conformismo; todos
eles
são dignos
de uma
aten
-
ção criadora e redentora no plano epistemológico. Sendo assim, insistir na
epistemologia da vida ordinária é colocar o que é visto como simplório no
centro
das
atenções.
Gebara
discorre
ainda
que
só
é
possível
celebrar
a
vida
em
suas
diferentes
dimensões
quando
encaramos
a
experiência
humana
em
toda
a
sua
complexidade.
Esta
atitude
epistemológica
nega
a
irredutibilida
-
de
dos
fatos
e
das
coisas a
uma
razão
única,
meramente
explicativa.
E
foi
circulando
por
esse
lugar
do
“ordinário”,
do
aparentemente
“sem
impor
-
tância”, que tramamos as histórias abordadas neste capítulo.
Os passos
dados por esta
pesquisa podem ser
representados e expli
-
cados a
partir de
três grandes momentos:
i) a leitura
de textos
relacionados
à
experiência
das
mulheres
artesãs
e
as
suas
tecnologias
artesanais;
ii)
a
construção
de
ar
gumentos
teórico-metodológicos
que
pudessem
integrar
trabalho artesanal com políticas públicas disponíveis na área
da educação;
e iii)
os caminhos
e a
possibilidade de
tornar visível essa
experiência para
144
Corpo, políticas e territorialidades
além da esfera acadêmica.
A
partir
dessa sistematização,
podemos
dizer
que
o estudo
também
cou
centrado
em
três
grandes
áreas,
sendo
elas:
o
trabalho
(o
fazer
arte
-
sanal),
a
educação (o
diálogo com
a EJA
e
com as
políticas de
complemen
-
tação de
estudos) e o conhecimento
(a complexidade da criação,
a criativi
-
dade e o domínio de técnicas artesanais).
Nosso
comprometimento
estava
em
desenvolver
uma
metodologia
que
atendesse
as
demandas
provenientes
dos
objetivos
que
tínhamos
para
a
pesquisa.
Essa
metodologia
também
estava
em
diálogo
com
as
leituras
de
autores/as contemporâneos/as na área da tecnologia, feminismos, e educa
-
ção, pois
essas ferramentas metodológicas (leitura,
diálogo, e investigação
em
campo
dos
procedimentos
artesanais)
possibilitaram
a
construção
de
caminhos
para
que
chegássemos
a
conclusões
temporárias.
Traçamos,
a
partir
da
revisão
de
literatura,
relações
com
a
experiência
de
acompanha
-
mento
das
mulheres
artesãs.
A
leitura,
além
de
auxiliar
na
compreensão
dos termos
que constituem
o
fazer artesanal,
nos ajudou
a pensar
sobre os
espaços em que
essas mulheres estão e
de que maneira isso
afeta – ou não
– o processo de criação de uma peça artesanal, por exemplo.
Entre
as leituras
realizadas,
destacamos o
trabalho
bibliográco que
realizamos com
a
obra de
Álvaro V
ieira
Pinto (2005),
produção
que abor
-
da
o
conceito
de
tecnologia
em
toda
a
sua
complexidade
–
e
isso
inclui
a
técnica
e
os
seus
desdobramentos
no
trabalho
manual.
Já a
partir
dos
textos
de Donna Haraway (2004),
zemos uso da leitura antropológica
feminista
da autora
acerca dos espaços
de criação
e sobre a
própria criação enquanto
elemento
de
formação
do
sujeito
mulher
.
Nos
estudos
da
Arte,
lemos
Eli
Bartra,
que condensa
a situação
dada entre
as
mulheres e
a
Arte
Popular na
América Latina no livro
Cr
eatividad Invisible
(2004).
Ressaltamos que todas as leituras realizadas dentro da Metodologia
proposta,
foram
vinculadas
às
questões
feministas,
pois,
na
condição
de
aliados
de
uma
proposta
que
visa
transformar
uma
realidade,
nos
alicer
-
çamos em uma
visão que se
pauta na mudança,
no respeito e
na busca por
dignidade. Sobre isso, Edla Eggert (2003, p. 20), arma que
[...]
o
compromisso
de
uma
metodologia
de
pesquisa
feminista
é
conseguir perceber
na
“outra”
pesquisada
uma
cúmplice
da
descoberta
de
nós
mesmas.
Somos
sujeitos
capazes
de
transformar
determinada
realidade/pesquisa
e
nos
transformarmos.
Apesquisa
feminista
identica
145
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
propositalmente a relação sujeito-sujeito como sendo o elo
diferencial das demais posturas neutralizantes na pesquisa.
Anal, a pesquisa
feminista constrói uma
epistemologia que perce
-
be nas outras a descoberta de nós mesmas. Por isso, enquanto
pesquisado
-
res,
tentamos
vivenciar
aquilo
que
era
lido
e
discutido
em
nosso
processo
de
revisão
de
literatura.
O
Grupo
de
Pesquisa
realizou
uma
série
de
ativida
-
des
práticas
e
encontros
no
atelier
onde
estavam
as
artesãs.
Saíamos
de
São
Leopoldo
(cidade
em
que
ca
a
Universidade)
para Alvorada
(cidade
em
que
ca
o
Atelier),
para
realizar
,
juntamente
com
elas,
diálogos,
reexões
sobre
o
ser/tornar-se
mulher
e
atividades
que
colocassem
em
evidência
seus
saberes
técnicos sobre
a
produção
artesanal.
Utilizamos o
método
da
observação-participante
que
envolveu
muita
partilha,
acompanhamento
e
vivência.
Porém,
não
bastava
só
observar
,
logo
desempenhamos
também
a
participação
ativa
nessas
atividades
que
propusemos
fazer
com
as
mu
-
lheres artesãs.
A
coleta de
dados aconteceu nesses momentos de interação,
através
das
conversas
produzidas
nesses
encontros,
e
dos
momentos
de
descontração gerados nesse tempo.
Josso (2004)
atenta para uma
pesquisa-formação, que propõe meto
-
dologicamente
aquilo
que
as
feministas
defendem
como
postura,
ou
seja,
a
autora
consegue
apresentar
pedagogicamente
ações
que
podem
auxiliar
na implementação dos ideiais que
embasam e constituem o discurso femi
-
nista.
A
autora também
defende que
as
ferramentas metodológicas
também
devem
resultar em
um
compromisso com
a mudança,
e
essa mudança
deve
ocorrer tanto
no plano individual
quanto coletivo.
A
metodologia compre
-
ende, portanto, uma série de
atividades, ou um caminho, para se chegar
às
mudanças desejadas.
T
entamos
relacionar
,
desse
modo,
a
pesquisa
dentro
de
um
espaço
de formação, relacionando conhecimento,
conceitualização, diálogo e par
-
ticipação. T
entamos também
des-costurar
a
cortina do
invisível
e destacar
conhecimentos,
e
o
uso
de
técnicas
que
as
tecelãs
detêm.
E
foi
assim,
lendo
e vivenciando a leitura,
que elaboramos uma fundamentação teórica
capaz
de
sustentar
e
viabilizar
argumentos
para
um
projeto
que
inclua
e
considere
os saberes
de trabalho artesanal
na área
da Educação de
Jovens e
Adultos.
Diríamos
que
esse
projeto
pode
ser
chamado
de
um
projeto
de
ressigni
-
cação
para
a
vida
destas
mulheres
(e
de
nós
mesmas,
pesquisadoras).
Um
projeto
que,
sobretudo,
nos
insere
em
um
trajeto
de
“re-conhecimento”
e,
ao mesmo tempo, em um “projeto de conhecimento” (JOSSO, 2007).
146
Corpo, políticas e territorialidades
As
razões
que
nos
levam
a
pesquisar
o
artesanato
produzido
por
mu
-
lheres
têm,
no ar
gumento
da prevenção,
o seu
maior fundamento.
E
remete
a
um
período
um
pouco anterior
ao
que
o
bolsista
conheceu
o
trabalho
da
orientadora. T
em a ver com o primeiro
projeto que somente possuía nan
-
ciamento da Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio
Grande do
Sul
-
F
APERGS,
e
o
título
era
“Mulheres
tramando
contra
a
violência:
a
produção do conhecimento na ação simultânea do pensamento e da cria-
ção
artesanal”.
Essa
pesquisa
ensinou
sobre
as
precariedades
da
vida
das
mulheres que
vivem em situação de
violência, e que ao
exercitarem algum
tipo
de
trabalho
manual em
grupo
conseguem
introduzir
elementos
novos
em seu
modo de
pensar
, ao
fazer e
pensar
simultâneo sobre
sua vida
(EG
-
GER
T
,
2009). A
partir
da
estruturação
desse
argumento,
a
pesquisa
que
o
bolsista
conheceu
girava
em
torno
de
um
fazer
investigativo
para
os
ate
-
liers
a
m
de
estudar
mais
sobre
quais
são
as
aprendizagens
desse
lugar
não
escolar
, produtor de uma tecnologia artesanal .
55 - O
conceito de tecnologia
artesanal foi e
seguiu sendo desenvolvido
pela coordenadora do projeto
ao longo de
todas
as fases
desta
pesquisa. E,
especialmente a
partir de
2012, as
leituras dos
dois
volumes do
“Conceito de
tecnologia”, de
Álvaro
V
ieira Pinto
(2005), têm
sido expostas como
uma faceta
importante no
estudo em
torno do
conceito de
tecnologia.
É possível identicar os primeiros indícios da construção do conceito de
tecnologia artesanal, mas ainda sem a leitura de
A
VP
, na publicação do livro nanciado por um Edital/2008 do CNPq intitulado, Gênero, Mulheres e Feminismo, detalha
quatro três pesquisas
de doutorado e
a pesquisa da
bolsa de Produtividade da
coordenadora do projeto
em questão nesse
texto/capítulo. V
er EGGER
T
, E. Processos educativos no fazer artesanal (201
1).
55
T
emos
debatido
o
conceito
de
a
tecnologia
artesanal
em
interface
com
a
Educação
de
Jovens
e
Adultos
(EJA)
que
tem
sido
um
mote
para
aproximar
o
conhecimento
que
as
mulheres
detêm
sobre
a
produção
arte
-
sanal e que por elas
é realizado, com o(s) modo(s) com que estes
conheci
-
mentos
podem
ser
relacionados
com
a
escola
(LOPES;
EGGER
T
,
2016).
A
Escola,
como
um
espaço
de
divulgação
e
ampliação
do
conhecimento,
não
se
limita
apenas
ao
ensino
da
Língua
Portuguesa
e
da
Matemática,
mas,
sim,
da
composição
de
currículos
que
se
voltem
para
outros
saberes
como,
por
exemplo,
a
questão
do
artesanato,
que
é
produzido,
sobretudo,
por mulheres.
Imaginar
a possibilidade
dos
currículos de
EJA
repensarem
as suas
estruturas e
inserirem em sua
composição aquilo que
temos observado ser
T
ecnologia artesanal, feminismo e educação:
Caminhos e possibilidades da prática de pesquisa
147
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
um
conjunto
de
domínio
de
técnicas
vinculadas
à
produção
de
artesana
-
to,
imaginamos
que:
a)
as
mulheres
podem
se
aproximar
mais
da
Escola,
unindo,
desse
modo,
a
retomada
dos
estudos
com
o
processo
de
quali
-
cação
prossional;
e
b)
que
elas
percebam,
enquanto
artesãs,
que
aquele
trabalho
rotulado
por
vezes
como
passa-tempo,
feminino
e
sem
valor
,
re
-
quer
conhecimento
especíco,
e
é
marcado
por
tecnologias
especícas. A
artesã
é
aquela
que
produz,
emprega
e
conserva
este
conhecimento,
aliando
procedimentos
técnicos
e
criatividade
artesanal
no
seu
ofício.
E,
de
certo
modo, acreditamos que o espaço escolar pode
auxiliar na construção desta
compreensão,
que
a
Educação
de
Jovens
e Adultos
pode
apresentar
como
espaços estratégicos para
que se atinja este
discernimento. De posse
dessa
compreensão,
suspeitamos
que
as
estudantes-artesãs
se
aproximem
do
re
-
-conhecimento
do
seu
próprio
trabalho;
caminho
este
que
não
está
apartado
dos espaços educacionais,
mas construído junto com
a formação e
trajetó
-
ria escolar de cada uma.
Deste
modo, acreditamos
que o
domínio
de uma
técnica
e a
produ
-
ção
da
tecnologia
artesanal,
agrega
valor
não
só
para
aquilo
que
é
produ
-
zido,
o
objeto
estético-artístico,
mas
também
para
nós
mesmos,
que
iden
-
ticamos
e
sistematizamos
esse
conjunto
de
reconhecimentos.
Não
existe
valor
maior do
que
o conhecimento.
E
o artesanato,
neste
sentido, costura
as
tramas
de
narrativas
que
circulam
por
vários
lugares:
pela
escola,
pelo
local
de
produção
(o
atelier),
e
pelo
eu-sujeito
(as
próprias
artesãs
e
tam
-
bém
quem
pesquisa,
como
nós),
formando
uma
tríade
que
é
a
tríade
do
conhecimento.
E
essa
tríade
resulta
ser
também,
a
tríade
da
emancipação
e
da
mudança
de
perspectiva
sobre
o
trabalho,
a
escola,
e
a
subjetividade
individual de cada uma e de cada um.
Sendo
assim, ao
pensarmos sobre
as
razões que
nos
levaram a
pes
-
quisar
o
artesanato
produzido
por
mulheres
entendemos
que,
ao
costurar
possibilidades para
vidas que
estão à
margem e pertencentes
ao ordinário,
estamos, indubitavelmente,
des-costurando
uma expectativa já demarcada
pelas
estruturas
de
poder
.
Des-costurar
e
costurar
implica
em
construir
uma
outra
perspectiva
e
um
novo
entendimento
sobre
as
mulheres
que
estão
à
margem
no
espectro
social.
No
momento
em
que
as
hierarquias
de
poder
oprimem, demarcando lugares,
e enclausurando narrativas, nossa
pesquisa
apresentou
uma
tríade
que
possibilitou
uma
nova
leitura,
bem
como
uma
alternativa
de
formação
para
estes
sujeitos
que
detêm
um
conhecimento
acerca de
tecnologias especícas. Entrelaçamos
fazeres tecnológicos, ocu
-
pação prossional
e ambiente escolar
, em uma
ação que provocou
tanto os
148
Corpo, políticas e territorialidades
envolvidos
na
pesquisa
quanto
às
instituições
que
passaram
a
questionar
os
seus próprios limites de reexão e atuação.
Essa
provocação,
ao
se
estender
aos
agentes
da
pesquisa,
faz
com
que
a
pesquisada
(se)
pense
[e
também
quem
pesquisa!]
por
meio
do
que
ela
faz
–
aqui,
no
caso,
o
artesanato.
Mas
este
pensamento
não
é
um
pen
-
samento
tecnicista,
habitual,
ele
objetiva
uma
reexão
sobre
aquilo
que
é
possível
de
ser feito para
além do
que já é
concreto e concebível
no atelier
.
E é por isso que
frisamos a complexidade destes estudos, pois os
lugares e
saberes
não estão
dados,
mas
são construídos
na
interação
entre as
partes,
e
principalmente:
construídos
na
interação
com
a
realidade
educacional
e
artesanal
brasileira.
T
odas
as
etapas
da
pesquisa,
portanto,
envolveram
doação,
paixão
e,
acima
de
tudo,
um
olhar
humano
para
essas
realidades
outras.
Para
Silva
(2012),
que
também
volta
seus
estudos
para
o
ambiente
as
narrativas
de
mulheres
artesãs,
a
atividade de pesquisar
implica em ir
muito
além
da
ação
de
tratar
objetos
ou
sujeitos
de
pesquisa.
Ela
desta
-
ca
que,
na
concepção
de
pesquisa
artesanal,
o
saber
cientíco
e
o
saber
popular
,
não
se
sobrepõem
um
ao
outro,
mas
complementam-se
nas
suas
especicidades.
E só
quando
percebemos isso
é
que compreendemos
que a
atividade de pesquisar é um ato singularmente educativo.
E
é
desse
lugar-comum
que
nasce
o
olhar
para
as
questões
que
estru
-
turam
este artigo.
Desilenciar
o que
está
silenciado não
se
trata apenas
de
estudar
e
de pesquisar
a história
de mulheres
artesãs, mas
de
pensar os
pro
-
cessos tecnológicos e educativos que decorrem destas narrativas.
T
rata-se,
sobretudo,
de
se comprometer
com aquilo
que
também é
parte da
realidade
do
estudante
e
da
professora,
agentes
que
pesquisam:
a
invisibilidade,
a
margem
e o dito ordinário fazem parte do cotidiano, e do espaço enquanto
ser social.
As
artesãs, por meio de
suas produções, nos incentivam a
cons
-
truir outro olhar para essas esferas que,
de algum modo, também transpas
-
sam a nossa vida.
Mudar
o
curso
da
vida
de
pessoas
[portanto,
educar]
faz
parte
da
escolha da nossa prossão
e, ao nos comprometermos em fazer da
Pesqui
-
sa
uma
ferramenta
de
combate
às
desigualdades,
estamos,
humanamen
-
te
falando,
desilenciando
não
só
histórias
externas
a
nós,
mas,
também
e
principalmente,
desilenciando-nos
.
Consoante
com
isso,
Freire
(2014,
p.
36) dirá que é,
149
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
[...]
fazendo
pesquisa,
educo
e
estou
me
educando
com
os
grupos
populares
[...]
como
ato
de
conhecimento,
tem
como sujeitos
cognoscentes,
de um
lado, os
pesquisadores
prossionais; de
outro, os grupos populares
e, como objeto
a
ser
desvelado,
a
realidade concreta.
Quanto
mais,
em
tal
forma
de
conceber
e
praticar
a
pesquisa,
os
grupos
populares
vão
aprofundando
como
sujeitos,
o
ato
de
conhecimento
em
si
suas
relações
com
a
sua
realidade,
tanto
mais
vão
podendo superar ou vão superando o conhecimento anterior
em seus aspectos mais ingênuos.
Mediante
o
exposto,
entendemos
que
por
meio
dessa
pesquisa
tor
-
namos
mais
visíveis
os
conceitos
presentes
nos
processos
da
experiência
do
artesanato
e
nos
conscientizamos
mais
sobre
o
conhecimento
das
mu
-
lheres
artesãs.
Acreditamos
que
estamos
contribuindo
para
que
se
forme
um
caminho para
a emancipação
delas,
bem como
para
o reconhecimento
destes
saberes.
E,
além
disso,
entendemos
que
é
preciso
seguir
perseguindo
este
objetivo
de
apontarmos
para
a
visibilidade
destes
processos
tecnoló
-
gicos
e
educativos,
a
m
de
que
eles
sejam
mais
difundidos
nas
escolas
que oferecem
a EJA. Cabe
à escola dialogar
e compor conhecimentos
que
agreguem junto aos saberes dos ateliers.
Perrot (2008,
p. 22)
diz que
resgatar a narrativa
de mulheres,
olhan
-
do-as
a
partir
de
suas
experiências,
é
reverter
a
falta
de
representação
de
discursos e de imagens para as mulheres. Para ela,
[...]
ocorre
uma
autodestruição
da
memória
feminina.
Convencidas
de
sua
insignicância,
estendendo
à
sua
vida
passada
o
sentimento
de
pudor
que
lhes
havia
sido
inculcado,
muitas
mulheres,
no
caso
de
sua
existência,
destruíam – ou destroem – seus papéis pessoais.
É
por
isso
que,
quando
apontamos
o
desilenciamento,
buscamos
constituir
imagens
capazes
de
realizar
um
contraponto
ao
que
é
premedi
-
tado
para
essas
vivências.
A
pesquisa,
bem
como
as
suas
possibilidades,
tem
provocado
o
fazer-falar
,
o
fazer-saber
e
o
fazer-criar
,
objetivos
que
não
apenas
são
um
resgate
e
uma
elaboração
da
memória
e
da
experiência
fe
-
minina,
como também
caracterizam
um trabalho
de
ampliação da
presença
e
dos
saberes
das
mulheres
seja
no
plano
dos
discursos,
seja
no
plano
das
imagens, seja na esfera artística e educacional.
150
Corpo, políticas e territorialidades
A
re-costura
que
zemos
com
as
artesãs
ocupou
um
lugar
de
com
-
partilhamento
de
saberes,
processo
este
que,
a
nosso
ver
,
revelou
alguns
movimentos
de
emancipação
de
trajetórias
anteriormente
presas
à
condi
-
ção de silenciamento.
Por exemplo, para o
bolsista de Iniciação Cientíca,
que
é
negro
e
oriundo
da
periferia,
pesquisar
e
discorrer
sobre
o
processo
de
histórias
invisíveis
foi
um
re-conhecimento
e
um
re-encontro
de
si
e
consigo
mesmo.
Na
linha
desse mesmo
pesponto,
a
coordenadora
do
pro
-
jeto
conrmou
positivamente
os
encontros
realizados
entre
o
bolsista
de
IC
e
as
artesãs,
pois
havia
uma
expectativa
em
relação
a
criação
deste
vínculo.
Vê-las
interagir
de forma
desimpedida,
e
produzir
uma
série de
encontros
com
muitas
trocas,
foi
extremamente
graticante.
Artesãs-tecelãs
e
bol
-
sista
formaram
um
grupo
autônomo
que,
durante
o
primeiro
semestre
de
2014,
zeram
várias atividades
de
visitação
a
outros
grupos para
pensar
a
diversidade
técnica
produzida
neste
segmento
do
artesanato
de
os
.
Isso
devido
à
saída
para
pós-doutorado
da
coordenadora
do
projeto
. As
con
-
tribuições da
ação de
des-costurar o/a
outro/a, trouxeram a
visibilidade de
outros conhecimentos.
Foram
três
visitas
realizadas com
as
tecelãs:
a)
em
janeiro
de
2014
quando
realizamos
um
encontro
na
Unisinos
com
artesãs
de
três
grupos
distintos,
bordadeiras
de
Ivoti,
RS; artesãs
que
utilizam
várias
técnicas
de
São
Pedro
do
Sul,
RS;
e
as
tecelãs
de
Alvorada,
RS.
Com
elas
também
estiveram
as
pesquisadoras
Marcia
Alves
do
PPGEdu
da
UFPel,
a
pes
-
quisadora
Maria
Clara
Bueno
Fischer
do
PPGEdu
da
UFRGS
todas
com
suas
bolsistas
e
orientadas.
Foi
um
encontro
em
que
estiveram
reunidas
24
pessoas;
b)
o
segundo
encontro
foi
uma
saída
a
campo
para
uma
inte
-
gração
no
local
onde
acontecem
os
encontros
formativos
das
bordadeiras
na
Fundação
Evangélica
de
Ivoti,
local
onde
foi
desenvolvida
a
tese
de
doutorado de Marli
Brun (2013), orientada pela
professora Edla Eggert; c)
o
terceiro
foi
para
um
atelier
em
T
aquara,
que
possuía
criação
de
ovelhas
e
produzia
a
lã
para
comerciantes
e
empreendedores
locais
e
de
outros
estados.
E
nalmente
o
bolsista
or
ganizou
um
evento
de
reencontro
com
as
artesãs-tecelãs,
quando
do
retorno
da
coordenadora
da
pesquisa
do
seu
Pesquisar
com artesãs
57
56
56
-
Nesse
semestre
também
acompanharam
o
bolsista
uma
mestranda
e
uma
egressa
doutora,
Marcia
Becker
e
Marli
Brun, respectivamente.
57
- Edla
Eggert
realizou
seu
pós-doutorado sob
a
supervisão
da
Professora Dra.
Eli
Bartra
na Universidade Autonoma
Metropolitana, UAM - Unidade de Xochimilco, com bolsa do CNPq dos meses de fevereiro até julho de 2014.
151
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
pós-doutorado.
Esse
encontro
avaliou
todo
o
processo
de
atividades
que
haviam sido planejadas e que foram efetivadas com sucesso.
As possibilidades de costura e descostura deriva da ação de pesqui
-
sar em
prol do fazer/ser
humano. Observamos que
conseguimos, ao longo
do nosso
trajeto
enquanto pesquisadores,
trazer à
tona
conhecimentos que
permitiram
o
reconhecimento
de histórias
não
percebidas
por
quem
as
vi
-
vencia por meio da narrativa transcrita,
das sistematizações e dos diálogos
posteriores
tanto
entre
bolsista
com
professora,
como
também
com
as
ar
-
tesãs. Importante destacar que esse
processo de descoberta e de análise
do
próprio fazer-saber não foi um trabalho passivo por parte das artesãs-tece
-
lãs.
T
odas
elas,
com
as
suas
vivências
e
particularidades,
trouxeram
noções
e
perspectivas
importantes
para
a
consolidação
das
iniciativas
e
objetivos
do
projeto. Em
suma,
só foi
possível costurar
e
descosturar durante
a
práti
-
ca de pesquisa, pois
as artesãs estavam juntas, descosturando e
costurando
experiências,
visões
de
mundo,
e
conceitos
que
foram
e
são
caros
e
úteis
não apenas
para o projeto em
si, mas também
para o campo
do saber arte
-
sanal
e
educacional.
Mãos
coletivas,
unidas
e
distintas,
zeram
e
fazem
a
des-costura juntas.
E,
nalmente,
nossa
análise
aponta
que
o
maior
salto
formador
foi
sem
dúvida
de
quem
propôs
a
pesquisa!
Ou
seja,
bolsista
e
professora
aprenderam muito
mais! Por
exemplo, em
2013, ao
ingressar no
mundo da
Iniciação
Cientíca, o
bolsista
Douglas
tomou
mais consciência
do
movi
-
mento,
ou
talvez
a
palavra
melhor
seja,
deslocamento,
que
era
sair
da
pe
-
riferia
de São
Leopoldo,
atravessar
a cidade
para
chegar
na Universidade,
e depois
chegar em
outra cidade
da grande
Porto
Alegre,
Alvorada,
e ter
a
possibilidade de
fazer a
pesquisa empírica.
Ao
encontrar a Professora
Edla
e
o
seu
grupo
aliado
à pesquisa
em
educação,
foi
possível
colocar em
prá
-
tica o desejo de fazer a diferença desde o ingresso
no ensino universitário,
iniciado
com
bolsa
Prouni,
em
2012.
Na
mesma
intensidade,
a
professora
Edla
rearmou
sua
convicção
de
que
a
experiência
de
observação,
narra
-
ção,
visibilidade,
e
transcrição
(para
posterior sistematização
e
análise)
das
mulheres
e
os
seus
pontos
de
vista,
proporciona
o que
as
feministas
críticas
seguem
defendendo, e
que
tem
por
princípio a
ideia
de
que a
experiência,
com todas as suas dimensões e diversidade, produz conhecimento.
152
Corpo, políticas e territorialidades
Esta
pesquisa
resultou
em
processos
formadores
tanto
para
as
ar
-
tesãs
quanto
para
os/as
pesquisadores/as
que
conduziram
a
execução
do
projeto.
Ao descosturar as
tramas envolvidas nesta grande rede, os pesqui
-
sadores
foram
des-construindo
conceitualizações
acerca
do
trabalho
arte
-
sanal
produzido
por
mulheres,
ao
passo
que
também
foram
mobilizando
novas
compreensões
acerca
de
si
mesmas
e
do
ato
de
pesquisar
(pesquisan
-
do-se).
Em
simultâneo,
as
artesãs
também
foram
compreendendo,
através
dos
diálogos,
das
ocinas,
e
das
intervenções
realizadas
pela
e
na pesquisa,
de que
detinham um
conhecimento próprio, de
que dominavam uma
técni
-
ca
do saber
e do
fazer no
emprego
e na
confecção de
suas
peças artesanais.
Ao
longo
do
texto,
também
buscamos
evidenciar
que
a
pesquisa
mudou
a
vida
do
bolsista
de
Iniciação
Cientíca,
que
já
era
um
estudante
dedicado,
leitor
voraz,
graduando
do
Curso
de
Letras
Português-Inglês;
assim
como
transformou
a
pesquisadora
e
as
tecelãs.
Cada
permanência
junto ao
Atelier mudava a
percepção de quem pesquisava sobre o curso da
vida das
pessoas. E fazia
com que fossem
destinadas reexões sobre
o que
signicava ser
pesquisadora, pesquisador
no campo das
ciências humanas.
Observamos, de
igual modo,
neste processo,
que a
docência é
uma pros
-
são que nos obriga
a fazer da pesquisa junto
com ensino, pois sem a sensi
-
bilização do
olhar para
o entorno,
e da
sistematização junto com
a reexão
do que vemos
e ouvimos dicilmente chegamos perto
para que a mudança
e,
portanto,
a aprendizagem
aconteça.
Desilenciar não
só histórias
externas
a nós, mas, também e principalmente, desilenciando-nos.
Conseguimos
construir
pontes
entre
tecnologia
artesanal,
conhe
-
cimento
de
mulheres,
e
educação,
a
m
de
que
essa
tríade
possibilitasse
aberturas outras
nos
currículos EJA.
Além
disso, e
através de
um
trabalho
coletivo
feito
com
as
artesãs,
vias
de
emancipação
foram
sendo
constru
-
ídas,
e
o
erigir
de
uma
nova
consciência
–
muito
mais
humana,
digna,
e
plural –
foi sendo consolidada.
Esses processos
formadores, portanto, sig
-
nicam
o ponto
clímax da
pesquisa,
visto que
todos
eles trouxeram
e ainda
trazem resultados signicativos na vida dos/as envolvidos/as.
É por
isso que a
pesquisa, formalmente concluída,
segue dando fru
-
tos
em
suas
tramas
tecedoras
de
um
fazer
innito.
Douglas
formou-se
em
Letras no ano
de 2016, em seguida
cursou o Mestrado
em Letras na UFR
-
GS,
e
atualmente
cursa
o
Doutorado
no
mesmo
PPGLetras.
A
professora
coordenadora
do
projeto
mudou
de
instituição
e
nalizou
o
projeto.
Iniciou
Considerações nais
153
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
outra
pesquisa agora
mais
voltada
para o
âmbito
histórico
de mulheres
do
passado
e
seus
processos
criadores
e
educativos.
Porém,
segue
estudando
Álvaro
V
ieira Pinto, autor que
cuja contribuição foi basilar
nesta pesquisa,
e que lhe alcança o pensar losóco e político da educação brasileira.
A
retomada
desse
texto
que
estava
parado
desde
o
ano
de
2016
foi
signicativo,
pois
nos
obrigou
a
fazer
pensar
acerca
de
um
processo
que
nos catapultou para
outros lugares e
desaos.
A
distância temporal entre
o
“tempo
de execução
da
pesquisa”
e o
“tempo
de
escrita
sobre a
pesquisa”
também nos ajudou a observar
e a reetir sobre os reais efeitos do
projeto.
Destacamos
que
não
apenas
novos
conceitos
e
novas
visadas
bibliográcas
foram
criados
a
partir
desta
investigação,
contribuindo
assim
com
o
avanço
da discussão
artesanal feminina na
universidade, mas
também novos dire
-
cionamentos,
no
atelier
e
na
vida
das
mulheres,
foram
realizados.
Cum
-
priu-se, desse
modo, com o
objetivo da
pesquisa: histórias e
tramas foram
des-costuradas;
e
nesse
processo,
cou
o
contínuo
conhecimento,
em
um
eterno vai e vem.
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156
Corpo, políticas e territorialidades
Maria Fernanda Cestari Saad
José Licínio Backes
O
Os alunos indígenas
em espaços educativos não
indígenas e a ressignificação
do currículo
157
No contexto atual, escrever sobre as populações indígenas é de ex-
trema importância e constitui-se em uma forma de contribuir para que suas
culturas e identidades sejam reconhecidas, sobretudo, quando se trata de
mostrar sua resistência e luta em defesa de seus direitos. O presente artigo,
resultado de projeto de pesquisa com apoio do CNPq, situa-se nesse con-
texto. T
em como objetivo salientar como a presença dos alunos indígenas
traz
novas
reexões
para
o
currículo
no
que
diz
respeito
à
necessidade
de
pensá-lo a partir da diferença cultural.
Desde o período da colonização, os indígenas brasileiros têm sua
realidade marcada pela escolarização. Se, no início, a escolarização esteve
voltada
aos
interesses
do
colonizador
,
graças
à
luta
e
resistência,
a
partir
da segunda metade do século XX, os indígenas têm construído uma escola
e um currículo articulados com suas demandas comunitárias, culturas e
identidades. Embora não seja uma tarefa fácil, dado o processo histórico de
violência, discriminação e desrespeito aos seus direitos, eles têm consegui-
do construir escolas interculturais, diferenciadas e bilíngues, isto é, estão
decolonizando as escolas e os currículos.
V
ale dizer que não existe apenas uma escola indígena, mas várias
escolas indígenas, pois cada etnia vai construindo sua escola conforme sua
língua, tradição, cultura e identidade. Essa multiplicidade mostra, longe
de ser vista como um problema, o quão plurais são os povos indígenas e o
quanto a ideia de que existe uma única forma de ser indígena no Brasil não
passa de uma invenção do colonizador
, incapaz de ouvi-los e respeitá-los.
Mais do que construir escolas articuladas com a sua cultura e iden-
tidade em suas comunidades, os indígenas têm também mostrado, para os
que se dispõem a ouvi-los e para o campo da educação e do currículo, a
pertinência e relevância de pensar a escola e o currículo em torno das dife-
renças, portanto, contra o projeto da escola monocultural, homogeneizado-
ra, normalizadora e padronizadora.
A
escola e, portanto, o currículo, faz parte da história dos povos
indígenas no Brasil há séculos, ou seja, desde o período da colonização do
país.
A
escola, com um currículo ocidental e cristão, foi imposta aos povos
indígenas do Brasil como meio importante de colonização, isto é, como
meio de impor a cultura ocidental aos povos indígenas:
O Currículo Indígena e a Decolonialidade
158
Corpo, políticas e territorialidades
A
escola para os índios é a mais antiga do Brasil e as
primeiras iniciativas escolares são do período colonial: ao
tomarem posse das terras habitadas pelos povos indígenas,
uma das primeiras ações dos europeus foi organizar e impor
aos nativos um aparato educativo de acordo com os padrões
ocidentais, sendo a escola um deles (BERGAMASCHI;
SIL
V
A, 2007, p. 127).
Porém, desde o início da imposição da escola ocidental, os indí-
genas resistiram a ela.
Apesar do processo de colonização ao qual foram
submetidos, da proliferação de escolas a serviço do projeto de homogenei-
zação cultural no contexto latino-americano, incluindo o Brasil, e das ten-
tativas de apagamento da diferença, tanto a resistência quanto a diferença
continuam presentes em diferentes contextos, mesmo nas escolas:
A
construção dos estados nacionais latino-americanos
supôs um processo de homogeneização cultural em que a
educação escolar exerceu um papel fundamental, tendo por
função difundir e consolidar uma cultura comum de base
eurocêntrica, silenciando ou invisibilizando vozes, saberes,
cores, crenças e sensibilidades. (CANDAU, 201
1, p. 242).
Essa resistência fez com que, em 1988, fosse incluído na Constitui-
ção Federal do Brasil o direito de os indígenas terem uma escola intercul-
tural,
bilíngue
e
diferenciada,
enm,
uma
escola
indígena,
com
currículo
indígena. Para que essa escola se torne cada vez mais uma realidade entre
os
povos
indígenas,
estes
intensicaram
a
luta
decolonial,
isto
é,
a
luta
para
que não só a escola e o currículo, mas também a cultura como um todo,
consigam desfazer
-se das características ocidentais impostas, valorizando
e armando
a cultura e
identidades indígenas. V
ale
ressaltar que a
decolo
-
nialidade
[...] implica partir da desumanização e considerar as lutas
dos povos historicamente subalternizados pela existência,
para a construção de outros modos de viver
, de poder e de
saber
. Portanto, decolonialidade é visibilizar as lutas contra
a colonialidade a partir das pessoas, das suas práticas
sociais, epistêmicas e políticas (OLIVEIRA; CANDAU,
2010, p. 24).
159
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Considerando o sentido de decolonialidade apresentado, pode-se
inferir que as escolas indígenas, protagonizadas pelos indígenas, notada-
mente nos últimos anos, têm sido um espaço importante de decolonização.
A
desumanização produzida com a contribuição da escola imposta aos in-
dígenas tem sido questionada, e outros modos de viver
, poder e saber tem
circulado, especialmente os modos de viver
, poder e saber indígenas.
As
lutas dos povos indígenas, suas práticas culturais e suas formas de produzir
conhecimentos adquirem importância nessas escolas, tornando-as decolo-
niais e interculturais.
Merece ser destacada a capacidade de resistência dos povos indíge-
nas,
que transformam
a
escola, em
espaço
de armação
de
sua
cultura, de
seus conhecimentos, de suas formas de vida:
Mesmo sabendo não serem suas as práticas escolares, ali
na aldeia, longe da intervenção direta dos não indígenas,
constituem formas próprias de ensinar e aprender
. Intuem
a necessidade de aprender com o coração e deixam
extravasar os sentimentos ternos que aproximam as pessoas
no
respeito
às
individualidades
que
faz
cada
pessoa
viver
sua autonomia na convivência coletiva (BERGAMASCHI;
SIL
V
A, 2007, p. 138).
As diferentes etnias indígenas do Brasil resistem e lutam diariamen-
te, desde
o período
colonial, pela
armação da
sua cultura
e por
um currí
-
culo intercultural e decolonial. Os indígenas, no Brasil,
[...] têm efetivamente construído currículos interculturais
e decoloniais, estabelecendo um diálogo, sempre que
possível, entre conhecimentos ocidentais e indígenas,
sem
deixar
de
reconhecer
as
diculdades,
os
limites,
os
dilemas, as assimetrias produzidas pela lógica ocidental
que marcam a relação entre os conhecimentos (BACKES,
2019, p. 1
120).
Os indígenas, ao mostrarem as possibilidades de construir outras
escolas e currículos, escolas e currículos que valorizam a diferença, o en-
contro
e
o
diálogo
entre
os
conhecimentos,
não
só
armam
a
sua
cultura
e identidade, como também contribuem para que as escolas não indígenas
desconem
do
projeto
da
modernidade/colonialidade,
que
visa
à
homo
-
geneização
e
à
uniformização
dos
modos
de
ser
,
viver
e
conhecer
.
Como
160
Corpo, políticas e territorialidades
apontam Scaramuzza e Neves (2018, p. 10):
Aprendemos
com
os
povos
indígenas
a
desconar
das
narrativas constituidoras da modernidade, das estratégias
homogeneizadoras
que
objetivam
descaracterizar/
inferiorizar as epistemológicas indígenas e o conjunto
de pressupostos pedagógicos inerentes a esse processo.
Olhando para os processos violentos de colonização e
seus efeitos, povos indígenas ao se reconhecerem outros,
buscaram apropriar-se de muitos elementos que este evento
de
encontro
possibilitou,
no
entanto,
diferentes
signicados
foram/são
dados
as
estruturas
coloniais,
a
escola
é
uma
dessas traduções.
Embora
os
autores
se
reram
ao
contexto
das
escolas
indígenas,
como evidenciam as pesquisas de Candau (201
1), no contexto brasileiro,
nas escolas e nos currículos, o que não é comum e uniforme é visto como
um problema a ser resolvido:
A
cultura escolar dominante em nossas instituições
educativas, construída fundamentalmente a partir da
matriz político-social e epistemológica da modernidade,
prioriza o comum, o uniforme, o homogêneo, considerados
como elementos constitutivos do universal. Nesta ótica, as
diferenças são ignoradas ou consideradas um “problema” a
resolver (CANDAU, 201
1, p. 241).
Saber que há grupos culturais que desenvolvem outros currículos é
importante, e não só para esses grupos; serve também de exemplo para que
lutemos pela valorização das diferenças em todas as escolas brasileiras, já
que todas carregam uma diversidade de sujeitos. Em análise de como os
povos indígenas vão construindo currículos decoloniais e interculturais,
Backes (2018) demonstra que, se o projeto hegemônico
que sustenta a sociedade neoliberal quer convencer-
nos de que, para os diferentes, desiguais, excluídos,
discriminados, a solução está em acessar os conhecimentos
dos poderosos, com os indígenas aprendemos coisas
muito mais interessantes: aprendemos a não nos dobrar
aos
poderosos
(nem
aos
seus
conhecimentos,
nem
à
sua
pedagogia); aprendemos a resistir; aprendemos a construir
outros currículos, outras pedagogias.
Aprendemos como
construir pedagogias decoloniais (BACKES, 2018, p. 57).
161
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Nas escolas indígenas, os currículos não são somente a expressão de
um tipo de conhecimento; eles são vistos como um campo de luta da comu-
nidade para a valorização da cultura e dos conhecimentos indígenas. Con-
tudo, no contexto atual, em que há efetivamente um contato com o mundo
ocidental, a escola indígena não se restringe ao conhecimento indígena. O
conhecimento ocidental também circula nas escolas e nos currículos in-
dígenas, mas jamais como único, nem como superior aos conhecimentos
indígenas. Nesse sentido, a luta é pela construção de um currículo e uma
escola intercultural e decolonial.
Uma
questão
que
vem
à
tona
quando
se
discute
a
presença
indíge
-
na nas escolas é a do fracasso escolar
, que tem sido histórico no contexto
brasileiro. Entretanto, esse fracasso não deve ser visto como sendo de res-
ponsabilidade
dos
alunos,
mas
como
fruto
da
inadequação
do
currículo
à
realidade cultural dos alunos. Essa realidade cultural é mais decisiva ainda
quando se trata de alunos indígenas que efetivamente são oriundos de uma
cultura que não tem a ver com o currículo das escolas brasileiras. Bruno
e
Souza (2018,
p.
51),
referindo-se aos
alunos
indígenas, armam:
“como
esses alunos não conseguem se desenvolver nos parâmetros estabelecidos
pela escola, são considerados fracassados e sofrem com as marcas, os es-
tigmas e os preconceitos, dos quais a própria instituição é a principal pro-
dutora”. O mesmo processo continua quando os alunos indígenas chegam
à universidade.
A
falta ou a diculdade,
O Currículo pós-pr
esença Indígena:
As transformações em curso
[...] de diálogo com outras culturas e a inadaptação da
universidade, no entanto, aos olhos da sociedade, são
equivocadamente interpretadas como incapacidade do
indígena, aquele que não consegue acompanhar
, o atrasado,
e eles mesmos percebem a construção desse discurso sobre
si (LISBÔA; NEVES, 2019, p. 1
1).
Apesar disso, os indígenas têm incorporado em sua cultura a neces-
sidade da leitura e da escrita e de outros conhecimentos ocidentais, mas,
quando esse processo está desarticulado de sua cultura e identidade, há
maior
diculdade
de
aprendizagem.
A
escola
ocidental,
em
vez
de
localizar
162
Corpo, políticas e territorialidades
o problema na inadequação do currículo, tende a ver nos alunos indígenas
uma falta de capacidade ou de vontade de estudar
, reforçando as imagens
estereotipadas que circulam sobre os povos indígenas. Como apontam
Souza e Bruno (2017, p. 100),
os
desaos
para
que
os
alunos
matriculados
nas
diversas
escolas indígenas alcancem o domínio da leitura e da
escrita são crescentes, pois possuem línguas e culturas
distintas e, além disso, estão cotidianamente envolvidos
com a sociedade considerada civilizada.
Mesmo
em
escolas
indígenas,
devido
à
incompreensão
da
sociedade
e da política educacional, o currículo muitas vezes é imposto pela socieda-
de branca, apesar da histórica luta dos povos indígenas por um currículo
indígena, intercultural, bilíngue e diferenciado.
A
escolarização indígena
se dá em um contexto intercultural.
Ao mesmo tempo em que os indígenas
armam sua cultura
e identidade, vão se
apropriando de artefatos culturais
da sociedade ocidental:
neste caso, seu conhecimento e suas perspectivas vão além
do muro da aldeia, pois o contato com o não indígena lhes
permite conhecer o mundo de fora, conhecer tecnologias
como o celular
, o computador
, bem como tantos outros
acessos
à
informação
e
ao
conhecimento
(SOUZA;
BRUNO, 2017, p. 210).
Mesmo que, para os indígenas, no contexto atual, a leitura e a escrita
sejam vistas como importantes para a sua existência, essa aquisição não
signica
que
estão
se
dobrando
ao
modelo
ocidental
de
vida.
Trata-se
de
uma estratégia necessária para que possam conviver na cultura ocidental,
sobretudo,
para
armar a
sua cultura
e identidade
e
lutar por
seus direitos
–
garantidos pela Constituição, mas sistematicamente desrespeitados. Como
armam Bruno
e Souza
(2018, p. 42),
desde o início
da colonização,
ainda
que “a desestabilização cultural estivesse presente, os indígenas Guarani
não recuaram, mas se mantiveram unidos com lutas e resistência”. Embora
as
autoras
se reram
especicamente
aos Guaranis
de Mato
Grosso do
Sul,
há inúmeros estudos mostrando que todos os povos indígenas resistiram e
resistem cotidianamente ao processo de colonização e continuam arman
-
do suas culturas e identidades.
A
aprendizagem da língua inglesa pelos indígenas, assim como sua
163
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
aquisição
da
leitura
e
da
escrita
da
língua
portuguesa,
não
signica
do
-
brar
-se
à
cultura
ocidental.
Os
indígenas
sabem
o
que
representa
a
língua
inglesa em termos de imposição cultural e estão em permanente discussão
e diálogo para não serem colonizados:
[...] o histórico do inglês como a língua do colonialismo
e o possível dano que o ensino da língua representa nos
contextos subalternos tornam esse tipo de diálogo de
vital importância para evitar a imposição de sistemas de
saberes ocidentais aos estudantes indígenas brasileiros
(RODRIGUES;
ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p.
10).
Devem-se salientar a força e a habilidade dos indígenas, que, mes-
mo aprendendo a língua inglesa, não veem nela uma língua superior ou
mais importante e a trabalham a partir do próprio contexto cultural, com
suas ideias, valores e visões de mundo: “nessa concepção de aprendizado
de línguas, os alunos trabalham conscientemente para adquirir a segunda
língua dentro do contexto das atividades comuns regidas pela cultura local
em questão” (RODRIGUES;
ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p. 1
1).
A
cultura e o conhecimento indígena são o ponto de partida para a aprendi-
zagem da língua inglesa e, ao mesmo tempo, mantêm-se centrais ao longo
de todo o processo, porque os professores indígenas são “[...] empoderados
como os principais tomadores de decisão no desenvolvimento dos currícu-
los” (RODRIGUES;
ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p. 14).
Dessa forma, a aquisição da língua inglesa é mais uma forma de
estabelecer contatos interculturais, mostrando ao mundo a cultura e a iden-
tidade indígenas e muitas vezes conseguindo estabelecer alianças inter
-
nacionais para a defesa de seus direitos, que, como já destacamos, estão
sendo sistematicamente desrespeitados. Isso vem ocorrendo, sobretudo, a
partir
de
2019,
com
a
chegada
de
um
governo
neoliberal
e
conservador
à
Presidência do Brasil, tendo como política para os povos indígenas a as-
similação cultural e sua integração ao modelo econômico capitalista; caso
não aceitem esse sistema, podem ser exterminados. Segundo Duarte e Cé-
sar (2020, p. 15), a crise provocada pela COVID-19
[...] ofereceu a Bolsonaro a oportunidade de generalizar
e fortalecer o conservadorismo [...] no contexto da
deslegitimação das políticas pregressas de reconhecimento
de direitos a populações historicamente marginalizadas,
164
Corpo, políticas e territorialidades
como pobres, negros, mulheres, LGBTI+, indígenas,
populações tradicionais etc.
Aprender a língua inglesa, longe de ser uma forma de colonização,
para os indígenas, torna-se uma forma de fazer
-se ouvir
, de ampliar a resis-
tência,
de fortalecer
sua luta.
“No
caso especíco
da denição
de conteúdo
e lições em inglês para escolas indígenas brasileiras, essa abordagem abre
espaço para que a voz subalterna dos professores indígenas seja ouvida”
(RODRIGUES;
ALBUQUERQUE; MILLER, 2019, p. 13).
Outro ponto que contribui para que a aprendizagem dos indígenas
esteja articulada com sua cultura e identidade, não transformando a esco-
larização em um processo de imposição da cultura ocidental, é o apoio que
as
famílias
indígenas
dão
aos
seus
lhos.
“Pode-se
armar
que
o
apoio
e
a participação
das famílias
pertencentes
às etnias
indígenas são
mais altos
que os das famílias não étnicas” (CAR
V
AJAL;
ARMIJO, 2020, p. 2).
Há, ainda, a questão histórica de como o Estado brasileiro trata os
indígenas:
embora
tenham
direito
à
consulta
prévia
e
decidir
se
querem ou não empreendimentos hidrelétricos, atividades
mineradoras e madeireiras em seus territórios, os indígenas
seguem ignorados pelo Estado (SIL
V
A, 2019, p. 391).
No entanto, essa realidade está mudando. Os indígenas estão se
apropriando do Direito e passando a lutar pela sua efetivação no campo
jurídico. Em muitos casos, estão conseguindo êxito, inclusive no campo
da educação: “[...] os indígenas pararam de esperar pelo Estado e passaram
a atuar como usuários de seus direitos, valendo-se de ferramentas jurídi-
cas” (ANDRADE, 2019, p. 323).
Ainda é um processo inicial, mas muito
importante. Os indígenas lutam para que chegue o dia em que “não mais
advogados e juízes não indígenas estejam legislando e julgando nossas
causas, mas nós mesmos nos defendendo legalmente, usando as leis tradi-
cionais e da nação a qual temos escolhido nossa nacionalidade por direito”
(ANDRADE, 2019, p. 343).
Houve, efetivamente, várias transformações da escola no sentido
de ela deixar de ser um espaço privilegiado da imposição da cultura oci-
dental. Foram promulgadas várias leis, que “[...] permitiram a criação das
categorias escola indígena, professor e professora indígena, viabilizaram
e
ampliaram
experiências
educacionais
que
levavam
em
conta
especici
-
165
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
dades
culturais
e
melhoria
das
condições
de
vida
locais”
(ABBONIZIO;
GHANEM, 2016, p. 889). Nesse sentido, pode-se destacar que, de modo
geral, as escolas indígenas nos ajudam a pensar em um currículo articula-
do com
as demandas da
comunidade, que dene
os projetos educacionais,
escolhe os professores, elabora materiais didáticos conforme a realidade
da comunidade, além de privilegiar o bilinguismo e o ensino articulado
com a
pesquisa,
vendo no
docente um
sujeito
pesquisador (ABBONIZIO;
GHANEM, 2016).
Porém,
apesar
desses
vários
avanços
em
relação
à
educação,
seja
nas escolas, nos currículos, nos professores ou nos materiais didáticos, não
se pode deixar de reconhecer que há muito ainda para ser feito. É preci-
so efetivar uma política educacional condizente com a realidade indígena,
conforme previsto no ordenamento jurídico desde a Constituição de 1988.
Uma das
questões ainda
por serem
alcançadas refere-se
à incapaci
-
dade histórica de o poder público escutar os povos indígenas, reconhecen-
do que há muitos e diferentes povos indígenas no Brasil. “A
escuta atenta
às
comunidades
mostra-se
como
uma
ação
fundamental,
a
m
de
que
se
revelem as atividades abarcadas pelos processos pedagógicos, bem como
as
características
dos
espaços
que
irão
acolher
a
comunidade
escolar”
(ZA
-
NIN; SIL
V
A; CRIST
OFOLI, 2018, p. 2010).
Infelizmente, ainda é comum, por parte do poder público, ignorar a
Constituição e toda a legislação posterior
, que garante autonomia para as
escolas no que diz respeito aos seus currículos, aos processos próprios de
aprendizagem, aos projetos de escolas, incluindo a sua arquitetura. Esse
desrespeito abrange a própria or
ganização escolar e sua estrutura física,
que tendem a seguir as da escola ocidental, sem respeitar a lógica indígena.
Zanin,
Silva
e
Cristofoli
(2018,
p.
2017)
entendem
que
“[...]
o
espaço
es
-
colar é parte integrante do currículo e que a legislação deve favorecer que
sejam
respeitadas
as
perspectivas
indígenas
na
denição
desses
espaços,
sempre de acordo com o interesse de cada comunidade”.
É imperativo que o poder público ouça as diferentes etnias indígenas
do Brasil e crie escolas com espaços físicos compatíveis com sua lógica de
organização. Portanto, é preciso “[...] visibilizar
a diferença, valorizando e
oportunizando a presença desses sujeitos e de suas culturas em diferentes
ambientes
educacionais
(da
educação
básica
ao
ensino
superior)”
(ZANIN;
SIL
V
A; CRIST
OFOLI, 2018, p. 2018). Ou ainda,
166
Corpo, políticas e territorialidades
[...] é necessário considerar que o conhecimento dos
alunos indígenas é construído sobre arcabouços culturais
distintos.
O
desao,
portanto,
está
em
como
pensar
uma
aprendizagem
signicativa
a
partir
de
signicados
tão
distintos (FERRI; BAGNA
TO, 2018, p. 66).
Portanto, em se tratando de escolas indígenas, não se pode pensar
em um projeto padrão. É necessário ouvir as comunidades e garantir que
elas decidam qual projeto arquitetônico está em sintonia com a sua cultura.
Ao poder público, cabe cumprir o que está previsto na legislação, e isso
inclui projetos arquitetônicos autóctones, posto que a or
ganização do espa-
ço escolar também seja educativa, é currículo, é pedagógica.
Assim, para
construir escolas segundo a
[...] legislação que defende os direitos indígenas a uma
educação
especíca,
pode
ser
necessário
viabilizar
a
utilização de materiais, técnicas, sistemas construtivos,
bem como soluções funcionais não convencionais,
relativizando inclusive os processos que os possibilitam
(ZANIN; SIL
V
A; CRISTOFOLI, 2018, p. 2014).
Outra questão que ainda está presente nos currículos e nas escolas,
mesmo
após
a
promulgação
da
Lei
1
1.645/08,
que
obriga
a
inclusão
de
his
-
tória e cultura indígenas em todos os estabelecimentos de ensino, é a visão
estereotipada de indígena.
As imagens construídas sobre os indígenas no
contexto colonial continuam muito fortes na sociedade, nas escolas e em
seus currículos:
[...] estereótipos, imagens e representações negativas dos
povos originários como preguiçosos, selvagens, primitivos,
culturas atrasadas etc. são reproduzidas nos processos de
formação nas escolas e, ainda, constam nos livros didáticos,
também denominados de manuais escolares (BICALHO;
OLIVEIRA; MACHADO, 2018, p. 1594).
Os autores, ao trazerem os resultados de uma pesquisa realizada com
alunos
de
escolas
públicas
de
Goiás,
evidenciam
algo
recorrente
quanto
à
imagem que a sociedade tem dos indígenas: “a maioria das respostas fazem
referências
às
matas
e
orestas,
o
que
explicita
um
conjunto
de
imagens
e
representações
do
indígena
genérico,
que
vive
nas
orestas,
ainda
for
-
temente arraigadas no imaginário social” (BICALHO; OLIVEIRA; MA-
167
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
CHADO, 2018, p. 1602).
Dessa forma, quando os indígenas não correspondem a essa ima-
gem, são acusados de não serem indígenas, de não viverem mais de acordo
com a sua
cultura e identidade, como se
o indígena não pudesse modicar
sua cultura. T
rata-se de uma imagem construída no contexto da coloniza-
ção que circula sistematicamente nos currículos das escolas, principalmen-
te nos livros didáticos:
há um número considerável de pesquisas que analisa os
livros didáticos e as representações dos indígenas. Imagens
distorcidas e estereótipos que em nada correspondem ao
modo de vida dos T
apuios do Carretão e de outros povos
indígenas que passaram por processos de hibridização
étnica (BICALHO; OLIVEIRA; MACHADO, 2018, p.
1607).
Para
que
essa
realidade
mude,
é
fundamental
que
a
Lei
1
1.645/08
seja trabalhada em todos os estabelecimentos de ensino.
Aliás, é interes-
sante observar que, no contexto atual, há todo um conjunto de ações pro-
movidas, seja pelos municípios ou estados, em função da existência da
Base Nacional Comum Curricular
, com o argumento de que, como se trata
de uma Lei, ela deve ser cumprida. Por que não se teve e não se tem a
mesma preocupação com a Lei
1
1.645/08? Por que, nesse caso, não se usa
o
argumento
de
por
ser
Lei,
deve
ser
cumprida?
Obviamente,
a
resposta
passa pela pouca importância que historicamente o poder público tem dado
às
populações indígenas,
em
função da
discriminação e
da
falta de
vontade
de reconhecer sua importância para o Brasil.
Não podemos compactuar com isso. Precisamos insistir na “[...] ne-
cessidade de os(as) educadoras trabalharem em sala de aula a história e as
culturas indígenas, bem como o espaço escolar propiciar e promover ati-
vidades sobre a temática” (BICALHO, OLIVEIRA
e MACHADO, 2018,
p. 1609). Da mesma maneira, precisamos insistir para que o poder público
assuma “[...] sua responsabilidade para com a educação brasileira em geral
e
a implementação
da Lei
1
1.645/08” (BICALHO;
OLIVEIRA; MACHA
-
DO, 2018, p. 1609).
Essa insistência torna-se necessária porque a educação ainda não
incorporou a diferença como algo positivo; pelo contrário, persiste a ideia
de diferença associada com inferioridade, décit e incapacidade:
168
Corpo, políticas e territorialidades
a
educação
tem
papel
fundamental
na
ressignicação
de
identidades
mar
ginalizadas
por
processos
que
levam
à
inferiorização
e
à
exclusão.
Apesar
de
esforços
recentes,
parte das escolas não contempla, em suas práticas
pedagógicas,
questões
relacionadas
à
pluralidade
cultural
(FERRI; BAGNA
TO, 2018, p. 65).
A
insistência também se torna necessária porque o processo de de-
sumanização iniciado com a colonização, mesmo com a mudança da legis-
lação
e
o
direito
à
diversidade
cultural
reconhecido
constitucionalmente
foi
mantido:
[...] supressão de raízes culturais foi mantido e, muitas
vezes, aprofundado ao longo de toda a História do Brasil,
culminando com a sociedade atual que discrimina, muitas
vezes sem perceber
, ou nega essa discriminação por
considerar que já é um fato consumado (FONTENELE;
CA
V
ALCANTE, 2020, p. 6).
Portanto, não cabe mais a omissão da escola no que se refere aos
processos de discriminação e racismo que persistem na sociedade brasi-
leira e, muitas vezes, estão presentes nos currículos das escolas, de forma
velada ou explícita:
[...] a escola deve adotar uma agenda positiva de inclusão
de todos os sujeitos e promover alterações curriculares que
permitam a consolidação desses avanços através de sua
incorporação ao cotidiano dos estudantes, com destaque
para o combate ao racismo e a toda forma de discriminação
(FONTENELE; CA
V
ALCANTE, 2020, p. 7).
Ao enfatizarmos o papel da escola, não a concebemos como uma
instituição descolada da sociedade, muito menos dizemos que é culpa dos
professores que essa agenda positiva ainda seja incipiente. Na verdade, a
agenda positiva depende de todo um contexto favorável, que inclui políti-
ca de valorização dos docentes e um tempo remunerado para a formação
continuada.
A
formação continuada deve ser inserida no cotidiano das
escolas, como forma de garantir que a educação básica
acompanhe as mudanças legais e as transformações gerais
que interferem no cotidiano dos alunos, evitando um
169
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Por
m,
deve-se
dizer
que
a
insistência
na
lei
é
necessária
porque
ela
distanciamento entre a escola e a vida (FONTENELE;
CA
V
ALCANTE, 2020, p. 13).
E ela está sendo escrita e documentada pelos indígenas,
[...] é um mecanismo coadjuvante na transformação da
sociedade. Somente a ação protagonista dos usuários
da
lei
pode
operar
mudanças
signicativas.
Por
isso,
a
história indígena no Brasil ainda necessita ser escrita e
documentada de forma ampla e profunda para ser usada
nas escolas (ANDRADE, 2019, p. 351).
[...] Caracterizado menos por uma releitura das publicações
feitas por antropólogos, linguistas e viajantes, e mais por
criação e proteção dos seus direitos autorais, identidade e
reapropriação do conhecimento tradicional (ANDRADE,
2019, p. 334).
Ainda em
relação à Lei 1
1.645/08, com Ângelo
(2019, p. 375),
ar
-
mamos
que,
após
mais
de
“[...]
dez
anos
da
Lei
nº
1
1.645/2008
não
há
como celebrar
, mas apenas apoiar todas as iniciativas daqueles engajados
na luta por uma educação mais diversa e representativa das culturas indíge-
nas”. Considerando que o artigo foi escrito em fevereiro de 2019, portanto,
antes da implementação da necropolítica bolsonarista, pode-se dizer que
atualmente menos ainda temos o que celebrar
, mas temos muitas razões
para resistir e lutar para que as populações indígenas tenham seus direitos
garantidos e a escola e o currículo contribua para construir uma imagem
verdadeira sobre a história e a cultura indígenas, sem estereótipos e sem
visões discriminatórias e racistas.
Assim, precisamos, urgentemente,
[...] reverter o quadro do apagamento da presença dos
afrodescendentes, dos indígenas e das mulheres nas
produções [e] reposicionar saberes, práticas e repertórios
produzidos por esses sujeitos como formas válidas e
legítimas de conhecimento (REIS, 2020, p. 13).
Basta de sacralização da ciência ocidental, como se fosse a única
forma de produzir conhecimento, seja nas universidades, nas escolas e nos
currículos:
170
Corpo, políticas e territorialidades
[...] é preciso aproximar diferentes domínios de saberes
e conhecimentos acumulados pelas experiências das
culturas.
A
construção de saberes pelos povos indígenas
e tradicionais não pode ser dispensada como referências
cognitivas sem importância (ARAÚJO; SÁ;
ALMEIDA,
2020, p. 13).
Como vimos, os indígenas estão produzindo um conjunto de trans-
formações curriculares. Eles estão afetando os currículos. Sua experiência
e presença nas escolas contribuem para produzir outra imagem e ideia de
quem são os indígenas no Brasil.
Apesar de persistirem imagens e ideias estereotipadas, observa-se
também
a
construção
de
outras
imagens,
graças
à
resistência
e
luta
histó
-
rica dos povos indígenas, que não se dobram à lógica da cultura ocidental.
Eles,
mesmo
no contato
com
a cultura
ocidental,
encontram formas
de ar
-
mar a sua cultura e identidade.
Concluímos o artigo reconhecendo que temos muito a aprender com
os indígenas. O campo da educação e, principalmente, o campo do currí-
culo podem aprender com os indígenas como construir currículos plurais,
articulados com as comunidades, culturas e identidades dos seus alunos.
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174
Corpo, políticas e territorialidades
Franciele Caroline Pavão Garcia
Ruth Pavan
C
Currículo escolar e
diferença decolonial:
Perspectivas de estudantes
do curso de pedagogia
175
Durante séculos, a escola e seu currículo lidaram com a diferença
sob
uma
perspectiva
colonial,
isto
é,
desqualicando,
subalternizando
e
inferiorizando todos
os sujeitos que
estavam fora
da lógica
da cultura oci
-
dental.
Nas
últimas
décadas,
movimentos
sociais,
teóricos
do
campo
do
currículo e docentes têm defendido um currículo multi/intercultural, vendo
a diferença na perspectiva decolonial e questionando os processos de infe-
riorização, subalternização e desqualicação.
O presente capítulo, resultado de uma dissertação de mestrado com
apoio da CAPES (PROSUC/CAPES), insere-se nesse contexto.
A
disser-
tação
articula-se
com
o
projeto
de
pesquisa
“Currículo
e
(de)colonialida
-
de: relações
étnico-raciais, gênero
e desigualdade
social”, coordenado
por
Ruth
Pavan
(Bolsa
Produtividade,
CNPq).
O
objetivo
do
capítulo
é
anali
-
sar
a
fala
de
estudantes
de
Pedagogia
sobre
as
diferenças
culturais,
iden
-
ticando
se
veem
nessas
diferenças
uma
forma
de
qualicar
o
processo
pedagógico.
Na primeira parte, trazemos a perspectiva
teórica, com reexões do
campo
da
multi/interculturalidade
crítica.
No
segundo
momento,
analisa
-
mos
as
falas
de
seis
estudantes
de
Pedagogia
de
uma
universidade
localiza
-
da na capital de um estado do centro-oeste do país.
As falas foram obtidas
por meio de
entrevistas semiestruturadas, sendo três realizadas via
Google
Meet e
três de forma presencial.
Os nomes das estudantes
são ctícios, em
conformidade
com as
exigências do
Comitê de
Ética. No
nal,
fazemos al
-
guns
apontamentos
sobre
a
importância
de
um
currículo
multi/intercultural
nestes tempos tão difíceis.
O contexto teórico da pesquisa
Mesmo
que
há
anos
o
campo
do
currículo
arme
que
este
é
muito
mais
que
a
lista
de
conteúdos
ou
um
documento
ocial
a
ser
seguido
na
sala
de
aula,
essa
ideia
ainda
está
presente,
seja
nos
cursos
de
formação,
seja
nas
percepções
de
professores
que
atuam
em
sala
de
aula.
No
senti
-
do
etimológico,
“currículo
é
palavra
de
origem
latina,
derivada
do
verbo
curr
er
e
,
que
signica
caminho
ou
percurso
a
seguir
,
jornada,
trajetória”
(RANGHETTI; GESSER, 201
1, p. 15). Porém, mesmo que o currículo
seja
associado
a
um
caminho
e
um
percurso
único,
como,
por
exemplo,
intenta a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), há vários caminhos
176
Corpo, políticas e territorialidades
e percursos
alternativos, que se dão
seja em função
dos diferentes sujeitos
que o percorrem, seja
em função dos processos de ressignicação,
criação
e recriação protagonizados pelos docentes e toda a comunidade escolar
.
O
currículo
“[...]
é
um
terreno
de
produção
e
de
política
cultural,
no qual os materiais existentes funcionam como matéria-prima de criação
e
recriação
e,
sobretudo,
de
contestação
e
transgressão”,
tendo
“[...]
ação
direta
ou indireta
na
formação e
desenvolvimento
do aluno”
(MOREIRA;
SIL
V
A, 1997, p. 28). Nota-se, a partir do pensamento dos autores, que o
currículo é um campo onde é possível a criação de debates, de tensões em
torno das questões culturais, e isso, necessariamente, está presente no pro-
cesso educacional. Para os
autores, o currículo escolar não é algo
estático,
nem
o
é
seu
conceito.
O
currículo
não
deve
expressar
apenas
uma
“[...]
visão
homogênea
e
padronizada
dos
conteúdos
e
dos
sujeitos
presentes
no processo educacional, assumindo uma visão monocultural da educação
e,
particularmente,
da
cultura
escolar”
(MOREIRA;
CANDAU,
2003,
p.
160).
Apple
(1999) arma
que
o currículo
se
relaciona
com os
interesses
sociais
de
um
determinado
contexto
histórico
e
que
possui
dimensões
cien
-
tícas,
artísticas
e
losócas
do
conhecimento.
Portanto,
também
Apple
(1999) reconhece que o currículo atende a interesses sociais e que, nesse
sentido, sempre estará em disputa por diferentes concepções dos diferentes
grupos socioculturais:
O
currículo
nunca
é
apenas
um
conjunto
neutro
de
conhecimentos
que,
de
algum
modo,
aparece
nos
textos
e
nas
salas
de
aula
de
uma
nação.
É
sempre
parte
de
uma
tradição seletiva,
da seleção
de alguém,
da visão
de algum
grupo
do
conhecimento
legítimo.
O
currículo
é
produto
das
tensões,
conitos
e
compromissos
culturais,
políticos
e econômicos
que organizam e
desorganizam um
povo [...]
(APPLE, 1999, p. 51).
Essas tensões, compromissos
e conitos não se
dão de forma isola
-
da e têm a ver com o debate mais amplo da educação, sempre afeito a refor
-
mas:
“as
palavras
educação,
currículo
e
reforma
têm
uma
história
tal
que
parecem
andar
de
mãos
dadas”
(GESSER,
2014,
p.
33). Assim,
toda
vez
que há
mudança em algum
destes, essa
mudança reete-se diretamente
em
outros campos da educação.
Além disso, é importante ressaltar
, conforme
Apple (1999) e Moreira e Silva (1997), entre outros, que o currículo, his-
177
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
toricamente,
se
reestruturou
em
função de
um
tipo de
projeto
de
sociedade.
T
ambém
Sacristán
(1999)
se
aproxima
da
reexão
desses
autores
ao
destacar
que
o
meio
(sociedade)
inuencia
diretamente
o
currículo.
O
autor ratica e amplia
a noção de que
a conexão entre a sociedade
externa
e o ambiente escolar
, ou seja, o próprio currículo,
[...]
é
a
ligação
entre
a
cultura
e
a
sociedade
exterior
à
escola
e
à educação;
entre
o conhecimento
e
cultura herdados
e
a
aprendizagem
dos alunos; entre
a teoria
(ideias, suposições
e aspirações) e a prática possível, dadas determinadas
condições (SACRISTÁN, 1999, p. 61).
A
relação
existente
entre
o
currículo
escolar
e
a
sociedade
produz
múltiplos
efeitos.
Ela
pode,
por
exemplo,
produzir
e
reproduzir
os
pro
-
cessos
discriminatórios
existentes
na
sociedade,
reverberando
dentro
da
escola.
Para
Silva
(2004,
p.
23),
observa-se
a
discriminação
de
culturas
e
grupos culturais
no currículo
escolar
, pois
este “é
um dos
locais privilegia
-
dos onde
se entrecruzam
saber e
poder
, representação
e domínio,
discurso
e
regulação”.
Isto
faz
com
que
a
escola
e
seu
currículo
privilegiem
algu
-
mas culturas,
alguns
conhecimentos, e
excluam
outros. Sistematicamente,
segundo
o
autor
,
os
conhecimentos
ocidentais
são
valorizados
e
contem
-
plados nos currículos.
Os
autores
em
quem
nos
pautamos
ao
longo
deste
texto,
embora
guardem diferenças
entre si, problematizam
o currículo em
uma perspecti
-
va crítica, opondo-se radicalmente aos processos de exclusão.
Cabe ao currículo escolar
, então, ainda que relacionado ao
tecido
social
da
sociedade
capitalista,
problematizar
todas
as formas de exclusão existentes na sociedade, bem como
as
que
são
(re)produzidas
pela
própria
escola.
Sobretudo,
cabe-lhe mostrar que não é o indivíduo ou determinados
grupos
sociais
que
se
excluem,
mas
a
sociedade
que produz
diferentes processos de exclusão.
Assim o currículo escolar
poderá
contribuir
para
a
dignidade,
a
emancipação
das
pessoas e a justiça social (P
A
V
AN, 2018, p. 200).
Dentro dessa perspectiva, o currículo não é visto como um manual
de
instruções
ou um
formulário de
metas
a serem
atingidas. Na
perspectiva
crítica do currículo, é indispensável o reconhecimento de que a escola é
composta
de
diferentes
grupos
socioculturais,
ou
seja,
de
grupos
com
va
-
178
Corpo, políticas e territorialidades
lores, hábitos, crenças e culturas diferentes. Em função dessa diversidade,
não
faz sentido
um único
currículo para
as escolas.
Não
faz sentido
porque
“[...] o
padrão curricular não
consegue promover
justiça para pessoas
dife
-
rentes.
Embora
aparentemente
pareça
promover
,
não
o
consegue.
É
preciso
que as comunidades, com suas culturas e necessidades, desenvolvam as
próprias estratégias de ensino” (HYPOLITO, 2014, p. 17).
Candau
(2014)
também
contribui
para
esta
reexão,
ressaltando
a
relação entre cultura e educação e explicitando a impossibilidade de uma
experiência pedagógica desculturalizada. Conforme a autora,
Não
há
educação
que
não
esteja
imersa
nos
processos
culturais da sociedade, particularmente, do momento
histórico
e
do
contexto
em
que
se
situa.
Neste
sentido,
não
é
possível
conceber
uma
experiência
pedagógica
‘desculturalizada’,
isto
é,
em
que
nenhum
traço
cultural
a
congure (CANDAU, 2014, p. 36).
V
ivemos
em
um
país
com
uma
gama
imensurável
de
hábitos,
cos
-
tumes,
crenças
e
culturas
indissociáveis
dos
sujeitos
que
as
vivenciaram,
e
tal
indissociabilidade
está
presente
também
na
educação,
pois
faz
parte
do contexto
histórico. O
reconhecimento
das diferenças,
no bojo
da teoria
crítica, trouxe para o campo do currículo as teorizações multiculturais.
O multiculturalismo constitui-se em um movimento que começou a
aparecer
na
educação brasileira
na
década
de
1990,
ligado principalmente
aos estudos curriculares.
Ainda que de forma bastante tênue, a perspectiva
multicultural
aparece
nos
Parâmetros
Curriculares
de
1997,
trazendo
para
as
políticas
curriculares
as
discussões
ligadas
a
uma
prática
pedagógica
que busca a valorização das diferentes identidades.
Assim,
uma educação multicultural voltada para a incorporação
da
diversidade
cultural
no
cotidiano
pedagógico
tem
emergido
em
debates
e
discussões
nacionais
e
internacionais, buscando-se questionar pressupostos
teóricos
e
implicações
pedagógico-curriculares
de
uma
educação
voltada
à
valorização
das
identidades
múltiplas
no âmbito da
educação formal. No Brasil, o debate
assume
especial
relevância
no
contexto
da
elaboração
de
uma
proposta
curricular
nacional
–
os
Parâmetros
Curriculares
Nacionais PCNs (Brasil, 1997) –, que inclui ‘pluralidade
cultural’
como um dos
temas a
serem trabalhados
(CANEN,
2000, p. 136).
179
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
De certa forma começa-se a colocar em xeque a ideia de uma única
cultura
como
parâmetro
para
o
currículo.
Candau
(2000)
destaca
que,
por
muito tempo, a cultura escolar foi moldada com
ênfase na igualdade e que
isto acabou, na prática,
contribuindo para um contexto de minimização
ou
mesmo
silenciamento
da
pluralidade
e
diversidade
de
vozes,
de
estilos
e
de
sujeitos
socioculturais.
Os
movimentos
sociais
e
suas
reivindicações
pelo
direito
à
diferença,
que
foram
obtendo
cada
vez
mais
força,
contribuíram
para uma educação que incorporasse questões multiculturais, também en-
tendida como educação intercultural
[...]
a
partir
das
reivindicações
de
diferentes
movimentos
sociais
que
defendem
o
direito
à
diferença
se
tem
levantado,
cada
vez
com
maior
força,
a
exigência
de
uma
cultura
educacional mais
plural, que questione estereótipos
sociais
e promova uma educação verdadeiramente intercultural,
antirracista
e
antissexista,
como
princípio
congurador
do
sistema escolar como um todo e não somente orientada e
determinadas áreas curriculares, situações
e grupos sociais
(CANDAU, 2000, p. 158).
Pensar um currículo multicultural implica considerar as relações de
poder
que
denem
as
relações
sociais
em
um
determinado
espaço
onde
vivem
sujeitos
de
diferentes
culturas:
“[...]
o
multiculturalismo
não
pode
ser separado das
relações de poder
que, antes de
tudo, obrigaram essas
di
-
ferentes culturas
raciais,
étnicas e
nacionais
a viverem
no
mesmo espaço”
(SIL
V
A,
2004,
p.
85).
Os
debates
em
torno
do
multiculturalismo,
inclusive,
não
podem
“[...]
se
dar
ao
luxo
de
ocultar
suas
conexões
com
as
relações
materiais
mais
amplas
através
do
enfoque
de
questões
teóricas
divorcia
-
das
das
experiências
vividas
pelos
grupos
oprimidos”
(McLAREN,
1997,
p.
58).
Nesse
sentido,
podemos
armar
que,
ao
assumirmos
um
currículo
multi/intercultural, estamos reconhecendo que a sociedade brasileira e, em
decorrência, também
a escola são
constituídas “[...] de
identidades plurais,
com
base
na
diversidade
de
raças,
gênero,
classe
social,
padrões
cultu
-
rais
e linguísticos,
habilidades
e outros
marcadores
identitários” (CANEN;
OLIVEIRA, 2002, p. 61), construídos incessantemente nesses espaços por
meio
das
relações
sociais
de
poder
,
ou
seja,
as
identidades
estão
sempre
ligadas ao campo político, como salientam os diferentes autores utilizados
em nosso texto.
Para Cortesão e Stoer (2008), o reconhecimento das relações de po-
180
Corpo, políticas e territorialidades
der entre
diferentes grupos
nos processos culturais
e no
currículo é funda
-
mental para que se possa ter uma perspectiva crítica do multiculturalismo,
apondo-se
ao
multiculturalismo
comercial,
liberal,
folclórico
ou
benigno.
Segundo os autores,
se
não
se
reconhecer
isto
[as
relações
de
poder],
corre-
se
o
risco
de
a
preocupação
incidir
em
‘estilos
de
vida’
(multiculturalismo
benigno)
em
vez
de
existir
uma
simultânea
preocupação
com
‘estilos
de
vida’
e
com
‘oportunidades
na
vida’
(multiculturalismo
crítico)
(COR
TESÃO; STOER 2008, p. 189).
O
multiculturalismo
crítico,
na
educação,
reconhece
o
outro,
ou
seja,
“[...]
aquele
que
é
oposto
a
nós,
ao
nosso
modo
de
ser
e
agir
no
mundo”
(NEIRA; NUNES, 2009, p. 215).
Ainda conforme os autores, uma educa-
ção
multiculturalmente
orientada
requer
um
posicionamento
favorável
à
luta contra a opressão, o preconceito e a discriminação a que historicamen-
te alguns grupos têm sido submetidos:
Na escola democrática destes tempos, uma educação
multiculturalmente orientada implica a assunção de
uma postura clara em favor da luta contra a opressão, o
preconceito e a discriminação aos quais foram submetidos
alguns
grupos
historicamente
desprovidos
de
poder
,
sem
que
se perca
de vista
a
perene composição
de novos
grupos
culturais (NEIRA; NUNES, 2009, p. 210).
Pode-se observar que todos os autores, ao defenderem o multicul-
turalismo crítico para o currículo, entendem que ele requer um posiciona-
mento
e
ações
comprometidas
politicamente
com
os
grupos
que
tiveram
sua
diferença produzida
pela
lógica
colonial e,
no
contexto
atual, pela
co
-
lonialidade:
Multiculturalismo
em
educação
envolve
[...]
um
posicionamento claro a favor da luta contra a opressão
e
a
discriminação
a
que
certos
grupos
minoritários
têm,
historicamente,
sido
submetidos
por
grupos
mais
poderosos
e
privilegiados.
Nesse
sentido,
multiculturalismo
em
educação envolve, necessariamente, além de estudos
e pesquisas, ações politicamente comprometidas
(MOREIRA; CANDAU, 2010, p. 7).
181
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Nesta perspectiva, compreendemos o currículo em uma dimensão
crítica,
como algo
que
tem inescapavelmente
uma
condição multicultural.
O currículo deve ser capaz de proporcionar uma educação
para o reconhe
-
cimento do
outro, para
o diálogo
entre os
diferentes grupos sociais
e cultu
-
rais. É importante
desenvolver uma negociação
cultural “[...] que
enfrente
os
conitos provocados
pela assimetria
de poder
entre os
diferentes
grupos
socioculturais nas nossas sociedades [...]” (CANDAU, 2008, p. 52).
Candau (2008), mesmo escrevendo sobre o multiculturalismo, tem
também
defendido
um
currículo
intercultural.
Porém,
a
rigor
,
é
possível
dizer
que as
reexões do
campo
da interculturalidade
crítica
e do
multicul
-
turalismo
crítico são
muito
próximas, pois
defendem a
necessidade
de pro
-
blematizar as
relações de
poder
,
questionam os
processos de
subalterniza
-
ção, discriminação e racismo e lutam por uma sociedade com
justiça, bem
como
por
uma
justiça
curricular:
“Candau,
que
investiga
desde
a
década
de 1990
as relações
entre
culturas e
educação, tem
utilizado tanto
o termo
interculturalidade
quanto
multiculturismo
e,
em
alguns
momentos,
o
con
-
ceito
de
multi/interculturalidade”
(BACKES,
2013,
p.
55).
Este
autor
ainda
ressalta, com base em diferentes autores, que a questão não está no uso do
prexo
inter
- ou
multi
-, mas na compreensão de que as diferentes culturas
presentes no espaço-tempo curricular devem ser respeitadas e acolhidas,
rompendo
com
processos
de
discriminação,
preconceito
e
inferiorização.
Portanto, utilizaremos
multiculturalidade
e
inter
culturalidade
com o mes-
mo
sentido,
embora
saibamos
que
“podemos
encontrar
na
literatura
um
amplo debate sobre as diferenças e aproximações entre multiculturalismo
e
interculturalismo,
bem
como
sobre
seus
impactos
na
educação”
(CAN
-
DAU; KOFF
, 2006, p. 475).
A
interculturalidade é vista por W
alsh (2001) como uma meta a ser
alcançada,
com
quatro
dimensões:
processo
dinâmico
e
permanente,
in
-
tercâmbio,
espaço
de
negociação
e
de
tradução,
e
tarefa
social
e
política.
Segundo ela, a interculturalidade é:
[...]
Um
processo
dinâmico
e
permanente
de
relação,
comunicação
e
aprendizagem
entre
culturas
em
condições
de
respeito,
legitimidade
mútua,
simetria
e
igualdade.
Um
intercâmbio que
se
constrói entre
pessoas, conhecimentos,
saberes e práticas culturalmente diferentes, buscando
desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença;
Um
espaço
de
negociação
e
de
tradução
onde
as
182
Corpo, políticas e territorialidades
desigualdades
sociais,
econômicas e
políticas,
e
as relações
e
os
conitos
de
poder
da
sociedade
não
são
mantidos
ocultos e sim reconhecidos e confrontados;
Uma
tarefa
social
e
política
que
interpela
ao
conjunto
da
sociedade, que parte de práticas e ações sociais concretas
e conscientes e tenta criar modos de responsabilidade e
solidariedade [...] (W
ALSH, 2001, p. 10-1
1).
Assim como W
alsh (2001), Fleuri e Ferreira (2006) tem defendi-
do uma educação com um currículo intercultural, colocando em cena os
diferentes
grupos
culturais
e
os
complexos
debates
que
eles
originam
nas
relações estabelecidas.
A
intercultura pode ser vista como um
[...]
complexo
campo
de
debate
em
que
se
enfrentam
polissemicamente
(constituindo
diferentes
signicados,
a
partir
de
diferentes
contextos
teóricos
e
políticos,
sociais
e culturais) e polifonicamente (expressando-se através de
múltiplos
termos
e
concepções,
por
vezes
ambivalentes
e
paradoxais)
os
desaos
que
surgem
nas
relações
entre
diferentes
sujeitos
socioculturais
(FLEURI;
FERREIRA,
2006, p. 15).
Esses
desaos
e
relações
estão
presentes
nos
currículos.
A
educa
-
ção pautada
em um
currículo intercultural,
segundo Candau
e Ko (2006),
deve,
portanto,
ser
caracterizada
pela
intenção
clara
e
objetiva
de
propor
-
cionar
diálogos
e
trocas
entre
os
diferentes
grupos
e
aqueles
que
os
cons
-
tituem, em um processo de permanente construção, reconhecendo que há
diferentes
formas
de
viver
como
seres
humanos:
“[...]
Só
posso
respeitar
verdadeiramente a alteridade do outro se reconheço essa alteridade como
uma outra modalidade possível do humano” (FORQUIN, 1993, p. 63).
Assumir a perspectiva intercultural impacta o currículo e o plane-
jamento
da
prática
educativa,
bem
como
a
própria
didática,
requerendo
novos olhares e proporcionando muitas questões:
Certamente a introdução da perspectiva multi/intercultural
no dia a dia das escolas e da sala de aula provoca muitas
questões para a didática relacionadas com a seleção
dos
conteúdos
escolares,
as
estratégias
de
ensino,
o
relacionamento professor-aluno e aluno-aluno, o sistema
de
avaliação,
o
papel
do
professor,
a
organização
da
sala de aula, as atividades extraclasse, a relação escola-
183
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
comunidade, entre outras. T
rata-se de temas sem dúvida
‘clássicos’
no
campo
da
didática,
que
necessitam
ser
revisitados
e
ressignicados
a
partir
deste
novo
olhar
.
(CANDAU;
ANHORN, 2000, p. 14-15).
Além
de
modicar
os
temas
“clássicos”
da
didática,
a
implemen
-
tação
do
interculturalismo
na
educação
e
no
currículo
não
é
algo
simples
e
requer
vigilância
permanente
para
evitar
a
reedição
de
novas
formas
de
sujeição.
Segundo
Fleuri
(2017),
o
interesse
pelo
tema
tem
levado
à
pro
-
moção do
reconhecimento
da diversidade
cultural, mas,
muitas vezes,
esse
reconhecimento acontece como uma nova tendência multicultural sem sen-
tido crítico,
político, construtivo
e transformador:
“[...] Contraditoriamen
-
te, o esforço
por promover o diálogo
e a cooperação crítica
e criativa entre
sujeitos socioculturais diferentes corre
o risco de reeditar novas formas
de
sujeição e subalternização” (FLEURI, 2017, p. 178).
Com
base
nessas
teorizações
curriculares,
estabelecemos
contato
com
estudantes
de
Pedagogia e
analisamos
suas
falas sobre
o
currículo e
as
diferenças na perspectiva decolonial.
Um diálogo com estudantes de pedagogia
sobr
e currículo e diferença decolonial
Iniciamos destacando
o que
arma Candau (2008,
p. 47):
“[...] atu
-
almente
a
questão
da
diferença
assume
importância
especial
e
transfor
-
ma-se
num
direito,
não
só
o
direito
dos
diferentes
a
serem
iguais,
mas
o
direito de armar a
diferença”.
A
referência à armação
de Candau (2008)
está profundamente relacionada ao processo educativo de modo geral e ao
currículo
em particular
.
Entendemos, com
a autora,
que o
direito à
diferen
-
ça,
sem
que
esta
signique
inferiorização,
é
de
suma
importância
para
a
produção de um currículo crítico, inter/multicultural.
O acolhimento das diferenças no currículo escolar
, ao ser abordado
com as
estudantes de
Pedagogia, produziu
o consenso de
que os
currículos
devem abranger as diferenças, reconhecendo-as,
respeitando-as e conside
-
rando-as nos seus mais diversos aspectos.
Diferenças culturais, diferenças comportamentais, diferenças nas
formas
de
aprendizagem
e
diferenças
de
desenvolvimento,
assim
como
decorrentes de necessidades especiais, foram citadas pelas entrevistadas
184
Corpo, políticas e territorialidades
como
contextos
que
se
fazem
presentes
no
currículo
escolar
e
que
devem
ser
considerados.
A
armação
de que
parece que
“[...] a
escola
sempre teve
diculdade
em
lidar
com
a
pluralidade
e
a
diferença.
T
ende
a
silenciá-las
e
neutralizá-las. Sente-se
mais confortável
com
a homogeneização
e
a pa
-
dronização
[...]”
(MOREIRA;
CANDAU,
2003,
p.
161),
está
de
alguma
forma
sendo
modicada
nos
cursos
de
formação
inicial,
ao
menos
no
curso
de Pedagogia investigado.
A
importância de
considerar as
diferenças foi
percebida na
fala das
estudantes e nos contextos por elas apresentados. Suas percepções de cur
-
rículo
também se
mostraram
inuenciadas pela
realidade
do
meio em
que
estão inseridas e nos quais vivenciaram e vivenciam suas experiências edu-
cacionais.
Juliana, única de nossas entrevistadas pertencente a uma etnia indí-
gena,
vive
sua
experiência
na
escola
da
aldeia.
Ela
destaca
a
necessidade
de o currículo contemplar a realidade da escola, citando, em particular
, o
caso da
aldeia e
a sua
língua materna,
que a
distingue culturalmente
e tam
-
bém
fortalece
sua
identidade.
Na
sua
fala,
“[...]
o
diretor
,
o
coordenador
,
poderia [mudar
o
currículo conforme]
[...]
é a
realidade ali
na
escola [...]”
(Juliana). A
estudante
faz
esta
armação
porque
entende
que
na
aldeia
se
utiliza
a
língua materna,
“porque
aqui
na
[escola
da]
aldeia não
é
inserida
a língua materna nossa [...]” (Juliana).
A
fala
evidencia
que
o
currículo
escolar
proposto
pela
política
o
-
cial
ignora
a
realidade
do
idioma
local.
Conforme
mencionado
por
Moreira
e
Candau
(2003),
a
escola
tem
diculdade
para
lidar
com
a
pluralidade
e
tende
a
neutralizá-la,
e
um
dos
fatores
que
provoca
essa
diculdade
é
a
própria
política
curricular
ocial,
que
estabelece
uma
opressora
padroni
-
zação.
A
busca
pela
adequação
do
currículo
à
realidade
do
idioma
local
representa a procura pelo acolhimento da diferença e, de certa forma, uma
insurgência,
como
argumenta
Candau
(2020)
ao
debater
sobre
as
diferen
-
ças, a educação intercultural e a decolonialidade.
T
ambém
nesse
contexto
é
pertinente
trazer
a
abordagem
de
Fleuri
(2000), quando menciona o multiculturalismo como meio que possibilita o
pensamento de alternativas para as minorias e, portanto, o acolhimento de
suas diferenças:
[...]
o
multiculturalismo
reconhece
que
cada
povo
e
cada
grupo
social
desenvolve
historicamente
uma
identidade
e
uma
cultura
próprias.
Considera
que
cada
cultura
é
185
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
válida
em
si
mesma,
na
medida
em
que
corresponde
às
necessidades
e às
opções
de uma
coletividade.
Ao
enfatizar
a
historicidade
e
o
relativismo
inerentes
à
construção
das
identidades culturais, o multiculturalismo permite pensar
alternativas para as minorias (FLEURI, 2000, p. 5).
Para as entrevistadas Gabriela e
V
alentina, as diferentes formas
de
aprendizagem
de
cada
criança
justicam
a
necessidade
de
os
currícu
-
los
considerarem
e
abrangerem
as
diferenças.
Gabriela
diz
que
“[...]
cada
criança tem um
jeito de aprender
. T
em criança que, cantando
uma música,
aprende; tem criança que você
[tem que] sentar e fazer uma atividade com
ela,
[daí]
ela
aprende.
Então,
eu
acho
que
no
currículo
deveria
ter
essas
várias
experiências
[...]”.
V
alentina
arma
que
“[...]
existem
crianças
que
aprendem com muito mais facilidade, existem crianças que vão saber as
letras
e
já
tem
outras
que
vão
demorar
muito
mais.
T
em
criança
que
demora
mais para aprender e tem criança que só de olhar já sabe”.
Curiosamente,
Gabriela enfatiza
o acolhimento
da
diferença no
cur
-
rículo escolar
, mas acredita que o currículo deveria apresentar exemplos
para
os
professores
seguirem
em
determinados
contextos,
o
que,
em
si,
não
deixa de
constituir uma
forma de roteirização
da prática
e uma padroniza
-
ção.
Eu
acho
que
deveria
colocar
no
currículo,
especicar
que
cada
criança
é
diferente
e
fazer
determinadas
atividades,
dar alguns
exemplos para os
professores seguirem, dar
um
exemplo:
“Ah!
V
ocês
podem
fazer
isso,
tal
criança
age
de
uma maneira,
vamos
tentar trabalhar
desse
jeito”. Eu
acho
que dando alguns exemplos de forma formal (Gabriela).
Sua fala evidencia um aspecto
contraditório. Essa contradição pode
estar relacionada
à
própria trajetória
desta estudante
e suas
múltiplas rela
-
ções com a
escola, seja quando se constituía
como aluna nos diferentes ní
-
veis
de ensino,
seja
quando se
torna uma
estudante
que reete
criticamente
sobre
o
próprio
processo. A
estudante
Gabriela
demonstra
certa
transição
de um currículo tecnocrático, que pode e deve apresentar um roteiro para o
currículo
escolar;
ao mesmo
tempo, percebe
que
o currículo
é algo
dinâmi
-
co
e plural,
quando
diz
que
“cada criança
tem
um
jeito
de aprender”.
Não
é
possível
a
criação
de
“roteiros”
para
dar
aula.
Somente
uma
abordagem
inter/multicultural
possibilita
ao
professor
atender
às
inúmeras
diferenças
presentes no currículo escolar
. Conforme armam
Akkari e Santiago,
186
Corpo, políticas e territorialidades
Uma proposta de educação que considere a pluralidade de
valores,
de
tempos
e
ritmos
não
se
limita
em
introduzir
,
na prática educativa, novos conteúdos e novos materiais
didáticos.
Mas
compreende
que
tratamento
igual
não
signica
tratamento
homogeneizante,
que
apaga
as
diferenças.
A
promoção
da
igualdade
signica
dialogar
com
a diferença. Enquanto a diferença for um obstáculo para
o
êxito
escolar
,
não
haverá
reconhecimento
às
diferenças,
mas
produção
e
reprodução
das
desigualdades
(AKKARI;
SANTIAGO, 2015, p. 35)
Para
a estudante
Maitê, “então,
no currículo
poderia se
colocar isso,
trabalhar as diferenças, principalmente dentro de sala de aula, para que as
crianças
aprendam
a se
respeitar
,
entender
que
em
algum
momento o
cur
-
rículo
vai
atender
à
especicidade
dela”.
Na
fala
de
Maitê,
é
interessante
observar como o reconhecimento da diferença passa pela compreensão e
respeito de um com o outro, o que se aproxima de uma perspectiva de um
currículo
inter/multicultural,
ou
seja,
a
preocupação
de
que
toda
criança
será atendida, de que todas as crianças devem ser respeitadas nas suas di-
ferenças.
Fabiana
diz
que
“[...]
a
escola,
a
comunidade,
tem
que
levar
em
consideração [as]
etapas
do desenvolvimento
e
[o] tempo
que
as crianças,
que
cada
criança
tem
para
se
desenvolver”,
isto
é,
a
escola
deve
conside
-
rar a
singularidade de cada um.
Fátima, por sua
vez, dirige o
olhar para as
diferenças daqueles que têm necessidades especiais e suas inclusões no
contexto educacional,
fazendo, inclusive, um
relato de
sua própria
experi
-
ência.
[...]
o currículo,
ele tem
que se
adaptar à
escola, o
currículo
também se adaptar ao aluno. Por exemplo, tem um menino
com
Síndrome
de
Down,
quer
dizer
que
no
currículo
não
vai ter
nada sobre
inclusão? Pode ser
que haja!
Então, tem
que
fazer
o
currículo
de
acordo
com
o
que
está
acontecendo
na escola,
então, há exibilidade.
Na sala de
aula, tem que
haver essa troca. Essa experiência que eu tive na sala, era
bonito,
pois
as
outras
crianças
ajudavam.
Por
exemplo,
quando
eu
entrei,
as
crianças
vieram
e
falaram:
“Professora,
ele
é
assim,
assim,
assim.
Com
ele,
não
pode
fazer
isso”.
Se
as próprias
crianças
têm esse
amor
,
é
a mesma
coisa
as
professoras da escola e o currículo da escola (Fátima).
187
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
A
fala
de
Fátima
leva-nos
a
pensar
um
currículo
em
que
“[...]
a
in
-
clusão daqueles que por muito tempo eram considerados com ‘comprome-
timentos’
pode caracterizar um processo de escolarização mais democráti
-
co
e de
reconhecimento
da diferença
[...]”
(UHMANN; SCHWENGBER,
2020, p. 798).
As falas das estudantes, portanto, demonstram preocupação com as
diferenças e com o acolhimento destas pelo currículo escolar
, principal-
mente em relação às
minorias e suas realidades. Embora as estudantes
não
citem de forma explícita em sua fala, elas nos lembram de que uma
educação intercultural, pautada nas culturas e em currículos
como
um
espaço/tempo
de
diálogo,
requer
a
ruptura
com
as diferentes concepções curriculares construídas desde o
início das
teorias curriculares. Isso
porque elas não
trazem
no
seu
bojo
a
preocupação
com
as
diferenças,
e
a
maioria
delas (com exceção da teoria crítica, que reconhece que o
currículo veicula o saber da classe dominante) nem sequer
questiona os processos seletivos que marcam os currículos,
inclusive em relação aos conhecimentos considerados
válidos, porque os vê como universais (NASCIMENTO;
BACKES; P
A
V
AN, 2012, p. 98-99).
As
estudantes
demonstram,
ainda
que
não
utilizem
os
termos
mais
especícos,
iniciativas
de
rompimento
com
um
currículo
engessado,
pa
-
dronizado
e
imposto.
De
alguma
forma,
coloca
em
xeque
a
perspectiva
monocultural
de currículo
e parecem
estar atentas
ao grande
desao
que as
escolas e
os professores encontram
para “[...] abrir
espaços para a
diversi
-
dade,
a
diferença
e
o
cruzamento
de
culturas
[...]”
(MOREIRA;
CANDAU,
2003, p. 161).
Outro foco da pesquisa foi compreender se a presença de diferentes
culturas
no
currículo
escolar
contribui
no
processo
pedagógico.
Candau
(201
1, p.
253), com
base em Emília
Ferreiro, entende
que a diferença
cul
-
tural
presente
no
currículo
escolar
pode
ser
transformada
em
“vantagem
pedagógica”.
Assim
como
em relação
à
presença das
diferenças nos
currículos,
as
contribuições
que
ela
traz
para o
processo
educativo
também
geraram
um
consenso, isto é, todas as entrevistadas entendem que ela contribui, sim,
para
o
processo
pedagógico,
principalmente
pela
interação
de
um
com
o
outro e pelas aprendizagens que esta proporciona.
A
estudante Fabiana diz
188
Corpo, políticas e territorialidades
que
acredita
em
tal
contribuição
“[...]
porque
a
criança,
ela
aprende
pela
interação, então, ter
várias culturas a ajuda
expandir o conhecimento
dela,
a
abrir
um
leque
maior
para
o
desenvolvimento”.
Nesse
mesmo
sentido,
Maitê
diz
acreditar
que
as
multiplicidades
culturais
auxiliam
o
processo
educativo
“[...]
porque
a
criança
aprende
a
conviver
com
o
outro,
uma
outra realidade
que não
é dela.
Ela sai
daquele mundinho ali
[...] conviver
com uma
cultura
diferente da
sua
faz com
que você
cresça
enquanto estu
-
dante, enquanto ser humano, em todos os seus aspectos”.
Em um cenário em que eventualmente a multiplicidade cultural ain-
da é ignorada como elemento presente no currículo escolar
, não é possível
deixar
de
perceber
que
o
reconhecimento
dessa
importância
por
todas
as
estudantes
é
um
avanço.
Em
suas
falas,
observamos,
como
já
apontava
Candau
(201
1,
p.
245),
que,
apesar
de
inúmeros
entraves,
“nos
últimos
anos,
a
discussão
sobre
as
diferenças
culturais
nas
práticas
pedagógicas
vem se armando”.
As entrevistas efetuadas levaram-nos a entender que, embora o
currículo
tradicional/tecnocrático
tenha
“predominado
na
história
da
edu
-
cação,
sempre
houve
processos
de
resistência
fazendo
com
que
outros
currículos
(interculturais)
fossem
forjados”
(NASCIMENT
O;
BACKES;
P
A
V
AN, 2012, p. 101). Nesse sentido, nas falas das estudantes, há indícios
de uma educação preocupada com a diferença, o que é fundamental para a
construção de um currículo inter/multicultural. Por outro lado, desconside-
rar a diversidade presente no currículo escolar é distanciar
-se dos coletivos
de
crianças, adolescentes
e
jovens
que
frequentam a
escola.
Não
os
ouvir
,
certamente,
é
uma
forma de
expulsá-los
do ambiente
escolar
. “T
er
presente
a dimensão cultural é imprescindível para potenciar processos de apren-
dizagem
mais
signicativos
e
produtivos
para
todos
os
alunos
e
alunas”
(CANDAU, 201
1, p. 242).
Não
é
demais
retomar
a
fala
da
estudante
Fabiana,
quando
arma
que
“a
criança
aprende
pela
interação,
então,
ter
várias
culturas
a
ajuda
a
expandir
o
conhecimento
dela”,
e
também
a
da
estudante
Maitê,
ao
dizer
que
“a
criança
aprende
a
conviver
com
o
outro,
uma
outra
realidade
que
não
é
dela”.
As
estudantes
corroboram
o
que
abordamos
anteriormente,
com
base
em
Candau
e
Emilia
Ferreiro:
que
a
diferença
pode
ser
uma
“van
-
tagem pedagógica”.
T
ambém
podemos
dizer
com
Freire
e
Shor
(1986,
p.
64-65)
que
o
diálogo
com
diferentes
grupos
signica
“[...]
o
momento
em
que
os
seres
189
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
humanos
se
encontram
para
reetir
sobre
sua
realidade
tal
como
a
fazem
e
refazem
[...] Através
do
diálogo,
reetindo
juntos
sobre
o
que
sabemos
e
não
sabemos,
podemos,
a
seguir
,
atuar
criticamente
para
transformar
a
realidade”.
Juliana destaca a relevância do professor para o processo
educativo
e
para
que
as
multiplicidades
culturais
existentes
possam
trazer
sua
con
-
tribuição.
Para
ela,
depende
“[...]
da
linguagem
do
professor
,
que
ele
vai
falar com
a sua turma
[...] porque ele,
ali dentro da
sala de aula,
ele vai dar
exemplo”.
V
alentina,
indiretamente,
também
relaciona
a
contribuição
das
multiplicidades culturais ao professor
, mas apontando-as como facilitado-
ras
do
processo
educativo,
“[...]
porque
você
consegue
guiar
melhor
os
estudantes
de
um
determinado
assunto”.
As
estudantes
aproximam-se
da
armação
de
Cortesão
(2012)
quando
a
autora
se
refere
aos
professores,
defendendo que eles
[...]
não
sejam
daltónicos
culturais:
os
daltónicos culturais
são
os
professores
que
adotam
como
hipótese
de
partida
para o desenvolvimento do seu trabalho que o arco-íris de
culturas presente na sala de aula é, para eles, uma massa
homogénea
de
alunos,
homogénea
quanto
a
saberes,
valores, problemas, interesses (COR
TESÃO, 2012, p. 726-
727).
Assim como ocorre entre muitos estudiosos do tema, apesar de ha-
ver consenso
entre as
estudantes entrevistadas
quanto às contribuições
que
a multiplicidade cultural
traz ao processo educativo,
a relação dessa plura
-
lidade com o currículo escolar pode ainda ser considerada como um desa-
o.
Conforme
menciona Candau
(2016,
p. 30),
“[...] o
diálogo
intercultural
se faz
cada
vez mais
desaante
nos diversos
âmbitos em
que
se desenvol
-
ve.
Na
escola
representa
um
desao
chamado
a
ressignicar
currículos,
práticas [...] orientado a reinventar as culturas escolares”.
O diálogo intercultural é, portanto,
um convite à ressignicação em
determinados contextos, mas, em muitos pontos, ainda incipiente. Como
os
próprios
autores
destacam,
o
currículo
multi/intercultural
que
lida
com
a
diferença
na
perspectiva
decolonial
é
um
projeto
em
construção
–
ele
nunca está dado, é uma conquista cotidiana.
190
Corpo, políticas e territorialidades
Considerações nais
Como vimos, nas últimas décadas no Brasil, movimentos sociais,
teóricos
do currículo
e
professores têm
problematizado
o
currículo mono
-
cultural/colonial
e
mostrado
as
suas
vantagens,
seja
para
a
construção
de
um
processo
pedagógico
mais
signicativo,
seja
para
relações
humanas
sem processos
de
discriminação e
inferiorização,
seja para
uma sociedade
que
saiba
conviver
com
as
diferenças
sem
pretender
eliminá-las
ou
estig
-
matizá-las.
Enm,
percebe-se
que
outros
mundos,
outros
currículos
e
ou
-
tras formas de ser
, saber
, viver e conviver são possíveis, indo além do que
a lógica ocidental impõe.
Nossa pesquisa mostra que, apesar de tênues, as mudanças estão
presentes
no
curso
de
Pedagogia
investigado.
T
odas
as
estudantes
entre
-
vistadas
mostraram-se
favoráveis
à
presença
das
diferenças
no
currículo
e veem-na como uma possibilidade de os alunos aprenderem uns com os
outros, se a professora souber lidar com a diferença cultural dos alunos.
Ainda que
essa
percepção, por
si só,
não signique
que
a diferença
está ou será efetivamente trabalhada nos currículos, dada as condições e as
sobredeterminações que afetam
a prática pedagógica, com destaque para
a
colonialidade do currículo (P
A
V
AN; TEDESCHI, 2021), ela não deixa de
ser um sopro de esperanças nestes tempos sombrios que vivemos.
T
empos
em
que o
ódio
ao diferente
tem se
intensicado,
não raras
vezes
propagado
pelos próprios agentes públicos responsáveis pelas políticas de educação.
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Q
Quem precisa da identidade...
para “tornar-se” professor de
educação física escolar?
197
Quem pr
ecisa da identidade... para
“tornar
-se” professor
de educação física escolar?
Este capítulo compõe a nossa dissertação de mestrado denomina-
da “
Identidade docente na Educação Física Escolar: análises e diálogos
com o conceito de subjetividade de Félix Guattari
” (CRISTE, 2021).
A
pesquisa analisou como a identidade docente é formulada e estudada por
autores que discutem a Educação Física Escolar (EFE) nas principais Re-
vistas acadêmicas Área. O interesse no estudo sobre a identidade docente
surge, inicialmente,
por notarmos a circulação, no campo acadêmico da
Educação Física (EF), de pesquisas que buscam entender e/ou encontrar
o “elo perdido” de uma identidade docente para a EFE. Esse interesse por
“encontrar” uma nova/outra identidade docente para a EFE sur
ge de forma
mais intensa a partir da crítica de caráter epistemológico produzida pelo
Movimento
Renovador
da
Educação
Física
(MREF),
entre
os
nais
das
décadas de 1970 e 1980.
O MREF inaugurou na década de 1980 um debate que solicitava
uma ruptura com a identidade epistemológica baseada nas ciências biomé-
dicas de cunho positivista. Emblema desse movimento, em 1990, o pro-
fessor João Paulo Medina, em seu icônico livro “Educação Física cuida do
corpo e... ‘mente’”, declarou que a Educação Física deveria “se pensar”,
ou
seja,
“entrar
em
crise”.
Para
o
autor
,
a
“crise”
signicava
o
necessário
exercício reexivo
sobre a
identidade epistemológica
que a
EF deveria
en
-
frentar diante do processo de redemocratização do país e da educação.
Nas décadas de 80 e 90 o campo da EF foi o palco de intensos
debates de caráter epistemológicos alicerçados, sobretudo, nas Ciências
Sociais e Humanidades. De acordo com Pich e
Albano (2010), a produ-
ção de diversas abordagens pedagógicas passou a fazer parte do cenário
acadêmico da Educação Física, bem como foi possível observar o sur
gi-
mento de entidades acadêmicas que buscaram aglutinar a massa crítica da
área.
As diversas propostas de constituição de uma nova ciência, área de
conhecimento ou campo pedagógico, geraram ao mesmo tempo um reno-
vado
impulso
que
permitiu
qualicar
a
área,
bem
como
uma
vertiginosa
profusão de propostas
que apresentaram, em
alguns casos, diculdades
de
comunicação sobre um objeto comum “Sendo limitada ou nula a tendência
58 - Título inspirado pelo famoso texto de Stuart Hall intitulado ‘Quem precisa da identidade?’.
58
198
Corpo, políticas e territorialidades
a compartilhar de uma compreensão mais ou menos consensuada em torno
da identidade acadêmica da Educação Física” (PICH;
ALBANO, 2010, p.
1).
A
crítica de cunho mais epistemológico produziu, com efeito, um
amplo e intenso debate em âmbito pedagógico sobre a exigência de ques-
tionar os processos de formação dos professores de EF e das identidades
docentes. Nesse sentido, O MREF – ao imprimir o que se convencionou
denominar de “virada culturalista”
na Educação Física – guardadas suas
nuances e diferenças internas, fez/faz forte crítica à identidade docente
tecnicista, biologicista, esportivista e, principalmente, a todas aquelas que
não levavam em consideração a dimensão cultural e histórica das práticas
corporais e da EF como componente curricular
, engajada com o projeto
emancipatório educacional da escola na sociedade democrática.
Passados mais de cinco décadas do início da “crise de identidade”
(MEDINA, 1990) da EF e da “virada culturalista”, nos interessou investi-
gar: como a identidade docente na EF é pensada pelos autores que discu-
tem a EFE? Quais problemas e desdobramentos políticos-pedagógicos se
engendram ao conjecturarmos o sujeito da EFE a partir da “reivindicação
identitária” (ROLNIK, 1997)?
De modo bastante sucinto, na obra “Identidade e Diferença” (2014),
os autores T
omaz T
adeu da Silva, Stuart Hall e Katrhryn W
oodward nos
localizam no debate e compartilham do ar
gumento de que o conceito de
identidade pode ser compreendido por duas formas distintas, uma que par
-
te de uma ideia essencialista, principalmente da retomada de um passado
histórico heroico fundado na dimensão biológica naturalizada e imutável.
E outra, inclinada sobre a compreensão identitária como produção de mu-
danças a partir de movimentos sociais que emergem em momentos históri
-
cos
singulares
e
por
lutas
políticas
para
armar
modelos
identitários
dife
-
rentes dos vigentes e hegemônicos. No sentido que os autores atribuem ao
debate, identidade e diferença foram, historicamente, concebidas como fa-
ces distintas de uma mesma moeda, portanto, dimensões interdependentes.
Similar à proposta acima colocada pelos supracitados autores, na
qual a identidade pode ser compreendida por um viés essencialista/univer
-
59 - Lopes e Lara (2018), apresentam que o conceito de cultura torna-se central na área, principalmente, relacionado à
Educação escolar a partir de uma entrevista com V
alter Bracht, onde este autor postula que conceito de ‘cultura corporal’
e, mais tarde, o de ‘cultura corporal de movimento’
promovem uma ‘virada culturalista’
na educação física no momento
em que o debate na área entendeu que o objeto da Educação Física faz parte do mundo da cultura.
59
199
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
sal, bem como por um entendimento de sua provisoriedade e dinamicidade,
Bauman (2005) corrobora dessa ambiguidade conceitual na problematiza-
ção da identidade na Modernidade Líquida. O autor mostra que a noção de
uma “crise” da identidade está relacionada à concepção de uma identidade
essencialista e primordial, e a crise está vinculada a essa sua fragilidade
de ser “eterno” e natural, todavia “A
fragilidade e a condição eternamen-
te provisória da identidade não podem mais ser ocultadas” (BAUMAN,
2005, p. 22).
Como aponta Bauman (2005) a ideia de identidade e sua produção
foram ancoradas em uma falsa noção de estabilidade, produção de iden-
tidade que esteve vinculada à formação dos Estados-nações, na qual es-
tes ofereciam por meio de uma pluralidade simbólica, insumos para essa
formação identitária. Bauman (2005, p. 26) mostra que “Nascida como
cção,
a
identidade
precisava
de
muita
coerção
e
convencimento
para
se
consolidar e se concretizar numa realidade [...], e a história do nascimento
e da maturação do Estado moderno foi permeada por ambos.” Identidade
essa, portanto, fortemente ancorada em processos de sentimento de perten-
cimento nacionalista. Similar às concepções de Silva, Hall e
W
oodward
(2014), a identidade nacionalista necessita da diferença, do outro para se
fazer existir
, já que [...] a identidade nacional objetivava o direito mono-
polista de traçar a fronteira entre “nós” e “eles” (BAUMAN, 2005, p. 28).
O
supracitado
autor
mostra
que
essa ideia
de
uma
identidade
calci
-
cada e estática, fortemente vinculada a um Estado-nação foi
se modican
-
do e ruindo com as mudanças da contemporaneidade e das novas formas
de interações socioeconômicas mundiais. Para Bauman (2005, p. 35), “Em
nossa
época
líquido-moderna,
em
que
o
indivíduo
livremente
utuante,
desimpedido,
é
o
herói
popular
,
‘estar
xo’
–
ser
‘identicado’
de
modo
inexível e sem alternativa – é algo cada vez mais malvisto”.
Na esteira desta problematização, nos interessou analisar como a
produção das identidades docentes é concebida no âmbito dos estudos so-
bre a EFE. Estabelecemos o diálogo com o conceito de subjetividade e do
paradigma ético-estético-político proposto por Félix Guattari no sentido
de
pensar
o
sujeito
docente
da
EF
e
sua
formação
como
armação
da
di
-
ferença, para além das compreensões clássicas da identidade como lugar
xo,
estável
e
seguro.
Para
Guattari
e
Rolnik
(1996),
a
noção
clássica
e
essencialista
de
identidade
acaba
por dicultar
os
processos
de
criação
de
constelações referenciais e despotencializa a luta pelo deslocamento das
relações de poder na sociedade.
200
Corpo, políticas e territorialidades
Metodologia
O método escolhido para obter os dados de análise foi o de revisão
bibliográca,
dispositivo
de
pesquisa
que
“[...]
recupera
o
conhecimen
-
to
cientíco
acumulado
sobre
um
problema”
(RODRIGUES,
2007,
p.
4).
Dessa
maneira,
na
revisão
bibliográca
realizamos
um
levantamento
de
artigos acadêmicos em periódicos no campo da Educação Física Escolar
,
com o objetivo de compreender como o conceito de identidade vem sendo
abordado pela área.
Foram escolhidas nove revistas eletrônicas da área da Educação Fí-
sica, sendo elas: Revista Movimento; Revista Brasileira de Ciências do
Esporte (RBCE); Revista Brasileira de Educação Física e Esporte (RBE-
FE); Revista Motriz; Revista Brasileira de Ciência e Movimento (RBCM);
Revista da Educação Física UEM; Revista Pensar a Prática; Revista Motri-
vivência; e
Arquivos em Movimento (revista eletrônica da Escola de EF e
Desportos da UFRJ). O descritor utilizado foi “identidade docente”.
Após essa seleção, realizamos a busca diretamente na base de dados
de cada periódico. Posteriormente produzimos etapas de triagens para que
chegássemos de forma mais assertiva nos artigos que discutissem o cerne
da
temática
da
pesquisa,
com
isso,
alcançamos
o
montante
nal
de
26
ar
-
tigos, os quais apresentavam a questão da identidade docente como ponto
central de pesquisa.
As buscas nas plataformas dos periódicos foram feitas
no
primeiro
semestre
de
2020.
Inicialmente,
zemos
buscas
apenas
por
meio dos descritores, sem estabelecer recorte temporal. Percebemos, no
entanto, que todos os artigos encontrados e, posteriormente selecionados,
são datados do período entre 2008 a 2020.
A
partir das leituras feitas de forma integral desses artigos, produ-
zimos nossas categorias de análises. Na categoria “
Experiências do su-
jeito e pr
odução de identidades docentes na Educação Física Escolar
”,
percebemos que a identidade é compreendida pelos autores a partir da
dimensão
cronológica
das
experiências
socioculturais.
Identicamos
que
para produzirem e formularem como se desenvolve a formação da iden-
tidade docente na EFE, os autores trabalham por vias de três passagens
temporais progressivas, estabelecidas como: “
Identidade anterior à forma-
ção inicial em EF
”, “
Identidade durante a formação inicial em EF
” e, por
m,
“
Identidade após a formação inicial em EF
”. T
odavia, para o espaço
deste
capítulo,
especicamente,
analisaremos
a
subcategoria
“Identidade
201
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
durante a formação
inicial em EF”, pois vericamos
que é nessa etapa que
os autores dos artigos se comprometem, de forma mais intensa, em suas
análises, relacionando a questão da aprendizagem/formação docente com a
construção da identidade
prossional para atuação na
EFE. Para mais bem
apresentar os artigos e seus respectivos autores que se constituíram como
fonte de análise nessa categoria, elaboramos o Quadro abaixo:
Quadro 1 -
Artigos selecionados para subcategoria
“Identidade Docente docente durante a Formação Inicial em Educação Física”.
Título do ar
tigo
Autor(s)
Importância do PIBID para a formação da
identidade do professor de educação física
Fonte -
Elaborado pelos autores, 2021.
Ano
O processo de construção da identidade
prossional docente antes e durante um
curso de licenciatura em educação física
O PIBID e o percurso formativo de
professores de educação física
Entre o ofício de aluno e o habitus de
professor: Os Desaos do Estágio
Supervisionado no processo de
iniciação à docência
Identidade docente no ensino superior de
educação física: aspectos epistemológicos
e substantivos da mercantilização
educacional
Fonseca e T
orres
Identidade docente e educação física:
Um estudo de revisão sistemática
T
rajetória de estudantes na formação inicial
em educação física: o estágio curricular
supervisionado em foco
PIBID educação física: experiências
na formação de professores
Kronbauer e Krug
Glates e Gunther
Souza Neto
et al.
Neira e Vieira
Pires
et al.
Pereira
et al.
Matter
et al.
2013
2014
2015
2016
2016
2017
2018
2019
Dentre os temas e assuntos que compõem a subcategoria, elegemos
os três pontos principais para a or
ganização deste capítulo, a saber: “O
PIBID e a produção da identidade docente”; O estágio curricular supervi-
sionado: entre o discurso identitário e a aprendizagem inventiva; “O currí-
culo: produção de subjetividade e a identidade.
202
Corpo, políticas e territorialidades
O Pibid e a pr
odução da identidade docente
Neste subtópico, “O PIBID e a produção da identidade docente”,
mostraremos e analisaremos como o PIBID é utilizado para pensar e en-
tender a construção da identidade docente na EF
. O Programa permite um
momento no qual o discente terá a oportunidade de entrar em contato, de
forma supervisionada, com o cotidiano escolar e experimentar de maneira
inicial as práticas do ser/fazer docente.
Os autores e os seus respectivos artigos que utilizaremos neste sub-
tópico são: Fonseca e
T
orres (2013) “I
mportância do PIBID para a for-
mação da identidade do pr
ofessor de educação física”, Glates e Gunther
(2015) “O PIBID e o per
curso formativo de pr
ofessor
es de educação físi-
ca” e Matter et al. (2019) “PIBID educação física: experiências na for
-
mação de pr
ofessor
es
”. Fonseca e T
orres (2013), Glates e Gunther (2015)
e Matter et al. (2019) utilizam das experiências dos discentes por meio do
PIBID como elemento na construção da identidade docente da EFE. Os
autores mostram como as vivências em espaços escolares são relevantes
para fornecer
subsídios e
nutrir a identidade
docente. Isso signica
armar
que com a experiência no PIBID “[...] os egressos conseguem se ‘encontrar
enquanto professor
’, diferente das condições previstas no currículo da gra-
duação que não oportunizam uma imersão no universo da escola de forma
a captar toda a sua complexidade” (GLA
TES; GUNTHER, 2015, p. 63).
Apesar de entendermos a importância política para a educação e
os benefícios obtidos quando o discente entra em contato com o espaço
escolar e experimenta o exercício da docência, percebemos que a leitura e
a proposta que os autores Glates e Gunther (2015) formulam para analisar
como se desenvolve a dinâmica entre o sujeito discente, o espaço escolar e
o seu fazer
, estão estruturados por uma proposta pautada na “recognição”
(KASTRUP
, 2005), em que os fenômenos externos expressam-se em re-
presentações e formas universalizadas a serem reproduzidos.
Na passagem acima os autores estruturam essa relação por meio de
uma leitura dicotômica, dentro/fora, sujeito/ambiente, discente/escola, na
direção da maturação de uma determinada identidade docente via obten-
60 - O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) é um programa da Coordenação de
Aperfeiçoa-
mento
de
Pessoal de
Nível Superior
(CAPES) e
tem por
objetivo
fomentar
a formação
inicial e
continuada de
prossionais
do magistério básico, numa ação que articula a participação de estudantes dos Cursos de Licenciatura das Universidades
Públicas nas escolas da Educação Básica sob a supervisão de professores da Universidade.
60
203
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
ção/captação da complexidade simbólica que sustenta o fazer/ser docente
e a escola. Podemos perceber o modelo de recognição na passagem “
uma
imersão no universo da escola de forma a captar toda a sua complexi-
dade
”. Ou seja, aqui os autores trabalham com a ideia de que o sujeito
irá obter
, tomar para si em uma compreensão dicotômica do “dentro/fora”
todo
os
modos
já
denidos
do
que
é
o
fazer
docente,
a
escola
e
sua
com
-
plexidade.
Com o intuito de pensarmos o sujeito docente para além de um exer
-
cício de
captações/absorções dos
conjuntos de
códigos e
símbolos xados
na escola e, de modo a fazer uma análise a partir da subjetividade pensada
por
Guattari
sobre
os
uxos
dinâmicos
dos
contextos,
convidamos
um
de
seus importantes conceitos para o diálogo com os autores da Educação
Física sobre o tema da constituição do sujeito docente: o de agenciamento
coletivo de enunciação (DELEUZE; GUA
TT
ARI, 201
1).
Guattari
e
Rolnik
(1996,
p.
381)
citam
que
o
conceito
de
agencia
-
mento coletivo de enunciação é “[...] uma noção mais ampla do que as de
estrutura, sistema, forma etc. Um agenciamento comporta componentes
heterogêneos, tanto de ordem biológica, quanto social, maquínica, gnosio-
lógica, imaginária”. Os agenciamentos, em contexto geral, se dão na jun-
ção dos conjuntos materiais com os signos, que tencionam e unem diferen-
tes grupos materiais e simbólicos que emer
gem em um plano de imanência.
O conceito de agenciamento coletivo nos ajuda a pensar a relação
sujeito/escola e o fazer docente para além uma leitura verticalizada, por
meio da simples captação das representações universalizadas sobre o que
é o ser docente. Como revela Zourabichvili (2004, p. 9), a ideia de agen-
ciamentos “Mais do que a um uso equívoco, ela remete então a polos do
próprio conceito, o que interdita, sobretudo, qualquer dualismo do desejo e
da instituição, do instável e do estável”.
Portanto, o mencionado autor nos indica uma custosa indissociação
entre o que se coloca na esfera do sujeito docente e da escola, que acaba
por contrapor a ideia da recognição, no qual o sujeito irá somente interna-
lizar os modelos, representações e “verdades” encontradas na escola, para
assim ser tornar professor
. Desta maneira, nossa proposta é pensar o sujeito
docente e os ambientes escolares formulados e produzidos de formas indis-
sociáveis, em processos de transversalização.
A
ideia da política de recognição é observada novamente quando
Fonseca e T
orres (2013, p. 2) citam que “Esta inserção no cotidiano das
204
Corpo, políticas e territorialidades
escolas, [...], propicia conhecer a rotina diária da escola, observar como são
estabelecidas as relações entre os diferentes protagonistas deste contexto”.
Na passagem supracitada os autores trabalham com a compreensão de que
preexiste
de
maneira
“natural” e
xa
certa
rotina
escolar
,
uma
concepção,
ideia pré-concebida do que é a escola, o fazer docente e suas dinâmicas,
restando assim ao sujeito discente conhecer/capturar esses modos já exis-
tentes. Corroborando com esse modo de formar professores de EF
, Glates
e
Gunther (2015,
p. 61-62),
armam que
o contato
com
a docência
durante
a formação inicial serve para “[...] introduzir o acadêmico na escola e lhe
oportunizar o conhecimento sobre as rotinas escolares”.
Para pontuarmos de forma mais precisa a manutenção do modelo
da recognição, notamos tanto na passagem dos autores Fonseca e
T
orres
(2013), quanto dos autores Glates e Gunther (2015), a utilização da palavra
“rotina”. Destacamos essa palavra, pois ela remete a algo que se repete,
aludindo
a algo
xo.
Quando os
autores trabalham
com
a ideia
de
aprender
uma “rotina escolar” podemos inferir que estão pontuando que há certo
modo
que
não
se
altera
muito
do
que
é
a
escola,
xados
por
parâmetros
que
sustentam
e
denem
o
ser/fazer
docente.
E
aqui,
quando
trabalhamos
a relação sujeito docente/espaço escolar via os agenciamentos coletivos
de enunciação partimos da ideia de certa precariedade das
coisas xadas e
armamos
os
acontecimentos
na
sua
provisoriedade.
Como
assinala
Kas
-
trup (2005, p. 1276), “Os processos de subjetivação e de objetivação fa-
zem-se num plano aquém das formas, plano de forças moventes que, por
seu
agenciamento,
vêm
a
congurar
formas
sempre
precárias
e
passíveis
de transformação”.
Portanto, quando buscamos trazer a noção dos agenciamentos co-
letivos de enunciação para pensarmos a dinâmica entre o sujeito/escola, a
intenção se direciona a analisarmos o processo que se estabelece entre o
sujeito e os conjuntos de multiplicidades semióticas que o atravessa. Como
mostra Zourabichvili (2004, p. 9)
Na realidade, a disparidade dos casos de agenciamento
precisa ser ordenada do ponto de vista da imanência,
a partir do qual a existência se mostra indissociável de
agenciamentos variáveis e remanejáveis que não cessam
de produzi-la.
Buscamos, desse modo, se afastar de esquemas do funcionamento
da aprendizagem pautados por processos verticalizados, nos quais o sujeito
205
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
é compreendido como captador de informações disponíveis no território
escolar
, o qual guardaria os segredos e verdades do que é ser/fazer docente.
Partilhamos da ideia de que o sujeito está posto em uma multiplicidade he-
terogênea de
vetores que
o atravessa,
que não
se xam
em ordens
de causa
e efeito em um desenvolvimento ordenado. E que, portanto, a aprendiza-
gem
do
sujeito
é
conduzida pelos
agenciamentos
e
seus
códigos
diversi
-
cados, indissociando a instituição dos processos de produção de desejo do
sujeito (ZOURABICHVILI, 2004).
Notamos, assim, que para os autores Glates e Gunther (2015) e Mat-
ter et al. (2019), quando o sujeito discente (futuro professor) está em conta-
to com o conjunto de códigos e condutas que sustentam o “mundo” do ser/
fazer docente, ele aprenderá por meio da captura de representações sobre
a docência e acabará por constituir e nutrir uma identidade docente. Perce-
bemos que essa ideia ganha coro quando os autores Matter et al. (2019, p.
15) dizem que o PIBID é “[...] um programa onde a escola é protagonista
do processo formativo, se transformou em conhecimentos que possibilitam
a formação inicial de professores contextualizados com campo de atuação
futura,
favorece
a
construção
da
identidade
docente”.
Essa
armativa
se
consolida também na passagem dos autores Glates e Gunther (2015, p. 53)
no qual “o PIBID representa um importante espaço formativo e que pro-
picia a antecipação da experiência docente, incidindo sobre a socialização
prossional e construção da identidade docente desses acadêmicos”.
Para trabalharmos outra forma de aprendizagem do sujeito e forma-
ção docente, trazemos ao debate o conceito de “aprendizagem inventiva”
(KASTRUP
, 2005). Esse conceito critica os modelos representacionais de
cunho cognitivista, o qual se limita a resolução de problemas. Em conjunto
com a ideia de agenciamento coletivo de enunciação, propomos pensar o
processo de formação docente por outra dinâmica, a da criação, de uma
aprendizagem na qual “[...] a invenção é sempre invenção do novo, sendo
dotada de uma imprevisibilidade que impede sua investigação e o trata-
mento no interior de um quadro de leis e princípios invariantes da cogni-
ção” (KASTRUP
, 2005, p. 1274).
Portanto, apoiados pela premissa de uma “aprendizagem inventiva”,
apostamos na potência da cognição produtora, de produzir diferenciação,
da sua capacidade geradora de se diferenciar de si mesma, uma inven-
ção de problemas. Como assinala Kastrup (2005, p. 1276) “[...] este modo
de entender a cognição encontra ressonância nos estudos da produção da
206
Corpo, políticas e territorialidades
subjetividade de Deleuze e Guattari. Neste contexto, subjetividade e ob-
jetividade não são entidades preexistentes, mas efeitos de agenciamentos
coletivos.” Isso signica que
[...] a invenção não é um processo que possa ser atribuído
a um sujeito.
A
invenção não deve ser entendida a partir
do inventor
. O sujeito, bem como o objeto, são efeitos,
resultados do processo de invenção (KASTRUP
, 2005, p.
1275).
Com base no conceito de aprendizagem inventiva, apostamos pen-
sá-la via arranjos de criação, invenção, que o sujeito situado em um terri-
tório inundado por um conjunto heterogêneo de símbolos, códigos e con-
dutas possa criar alianças e negociações para produzir diferenciação, outro
modo de ser/fazer docente, em que o sujeito (docente) e o mundo (escola)
são coengendrados pela prática, imbricados em uma dinâmica de constan-
te mudança, em que não há uma escola anterior
, tampouco uma forma de
ser docente preexistente e totalizada a ser copiada. Pensamos a formação
docente e a escola por processos inventivos, no qual o aprender está agen-
ciado ao processo de criação e de mudanças nas práticas, nos discursos, nas
instituições, nos sujeitos.
O estágio curricular
supervisionado:
Entr
e o discurso identitário e a aprendizagem inventiva
Outro ponto que circula sobre a questão do contato com a docên-
cia e que ganha importância para a formação da identidade docente são
as disciplinas de Estágio Curricular Supervisionado (ECS), vivenciadas
pelos estudantes de Licenciatura em EF durante sua formação inicial. Para
discutir essa problemática, selecionamos os seguintes artigos: “O processo
de construção da identidade
prossional docente antes e durante um
curso
de licenciatura em educação física” de Kronbauer e Krug (2014); “
Entr
e
o ofício
de
aluno e
o habitus
de pr
ofessor:
os
desaos do
estágio supervi
-
sionado no pr
ocesso de iniciação à docência”, de Souza Neto et al. (2016)
e; “T
rajetória de estudantes na formação inicial em educação física: o
estágio curricular supervisionado em foco
”, de Pereira
et al
. (2018).
Mesmo que o contato com o território escolar seja mediado pelo
professor da disciplina e que o discente ainda esteja em um regime for
-
207
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
mativo, os autores veem que estar em proximidade com o espaço escolar
é fundamental para o aluno ganhar experiência de atuação na sua futura
prossão.
Nesse
sentido,
Souza
Neto
et al
.
(2016,
p.
312)
armam
que
o
estágio supervisionado propõe um diálogo com os conhecimentos
[...] que compõem a aprendizagem da docência para que
os estudantes da licenciatura possam construir um habitus
especicamente
docente
(PERRENOUD,
1993),
entendido
como um conjunto de maneiras de atuar e de perceber a
realidade na situação de ensino escolar
.
Para Pereira
et al
. (2018, p. 1
1), o ECS é de suma importância para
a construção identitária, já que “[...] no decorrer dos estágios, o estudante
estagiário adquire e desenvolve não só competências e habilidades para
docência
como
também
sua
identicação
prossional”.
Em
culminância
ao valor dado à disciplina de ECS para a formação identitária docente,
Kronbauer e Krug (2014, p. 403) citam que a
[...]
identicação
como
futuro
professor
durante
a
realização
do curso, citada pelos acadêmicos [...], está relacionada
ao fato dos Estágios Curriculares Supervisionados
possibilitarem
uma
maior
identicação
como
professor
docente.
Para Pereira
et al.
(2018, p. 7), esse aspecto relacionado à formação
identitária e
ao
ECS se
intensica,
pois “[...]
o momento
do
ECS é
desen
-
cadeador de fazeres e saberes pedagógicos que proporcionam o conheci-
mento da realidade escolar
, da dimensão das relações políticas e internas
da
escola”.
Assim, o
que
vericamos
tanto no
contato com
o
PIBID
quanto
no ECS é que os autores Fonseca e T
orres (2013), Glates e Gunther (2015),
Matter
et al
. (2019) Kronbauer e Krug (2014), Souza Neto
et al.
(2016) e
Pereira
et al.
(2018), quando pensam a formação da identidade docente,
armam
que
o
período
da
formação
inicial
que
envolve
o
contato
com
a
docência se faz como um dos fatores de maior impacto sobre a identidade
dos futuros professores.
Para os autores, à medida que o discente entra em contato com o
espaço escolar via PIBID ou ECS, ele se depara com as miríades de sím-
bolos, códigos e condutas relacionadas à cultura escolar
. Junto a isso, o
aluno nesse espaço passa a compreender o que é o fazer docente. Segundo
os autores citados, estar no território escolar
, agora não mais como aluno,
208
Corpo, políticas e territorialidades
faz com que esse discente incorpore, entenda e absorva toda a múltipla e
ampla gama semiótica localizada nesse espaço.
Faz-se necessário, porém, voltarmos nossa atenção para as questões
e problemáticas encontradas nos modelos explicativos dos autores, anali-
sando o PIBID e o ECS, principalmente sobre a relação entre discente e o
contato
com
a
docência,
a
m
de
percebermos
os
desdobramentos
causados
por tais premissas. Com isso, podemos produzir algumas questões, como:
Quais os fatores limitantes que essas proposições podem gerar? Basta estar
nesse espaço e absorver os conjuntos simbólicos para se desenvolver como
um
prossional
docente?
A
própria
amálgama
semiótica
provocada
pela
escola que diz o que é ser/fazer docente nos permite produzir intervenções
para além desses conjuntos de códigos denidos e pretendido pela escola?
Inicialmente, entendemos que os aspectos que abrangem o “contato
com a docência” são questões relevantes para a formação do discente e o
futuro exercício da prática de intervenção na EFE. É importante não des-
qualicarmos o
destaque
que o
contato
com a
docência tem
para
a consti
-
tuição da docência e
do futuro prossional, já
que nesse espaço o
discente
pode se relacionar com um acervo de saberes e práticas que o ajudará em
suas intervenções.
T
odavia, colocamos em análise a forma como se articulam e são
pensadas
tais
tomadas
de
saberes
pelos
discentes,
xadas
no
complexo
contexto escolar
.
Assim, o que queremos problematizar e investigar por
meio da subjetividade são os sistemas teóricos/analíticos nos quais os au-
tores dos artigos se orientam para pensar a formação desse sujeito e as ar-
madilhas nas quais se pode cair quando articulam uma criação identitária.
Há certa intencionalidade, uma noção do que é o fazer/ser docente,
que circula e é produzida no espaço escolar
. Sobre essa questão, propomos
um cuidado. Perceber até que ponto os conjuntos de códigos, estruturas de
regras e formas de orientar o fazer docente, que permeiam a cultura escolar
e que provocam um determinado “eu docente”, é limitador ou potencia-
lizador para esse sujeito em formação. Partindo dessa premissa, destaca-
mos alguns fragmentos dos artigos dos autores Souza Neto
et al.
(2016) e
Pereira
et al.
(2018). Esses nos serviram de base para perceber em quais
argumentos os autores se sustentam para pensar essa identidade
e para po-
dermos, posteriormente, articular e fornecer discussões referentes a tais
ideias com o conceito de subjetividade de Guattari.
Souza Neto
et al.
(2016) pensam/analisam que estar em contato com
209
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
o espaço escolar e a docência produz um “
habitus especicamente
docen
-
te”
que seria uma determinada coleção de modos de praticar e assimilar a
realidade no
cenário de ensino
escolar
. Essas
armações se repetem,
como
vistas no PIBID, em uma compreensão de que o discente/futuro professor
deve ser um receptor de códigos, símbolos e modos de fazer que constitui
o campo da docência da realidade escolar
.
Esse caráter consumidor de identidades reforça a negação, em cer
-
ta parte, de meios singulares e criativos que possam se desenvolver nas
dinâmicas estabelecidas nesses espaços. Entra para o jogo de análise com
pouca força o sujeito afectador e os múltiplos atravessamentos nele esta-
belecidos.
Podemos
perceber
no
trecho
“construir
um
habitus
especica
-
mente docente”, um modo de compreensão que reproduz uma noção bi-
nária
(dentro/fora)
dos
uxos
afetadores
ao
qual
o
sujeito
está
exposto
na
escola. Outro momento que podemos perceber o esquema de captação dos
planos dessa forma já existente é quando os autores Pereira et al. (2018, p.
7, grifo nosso) dizem que o “[...] ECS é desencadeador de fazeres e sabe-
res pedagógicos que proporcionam o conhecimento da realidade escolar
,
da dimensão das relações políticas e internas da escola e o sentimento de
ser docente”. T
al compreensão parte de concepção preexistente do fora e
posiciona o sujeito como capturador de certo modo já estabelecido de ser/
fazer docente através de uma relação organizada
de um eu “consciente”,
entendido como o foco, a essência e condutor dos modos de se obter o sa-
ber (KASTRUP
, 2005).
Para avançarmos nas análises e pensarmos para além de modelos
que trabalham via realidades já dadas, novamente convidamos o conceito
de agenciamento coletivo de enunciação. Pensado por meio dessa compre-
ensão, o agenciamento coletivo de enunciação está dado na ordem da lin-
guagem em seu caráter de desdobrar modos de ação, práticas em posição
de imanência, pois, para Deleuze e Guattari (201
1, p. 23),
[...] um tipo de enunciado só pode ser avaliado em função
de suas implicações pragmáticas, isto é, de sua relação com
pressupostos implícitos, com atos imanentes [...], que vão
introduzir novos recortes entre os corpos.
Com isso a escola está tomada por esses processos dos agenciamen-
tos coletivos de enunciação, pois é por meio de um conjunto heterogêneo
de signos e símbolos ancorados na sua materialidade, que se faz e consolida
210
Corpo, políticas e territorialidades
sua existência quanto uma instituição escolar
, em um processo imanente.
Assim, o sujeito docente e a instituição escola não se encontram em
espaços
opostos, em
uma delimitação
fortemente xada,
as duas
instâncias
se articulam e vão se produzindo de forma constante, em uma dinâmica
nunca
nita.
Zourabichvili
(2004,
p.
9)
acrescenta
que
“[...]
o
indivíduo
por sua vez não é uma forma originária evoluindo no mundo como em um
cenário exterior [...] aos quais ele se contentaria em reagir: ele só se cons-
titui ao se agenciar
, ele só existe tomado de imediato em agenciamentos”.
Esta apreensão nos ajuda a compreender a relação profunda e não
fracionada nos procedimentos da constituição do indivíduo e a “realida-
de”.
Este
sujeito
agenciado
se
encontra
xado
no
complexo
maquinário
criativo
de
existência
nunca
nalizado.
Desse
modo,
“[...]
para
o
pros
-
sional do social tudo dependerá de sua capacidade de se articular com os
agenciamentos de enunciação que assumam sua responsabilidade no plano
micropolítico” (GUA
TT
ARI; ROLNIK, 1996, p. 38).
Assim, o estudante
da
licenciatura em
EF
não está
no
campo “fora”,
que
se congura
somen
-
te em sujeito receptor de estímulos, mas sim compondo e afetando esses
movimentos de agenciamentos na/da instituição escolar
, portanto, “Cada
indivíduo
deve
lidar
com
esses
grandes
agenciamentos
sociais
denidos
por
códigos
especícos,
que
se
caracterizam
por
uma
forma
relativamen
-
te estável e por um funcionamento reprodutor [...]” (ZOURABICHVILI,
2004, p. 9).
Com isso, esse tipo de análise/leitura extrapola e se opõe à dinâmica
estabelecida entre o sujeito e o espaço escolar proposta pelos autores dos
artigos estudados, visto que não há separação entre sujeito discente/escola
no momento de articular e compreender os procedimentos de afetações e
no modo de engendrar a produção do indivíduo, por isso buscamos nos
afastar da “[...] política da recognição, que toma o conhecimento como
uma questão de representação” (KASTRUP
, 2005, p. 1281).
Por
m,
ressaltamos
novamente
que
esse
ponto
do
contato
com
a
docência se faz importante, mas temos que ter cuidado para não sermos ab-
sorvidos
pelos processos
codicadores dos
agenciamentos enunciativos
da
escola e produzidos mediante uma subjetividade fabricada. Desse modo,
junto com os agenciamentos de enunciação coletiva, trazemos novamente
a ideia de “aprendizagem inventiva”, para pensarmos e propormos outras
maneiras de conceber a produção do sujeito docente e sua formação. Em
relação à
aprendizagem
inventiva, Kastrup
(2005,
p. 1280)
arma
que so
-
211
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
mente compreendendo a cognição como invenção podemos perceber que
nossas práticas podem resultar em “[...] subjetividades que encarnam o
funcionamento inventivo, e outras resultam em subjetividades recogniti-
vas, que se limitam a tomar o mundo como oferecendo informações pron-
tas para serem captadas.”
O currículo: Pr
odução de subjetividade e a identidade
Neste subtópico iremos trazer o currículo para debatermos sobre a
questão da identidade. Mostraremos e posteriormente analisaremos como
os autores dos artigos selecionados na pesquisa pensam a temática do cur
-
rículo em suas relações com a identidade docente na EFE. Os artigos e res-
pectivos autores utilizados neste subtópico foram: “
Identidade docente no
ensino superior de educação física: aspectos epistemológicos e substan-
tivos da mer
cantilização educacional
”, de Neira e
V
ieira (2016) e; “
Iden-
tidade docente e educação física: um estudo de r
evisão sistemática
”, de
Pires et al. (2017).
Uma das questões que se destaca na composição da formação da
identidade docente nos artigos estudados é o currículo do curso de gradu-
ação/formação em EF
. Para Neira e V
ieira (2016) e Pires
et al.
(2017), o
currículo ganha destaque, pois nele está inserido a dimensão política do
curso e, com isso, o tipo de formação que o currículo planeja para o sujeito.
Por essa via Neira e V
ieira (2016, p. 784) entendem que os currículos
[...] agregam conceitos e conhecimentos sobre como deve
ser a prática pedagógica, a relação com os alunos, seleção
de conteúdos e instrumentos de avaliação, além da condição
político-pedagógica – em suma, sua forma de ensinar
.
Com base no que foi dito pelos autores na citação, visualizamos
que o currículo fornece ao sujeito docente formas de pensar e or
ganizar as
ferramentas para lidar com o conjunto de arranjos necessários para as suas
práticas.
Há também
no
currículo disputas,
conitos
e
interesses de
inten
-
ções políticas, vide que a ação docente é, por excelência, uma prática de
cunho social, em que não há neutralidade.
Segundo Neira e V
ieira (2016, p. 786), “[...] o currículo que forma
futuros professores é produto de tensões, descontinuidades, rupturas e dis-
212
Corpo, políticas e territorialidades
putas culturais, sociais e políticas”. Desse modo, esse conjunto de embates
políticos-pedagógicos se desdobra nos moldes e formas com as quais esse
discente irá organizar suas aulas e, por consequência, atinge a formação
de sua identidade docente. Em seguida, para Neira e
V
ieira (2016, p. 786)
“Investigar a identidade docente é atentar para o contexto, desde aspectos
da
gestão do
Estado
até
as
especicidades do
componente
curricular
,
pas
-
sando pela visão de rede de ensino, cotidiano da escola e interação com os
alunos”. Concomitante aos ar
gumentos dos supracitados autores, Pires et
al. (2017,
p.
48) salientam
que “[...]
a partir
da
denição do
currículo, das
bases teóricas,
do perl
do egresso e
dos objetivos do
curso é
que se con
-
gura a identidade do professor estabelecida em cada proposta”.
É, então, nesse campo de tensões, conitos e interesses que o sujei
-
to discente se encontra diante do currículo, o qual estruturará suas futuras
intervenções no espaço escolar
. Por consequência, o currículo planeja uma
postura/forma diante do fazer docente, reforça um determinado modo de
atuação, e, com isso, nutre e cria uma identidade docente. Desse modo, o
currículo funciona como pano de fundo estruturador para organizar
, propor
e intentar um determinado fazer político-pedagógico do professor
, no qual
esse fazer/prática constitui a criação de um território identitário do docen-
te, já que os discursos e práticas traçam as posições político-pedagógicas
do sujeito. Partindo dessa ideia de currículo, inclinamo-nos a pensar como
essa
relação
currículo/sujeito
armada
pelos
autores
pode
contribuir
para
formação do futuro docente. Como a dinâmica entre discente e o currículo
pode ser entendida para além de um olhar binário, currículo afetador/sujei-
to afetado?
Por essa razão, para guiar uma análise desse tema com o conceito de
subjetividade, trazemos Neira e
V
ieira (2016, p. 784) quando armam que
os currículos “[...] agregam conceitos e conhecimentos sobre como deve
ser a prática pedagógica, a relação com os alunos, seleção de conteúdos
e
instrumentos
de
avaliação”. Armando
a
noção
do
currículo
como
uma
estrutura provocadora e com objetivos geracionais, Pires et al. (2017) sa-
lientam que é por meio do currículo e suas bases teóricas que os objetivos
do curso são alcançados, bem como a produção da identidade do professor
.
Nesses fragmentos podemos estabelecer que os autores fazem a
apreciação dos efeitos referentes aos sistemas e procedimentos intenciona-
dos pelo estatuto curricular do curso. O currículo, a partir de sua estrutura
oferece um arcabouço semiótico que direciona princípios que englobam o
213
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
fazer/ser docente, que por consequência, auxilia a compor uma subjetivi-
dade de educador
. Diante desse ponto, é importante sublinhar que há um
movimento intencional de provocar afetações no discente. Contudo, temos
que nos atentar como esse diálogo entre o sujeito e o currículo se estabe-
lece.
Para ajudarmos
a pensar
sobre tal questão,
Guattari e
Rolnik (1996)
questionam
o
modelo
do
sujeito
meramente
receptor
.
Guattari
e
Rolnik
(1996, p. 35) armam que
[...] o sujeito, tradicionalmente, foi concebido como
essência última da individuação, como pura apreensão pré-
reexiva, vazia, do mundo, como
foco da sensibilidade, da
expressividade, unicador dos estados de consciência.
Esse tipo de decifração do sujeito-razão criticado por Guattari e
Rolnik, dado
como sujeito
fora do
mundo e receptor
de estímulos
externos
de
perl
neutro,
se
espalhou
e
inltrou
nos
modelos
de
pensar
o
sujeito
nos campos das ciências sociais e humanas. Desse modo, a EF
, ao utili-
zar
o
formato
empregado
pela losoa
da
consciência/mente
para
pensar/
compreender a formação do sujeito docente, também sustenta esse olhar do
sujeito-razão. Colaborando com essa crítica ao sujeito receptor
, Soares e
Miranda (2008, p. 41
1) pontuam que “[...] um sujeito a um só tempo pen-
sante e autobiografável, que conhece o mundo, é um objeto dado a priori
que espera ser desvelado em sua intimidade pelo primeiro”.
Assim, para Guattari (1992), a dinâmica estabelecida na formação
do
sujeito
não
será
em
uxos
de
vetores
verticalizados,
dentro/fora,
de
caráter emissor
-receptor
, mas sim em uma relação de diálogos múltiplos e
heterogêneos.
As estruturas simbólicas que compõem o estatuto curricular
e que provocam perturbações não serão tomadas por um desenho limpo
em um vínculo direto de absorção, mas sofrerão em seus modos, captações
diversicadas
e
plurais,
em
que
os
indivíduos
também
são
produtores
e
agenciadores de si.
O sujeito, portanto, responsável de si e do seu fazer
, e como pro
-
ssional
do
social,
deve
estar
ciente
que
suas
intervenções
produzem
e
engendram processos de subjetivações que respondem a uma direção/pos-
tura de caráter político. Por
essa razão, para Guattari e Rolnik (1996)
todo
o sujeito que ocupa uma posição de trabalho no campo social se encontra
em um dilema, ou vão se pautar por via de reprodução de modelos que
214
Corpo, políticas e territorialidades
inviabiliza os processos de singularização ou, ao contrário, vão trabalhar
para o funcionamento desses processos na medida de suas possibilidades
e dos agendamentos que consigam pôr para funcionar
. E para tal condição
de processualidade do sujeito e o fator de gestação de si, Guattari (1992, p.
21) arma
“[...] que
cada indivíduo, cada
grupo social
veicula seu próprio
sistema de
modelização da subjetividade, quer
dizer
, certa cartograa
feita
de demarcações cognitivas, mas também místicas, rituais, sintomatológi-
cas [...]”.
Esses argumentos de Guattari e de seus intercessores nos proporcio-
nam pensar uma análise que estabelece a dinâmica processual que compõe
o sujeito. Esta, dada por meios múltiplos, amplos, não possuindo domínio
de substratos individuados ou coletivos, pois “[...] é neste mundo ‘híbrido’
de ‘quase-sujeitos’
e ‘quase-objetos’
(LA
TOUR, 1994), nesse ‘entre’, que
as coisas se engancham, se acoplam e agenciam elementos vários” (SOA-
RES; MIRANDA, 2009, p. 417).
V
isto desse modo, notamos que o currículo provoca certa subjeti-
vidade, promovendo com seus arranjos normativos-prescritivos uma mul-
tiplicidade semiótica que engendra processos de subjetivação de um fazer
docente. E aqui, novamente, não desejamos negar os desdobramentos e
a importância que o currículo como prescrição possui no que se refere a
produzir docência, mas sim almejamos fomentar um debate pelo qual pos-
samos ampliar as discussões de como os conjuntos normativos-prescritivos
expressos no currículo são capazes de efetuar regimes de subjetivação e
entender quais subjetividades apostamos efetuar em nosso fazer docente.
Situado e engendrado pela máquina de enunciação coletiva escolar
,
é necessário pensarmos maneiras e arranjos que permitam ao sujeito do-
cente produzir práticas educacionais para além das prescritas e propositi-
vas, ancoradas nos aparatos semiológicos compostos pelos corpos norma-
tizadores que sustentam uma ideia de ser/fazer docente. Portanto, apoiados
em
Rolnik
(1995,
p.
9),
apontamos
que
é
“[...]
necessário
deslocar-se
do
ponto de
vista de
um sujeito, mesmo
que descentrado, escravo
de sua
gu
-
ra, para o ponto de vista da processualidade do ser”.
Desse modo, quando trazemos a questão da formação docente e das
perspectivas que apostamos no fazer/ser docente, ela se compõe e dialoga
com
a
noção
de
currículos
nômades.
T
al
noção
arma
que
o
“curricular”
reside no reconhecimento de que os sujeitos produzem “mundos” quando
trabalham, ou seja, é,
215
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
A
capacidade que os professores e alunos possuem de
reinventar a escola a cada dia.
A
potencialidade de produzir
currículos nômades por meio de suas vibrações, sensações,
emoções, artistagens, contorcionismos, equilibrismos e
invencionices (HOLZMEISTER
et al.
, 2016, p. 420).
É nesse sentido que pleiteamos as intervenções docentes via pro-
cessos de emergência
e aberturas para a efetivação das potencialidades,
na perspectiva dos encontros e seus processos afectantes capazes “[...] de
produzir uma composição entre corpos aprendentes, a partir dos quais ou-
tras linhas vão sendo tecidas, expandidas ou bloqueadas, criando outras
bifurcações [...]” (HOLZMEISTER
et al.,
2016, p. 424). Compreendemos
como esses encontros, e a partir deles, os processos de aprendizagem emer
-
gem, se inventam e reinventam, em constantes aberturas para novos e ou-
tros modos de aprender e inventar o mundo, em permanente estado de fazer
e refazer cartograas docentes.
Ou seja, trata-se de propor uma aprendizagem e suas relações dire-
cionadas para as aberturas das potencialidades de emer
gir e produzir sabe-
res, pautada por uma política de invenção cognitiva, na qual “[...] a aprendi-
zagem inclui a experiência de problematização e a invenção de problemas.
A
aprendizagem não se submete a seus resultados, mas faz bifurcar a cog-
nição, mantendo acessível seu funcionamento diver
gente” (KASTRUP
,
2005, p. 1282).
Assim, para ajudarmos a pensar uma formação docente em
EFE para além de modelos universalizantes de mundo, Kastrup (2005) nos
mostra que no que se refere à formação, se faz necessário encontrarmos
meios de nos afastar do professor que somente transmite saberes. Por outro
lado, é necessário apostarmos nas trajetórias docentes que se fazem nas
desaprendizagens e aprendizagens permanentes, por meio das quais seja
possível armar e produzir políticas cognitivas da invenção.
Considerações nais
Neste capítulo mostramos que os autores dos artigos selecionados
como fonte da pesquisa que discutem a identidade docente pontuam que
a
construção
de
identidade
se
intensica
quando
o
sujeito
começa
a
sua
formação inicial no curso superior em Licenciatura em EF
, principalmente
quando se familiariza com a prática docente via PIBID ou ECS, momentos
216
Corpo, políticas e territorialidades
em que iniciará seus primeiros contatos com o “mundo” da docência.
Outro fator que auxilia nessa formação identitária durante a forma-
ção inicial é o currículo do curso, o qual provoca no sujeito certos modos
de ser/fazer docente parametrizado por via de uma pluralidade semiótica
que estrutura os currículos. Nesse conjunto de passagem temporal, a ex-
plicação organizada
para a formação da identidade é a de que esse sujeito
deverá internalizar esses conjuntos de códigos, condutas, práticas particu-
lares remetidas à função docente.
Para pensar tal formação identitária, os autores dos artigos recor
-
reram à premissa dualizante na relação sujeito/escola/identidade, em um
modelo de captura e obtenção de identidade pautada na recognição (KAS-
TRUP
, 2005). T
al organização explicativa é amparada por arranjos no qual
o sujeito docente irá capturar com seu aparato sensório-cognitivo a profu-
são de códigos/condutas, normas, maneiras de ser docente encontradas no
espaço escolar
.
Particular modelo foi notado ser redutor dos processos de forma-
ção e aprendizagem, pois imputa ao sujeito docente a responsabilidade de
internalizar essa identidade como uma espécie de “selo de garantia” para
o sucesso futuro como docente de EFE. E além desse problema, notamos
que a formação da identidade pautada por uma simples absorção de modos
de ser docentes xados
no cotidiano escolar abre pouco ou
nenhuma alter
-
nativa para a inventividade ou possibilidades das que já foram postas de
maneira anterior no espaço escolar
, cercando e encurtando o raio de ação
das intervenções pedagógicas.
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ZOURABICHVILI, F
.
O V
ocabulário de Deleuze
. Rio de Janeiro:
[
s.l.
], 2004.
220
Corpo, políticas e territorialidades
Amanda Marques
C
Corpos em aliança:
Uma análise do coletivo drag queen
sisters of perpetual indulgence
e ocupações de territórios
221
Os movimentos sociais no mundo começaram a tomar forma prin-
cipalmente com reivindicações sobre a liberdade, corpos, sexualidades e
gêneros; as pessoas clamavam liberdade para assumirem a identidade que
quisessem. Desta forma, apesar de ter sua origem contestada, o termo
drag
queen
já existia desde 1870, mas somente no século 19 o termo foi associa-
do a
homens
que se
vestiam de
mulher para
ns teatrais.
Mesmo
que com
ns
teatrais,
os
homens
naquela
época
não
podiam
performar
a
arte
drag
fora dos palcos, pois era considerada sodomia e poderiam ser presos.
Mais tarde, no século 19, em Londres, surgiram os primeiros casos
de homens que saíam nas ruas vestidos de mulher
. Frederick Park e Ernest
Boulton foram os primeiros aderindo os nomes Fanny e Stella e, por con-
sequência, a polícia abriu um inquérito investigativo na tentativa de barrar
este tipo de comportamento que era visto como um crime extremo. Esta
prática
foi
ganhando
cada
vez
mais
espaço;
mesmo
que
não
fosse proibido,
o
cr
oss-dr
essing
ainda era visto como um comportamento inaceitável e
criminoso.
Com o tempo, quando foi associada diretamente às práticas teatrais,
foi ligada à comédia e tornando-se mais normalizada.
Além de tudo, é im-
portante
ressaltar
que
a
sexualidade
não
estava
ligada
aos
homens
vesti
-
rem-se de mulher; esta era considerada uma brincadeira popular
.
Em 1920, a arte começa a alinhar
-se à comunidade LGBTQ, prin-
cipalmente, por causa dos
drag ball
s no Harlem em Nova Iorque. Este
lugar era o momento de segurança e liberdade para todos; os homens iam
vestidos de mulher
, havia diversos shows
drag
, dança,
lipsync
e concurso
de modelo. Os
drag balls
não
eram
somente
dedicados
à
arte
drag
, mas
também lésbicas, gays, heterossexuais e mulheres eram bem-vindas. Os
escritores
Charles
Henri
Ford
e
Parker
T
yler
são
alguns
dos
exemplos
de
pessoas que frequentavam estes espaços e depois compartilharam suas ex-
periências no livro “
The Y
oung and the Evil
” (2005), no qual detalham tudo
o que viveram.
Mesmo que alguns balls fossem integrados entre si, os juízes sem-
pre eram brancos e as drags negras eram sempre injustiçadas. O historiador
George Chauncey aponta que estes bailes foram de grande importância
na
61 - O autor traça a história da cena gay na cidade de Nova Iorque em um universo masculinista durante os anos 1890-
1940 em seu livro: “Gay New
Y
ork: Gender, Urban Culture, and the Making of the Gay Male
W
orld, 1890-1940”, publi-
cado em 1995 pela editora Basic Books (AZ) e reimpresso em 2019.
61
222
Corpo, políticas e territorialidades
época
para
visibilidade,
manutenção
e
criação
da
comunidade
LGBTQ.
Além
disso,
arma
que
o
Harlem
aumentou
a
solidariedade
em
relação
à
comunidade
gay
e
assinala
a
contínua
centralidade
da
inversão
de
gênero
na cultura gay
. Mesmo com as perseguições e prisões na época, o Harlem
tornou-se
uma meca
homossexual, os
políticos e
a polícia
não
tinham mais
“controle”
sobre
a
situação,
não
havia
nada
que
eles
podiam
fazer
para
tentar conter a cena dos bailes
drag
; era algo que já estava consolidado
no condado do Harlem. Com isso, ao invés de abandonar a cena, os par-
ticipantes do baile usaram este cenário como oportunidade de mudança.
Desde o começo dos bailes, a força e a persistência dos patrocinadores
diante da diversidade da cena dos bailes drags se tornou imparável. E foi
este espírito de luta que permitiu que os bailes prosperassem, e este mesmo
espírito permanece até hoje na comunidade LGBTQIAP+.
Como fenômeno de contracultura, a persistência em continuar e vi-
sibilizar os movimentos se tornou cada vez mais importante. Conforme a
comunidade LGBTQIAP+ foi se expandindo, as resistências também se
expandiram. Em 1968, a voz de Marsha P
. Johnson, mulher trans, eclodiu.
Diante de mais uma batida feita no
Stonewall Inn
, no Greenwich V
illage
em Nova Iorque, em 28 de junho, o que poderia ser mais uma vez um ato
de abuso policial se tornou um dos maiores movimentos de resistência da
época.
A
polícia invadiu o local, acendeu as luzes e desligou o som. O que
era comum nestas batidas era que as pessoas que estavam presente no local
se alinhassem para que a polícia pudesse checar os documentos, mas todos
se negaram, criando um grande tumulto do lado de fora do bar
, atraindo os
espectadores que estavam do lado de
fora.
A
confusão começou aumentar
,
garrafas foram atiradas contra a polícia, eles começaram a atirar contra os
manifestantes
presentes,
o
camburão
da
polícia
chegou;
pouco
depois,
o
bar começou a pegar
fogo, os bombeiros chegaram; a multidão começou
a
cantar e fazer danças e, enquanto alguns eram presos, os outros resistiram.
Durante
mais
ou menos
cinco dias
a mobilização
se
tornou cada
vez maior
.
Tão grande que se assemelha ao Movimento Negro pelos direitos civis e a
Revolução Feminista dos
anos 1960.
Stonewall
cou marcado
como palco
de revolução e resistência e,
assim, o dia 28 de junho de 1971 foi
marcado
pelas primeiras marchas do or
gulho gay nos Estados Unidos.
Em contrapartida, o Brasil, um dos primeiros países a descrimina-
lizar a homossexualidade, é, entretanto, um dos países que mais mata pes-
223
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
soas LGBTQIAP+ no mundo. Durante o tempo do Império, em 1830, a
homossexualidade
já
era
reconhecida
e
não
vista
mais
como
um
crime,
o
que nos leva a crer que existe uma discrepância entre o avanço do reco-
nhecimento de pessoas LBGTQIAP+ e o crescente número de assassinatos
contra
as
mesmas
pessoas.
A
parada
LGBTQ
em
São
Paulo
começou
a
acontecer em 1997, mas logo se transformou em uma das maiores atrações
do mundo, e reúne um dos maiores públicos. E é justamente por causa dos
eventos de junho no Stonewall que praticamente todos os eventos ligados
ao orgulho LGBTQIAP+ acontecem nesta época.
Dito isso, pode-se perceber que este evento mudou radicalmente a
história das pessoas lésbicas e gays na época; o que era somente para ser
violência
e exclusão
somente
se
tornou
or
gulho
e
luta.
Marsha P
.
Johnson
após tudo que aconteceu na revolta de
Stonewall
começou a perceber o
quão
importante
e
necessário
era
dar
visibilidade
a
causa
trans
também.
Mesmo que
não se
identicasse com o
gênero feminino,
se vestia e
perfor
-
mava o “ser mulher”. Por trabalhar nas ruas, Johnson conhecia a força po-
licial e os abusos das autoridades; portanto, começou a advogar em favor
de seus companheiros trans para impedir prisões de inocentes.
Dado o contexto histórico-cultural, precisamos lembrar que a arte
drag queen
continuou sendo um tabu, mas com o tempo foi ganhando es-
paço,
já
que
guras
como
Johnson
seguiram
dando
voz a
todas
essas
mino
-
rias e abrindo o espaço que elas mereciam por direito. Desta forma, obser
-
va-se que, por mais que a homossexualidade crescia como uma ameaça na
sociedade, as
drags
permaneciam como entretenimento.
A
arte
drag queen
aponta para manifestações artísticas culturais que buscam romper as cate-
gorias
binárias
do
sujeito,
armando
assim
que
o
indivíduo
pode
performar
outras identidades além de sua identidade biológica e sexual.
A
relação
da
drag
está diretamente ligada ao território dramático
artístico que emer
ge justamente pelo corpo; a teatralidade está presente
desde sempre, já que
a ocupação dos palcos sempre foi algo essencial.
Em
suma, este artigo pretende analisar a forma que o coletivo
Drag Queen
“
Sisters of Perpetual Indulgence
” caminham pela cena teatral e conduzem
um pensamento artístico de forma a despolarizar os territórios aos quais
transitam. Desta forma, a partir da análise historicocultural, pode-se ob-
servar que as questões de gênero, de certa forma, abriram visibilidade para
corpos vulneráveis que resistem de forma artística, já que, infelizmente, a
arte
drag não
é
estudada amplamente
e
muito se
especula
sobre o
seu
sur
-
224
Corpo, políticas e territorialidades
gimento, nomenclatura e historiograa.
No Brasil, por exemplo, ao longo dos anos a arte
drag queen
tem
ganhado espaço cada vez maior; este tipo de
performance artística
con-
quistou casas noturnas, peças de teatro, manifestações carnavalescas e até
mesmo
programa
de
televisão
como
“
Drag me as a Queen
”, apresentado
por três
drag queens
brasileiras: Rita
V
on Hunty
, Penélope Jean e Ikaro
Kadoshi, tendo por objetivo transformar mulheres cisgênero em
drags
, de
forma a incentivar a enxer
gar a própria aparência e identidade e libertar a
“
queen
” que há dentro delas.
Como abordado anteriormente, com o avanço e visibilidade da cau-
sa
LGBTQIAP+,
a
possibilidade
de
comunicação
nos
espaços
também
cresceu, e com isso a abertura para entendimentos sobre as identidades. E
é
importante
rearmar
que
a
drag
queen
não
está
ligada
à
identidade
se
-
xual, mesmo que, para algumas pensadoras como Judith Butler e Guacira
Lopes Louro, elas possam enquadrar
-se na
T
eoria Queer
. Em vista disso, o
gênero
seria
a
fabricação
do
que
é
verdadeiro
em
cima
da
instituição
fan
-
tasiosa do
que se inscreve
nas superfícies dos
corpos; não é
que exista um
verdadeiro ou um falso, mas sim, efeitos produzidos em cima de verdades
discursivas e identidades primárias (BUTLER, 1990, p. 136).
Então,
pode-se
armar
que
o
gênero
é
uma
grande
encenação.
Se
pensarmos no que a autora fala sobre performatividade, como o conjunto
de repetições de atos que enfatizam e determinam discursos corpóreos, a
m
de
subverter
a
categoria
compulsória
de
gênero,
entenderemos
que
a
drag é aquela que imita todas as identidades de gênero (SALIH, 2017, p.
93). Dito isso, o gênero caminha para uma sequência de atos, um estilo que
o corpo adota e, a partir deste reconhecimento, a
performance
está ligada à
probabilidade radical, que por sua vez é associada diretamente ao próprio
gênero
o
qual
é
imitado.
Butler
(1990)
aponta
que
para
existir
a
repetição
dos
atos
não
se
necessita
de
uma
lógica
pré-existencial
para
que
uma
pa
-
ródia ou imitação seja feita,
já que a própria categoria inicial já está
sendo
parodiada desde o começo. Para Louro (2016), queer é tudo aquilo que é de
sexualidade
desviante,
que
não
se
enquadra
na
norma,
que
foge
da
regra,
principalmente binária:
Queer
é um
jeito de pensar e
de ser que não
aspira
o centro nem o quer como referência; um jeito de pensar e
de
ser que
desaa as
normas regulatórias
da sociedade,
que
225
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Nesta
mesma
direção,
a
autora
ainda
arma
que
a
política
queer
está diretamente ligada a um grupo de intelectuais dos anos 1990, que se
reuniram para debater e entender a diversidade do termo e assim dar base
e perspectiva teórica a ele, de forma a possibilitar a emer
gência do movi-
mento que ultrapasse somente a teoria. Portanto, o termo
queer
se localiza
na
não
normatização
do
indivíduo.
O
alvo
imediato
é
a
heteronormativi
-
dade compulsória,
além de
ir à
contramão da identidade
homossexual que
acaba muitas vezes sendo denominada como queer
. Porém, a identidade
queer
representa
outra
diferença,
que
vai
em
direção
de
ser
perturbadora
e
transgressiva
e
que
não
quer
ser
tolerada
ou
assimilada
a
outro
tipo
de
identidade (LOURO, 2016, p. 39).
O Coletivo
Sisters of Perpetual Indulgence
O grupo
Sister of Perpetual Indulgence
(SPI) ou
Or
der of Perpetual
Indulgence
(OPI)
é uma instituição
de caridade,
protesto e de
performance
artística que ocupam as ruas vestidas de drag combinadas com a imagem
religiosa,
de
forma
que
chamam
atenção
para
as
questões
da
intolerância
sexual
e
satirizam
também
o
gênero
e
moral.
Além
de
sua
fundação
ser
em São
Francisco, o grupo
também se espalhou
por grande parte
dos Esta
-
dos Unidos e também, Canadá, Europa,
Austrália e
América do Sul, sendo
considerado
um
grupo
de
inuência
internacional,
que
organiza
eventos
de arrecadação de fundos em prol ao combate a
AIDS ao redor do mundo.
A
história do
coletivo começa no
bairro Castro em
São Francisco, o
qual cou
amplamente
conhecido por
ser um
dos maiores
locais
que abri
-
gava homens gays durante os anos 1960. Por conta disso, diversos homens
começaram a se mudar para o bairro por causa da mudança sociocultural.
Assim, diante de tantas mudanças que aconteceram, foi possível pela pri-
meira vez na história um homem assumidamente gay ser eleito para ocupar
um cargo público, Harvey Milk foi eleito
como supervisor do Estado da
Califórnia. E foi neste mesmo bairro, em um domingo de Páscoa em 1979,
que o grupo de drag queens toma forma. O coletivo é composto por ho-
mens gays e tem por objetivo quebrar os padrões dos homens masculinos
226
Corpo, políticas e territorialidades
assume o desconforto da ambiguidade, do “entre lugares”,
do indecidível.
Queer
é um corpo estranho, que incomo-
da, perturba, provoca e fascina (LOURO, 2016, p. 7-8).
viris
do
bairro
que
usavam
longos
bigodes
e
jaquetas
de
couro.
Então,
as
“irmãs” vestiam
seus hábitos de
freira de
segunda mão
e saíam deslando
pelas ruas do bairro e, ocasionalmente, oferecendo abraços.
Em 1982, o país era marcado pela epidemia de
AIDS; os bares gays
e
lésbicos,
naquele
ano,
cavam
cada
vez
mais
vazios
porque
as
pessoas
acreditavam na ideia de que aquele seria o lugar onde se contrairia facil-
mente
AIDS
e
HIV
.
As
irmãs,
então,
de
olho
na
crise
que
as
rondavam,
passaram a
chamar atenção
cada vez
mais para
estas questões,
usando há
-
bito
ou
não.
Então,
as
irmãs
Flor
ence Nightmar
e
e
a
irmã
Roz
Erection,
ambas enfermeiras licenciadas e ativistas contra
AIDS, juntaram-se com
mais um
grupo
de irmãs
e enfermeiras
para criar
o
Play Fair
!, materiais e
folhetos educativos com intuito de conscientizar as pessoas LGBTQIAP+
sobre
educação sexual.
Elas
utilizavam
linguagem
coloquial
e tom
humo
-
rado
de
forma
a
chamar
atenção
para
um
assunto
extremamente
sério,
e
a
mensagem tornou-se muito clara.
Ao longo das décadas, o grupo partici-
pou de
diversas campanh
as, anúncios,
marchas, distribuição
de materiais
e
preservativos para a população LGTQIAP+.
Em 1983, a irmã
Flor
ence Nightmar
e
foi capa da revista
Newsweek
se auto intitulando como “o menino do pôster da
AIDS”. No ano seguin-
te,
em
1984,
a
doença
acabou
matando
a
irmã,
e
mais
algumas
na
mesma
época.
As
irmãs se reuniram
e zeram o
AIDS Candlelight Memorial
, para
honrar todas as outras parceiras que morreram por conta da
AIDS, que
se
alastrou
pela
comunidade
LGBTQ.
As
irmãs
que
faleceram
recebem
o nome de “
nuns of above
”
que
seriam,
em
tradução
direta,
“as
irmãs
de
cima”; os nomes delas foram expostos em uma grande colcha de retalhos
em frente da Casa dos Representantes dos Estados Unidos, em
W
ashington
D.C. Estas foram as primeiras “colchas” a serem vistas pelo presidente
Al
Gore e sua esposa T
ipper Gore. Nela estavam bordados todos os nomes das
pessoas que haviam falecido em decorrência da
AIDS.
Neste
período,
as
irmãs
encenaram
um
exorcismo
da
homofobia,
racismo e classicismo na escadaria que leva à Casa dos Representantes dos
Estados Unidos, juntamente com a
Aliança contra a
AIDS, para liberar o
poder
.
Até
hoje,
o coletivo
tem
como
missão lutar
pelos
direitos humanos
e
manter
o legado
de
respeito
e igualdade
a
todos.
Hoje,
elas estão
espalha
-
das pelo mundo, e seguem com o objetivo de manter a história queer viva,
por meio de um movimento transgressor e quase que ecumênico.
A
irmã Roma,
conhecida também como Michael W
illiams,
armou
227
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
em uma entrevista para a NBC que elas estavam cansadas dos homens que
se vestiam igual os homens das propagandas de cigarro
Marlbor
o
e jun-
taram-se como drags para romper com essa normatividade; elas gritavam
com as pessoas nas ruas e observavam suas reações, e conforme elas iam
andando, pararam na praia de Castro e viam que as reações das pessoas
eram
diversas.
Muitas
pessoas
cavam
muito
espantadas
em
ver
homens
com barba, vestidos de freira; ali elas perceberam que existia algum tipo de
potência. E assim o nome “
Sisters of Perpetual Indulgence
” sur
giu. E elas
acreditam que, 40 anos depois, as quatro freiras queer mudaram os rumos
do
mundo.
A
cada
dez anos,
as
irmãs
se
reúnem para
discutir
quais
são as
pautas que as interessam naquele ano, e maneiras nas quais elas podem
protestar em torno disso.
Em 1989, as pessoas queer ainda estavam lutando por justiça e
igualdade social. Lançaram a campanha de “chega de violência”, direcio-
nada
aos
crimes
homofóbicos
que
aconteciam
em
São
Francisco
naquele
ano. Neste período, elas estavam tentando ter reconhecimento como seres
humanos
que
fazem
parte
do
mundo.
Então,
elas
perceberam
que
a
luta
contra a
AIDS e HIV eram fundamentais, principalmente, porque o discur
-
so da época era que essas doenças estavam matando as “pessoas certas”.
Foi neste mesmo ano que as
Sisters of Perpetual Indulgence
viraram uma
organização sem ns lucrativos.
Em seu aniversário de 20 anos, em um domingo de páscoa, elas fe-
charam
a Rua
Castro
com uma
grande celebração,
o
que gerou
uma
grande
euforia, mas também uma grande confusão,
porque muitos ainda achavam
que
elas
eram
religiosas
de
fato,
e
aquilo
era
uma
celebração
pensada
nas
doutrinas da igreja, mas, com o apoio de muitos moradores e de políticos,
todos entenderam o intuito e tornou-se uma grande festa gay
. Neste dia,
elas
criaram
uma
competição
chamada
“
hunky jesu
s” que escolhia o “je-
sus” mais atraente
da festa. Esta competição acontece
até hoje.
A
oposição
não cou
muito contente
com
a grande
festa, e
a sua
publicidade negativa
atraiu mais público ainda, somando em torno de 20.000 - 30.000 mil pes-
soas
num
único
evento. A
irmã
Roma
arma
que
esta
foi
provavelmente
a
maior
celebração
que
elas
tiveram
na
história
do
coletivo.
Nesta
época,
membros da Igreja Católica criticavam os métodos do coletivo, e neste
evento
especíco,
a
Arquidiocese
pediu
que
o
evento
não
acontecesse na
-
228
Corpo, políticas e territorialidades
62 - Disponível em:
https://www
.nbcnews.com/feature/nbc-out/drag-troupe-sisters-perpetual-indulgence-mark-40-years-
-dragtivism-n996701.
Acesso em: 13 out 2021
62
quela
data.
E
a
publicação
que
saiu
no
jornal
da
Arquidiocese
comparava
as
Sisters
com
os eventos
neonazistas, em relação
ao feriado
judeu do
Pesach
.
Após
estas
acusações,
a
Liga
contra
Difamação
se
posicionou
dizendo
que as alegações feitas pela
Arquidiocese eram infundadas e que banaliza-
vam os
discursos de
ódio de
certos grupos. Outras
publicações armavam
que estas eram ofensas gratuitas contra as irmãs, e outras
não entendiam o
motivo pelo qual emitiram tal nota tão sem fundamento.
O
foco
da
comemoração
dos 30
anos
foram
as questões
políticas
em
relação à comunidade
LGBTQ e casamento entre
pessoas do mesmo sexo,
adoção,
homens
gays
no
serviço
militar
,
etc.
Então,
mais
uma
vez,
as
irmãs
reuniram
pequenos baldes
e saíram
em
direção a
coletar dinheiro
para cha
-
mar atenção a estas questões.
Em seu aniversário de 40 anos, em 2019, elas decidiram debater e
protestar pelos direitos dos imigrantes e pessoas transgêneras, bem como a
criminalização
da
homossexualidade
em
alguns
países
como
Brunei,
mas
dando visibilidade também para o país que elas vivem (EUA), lutando para
cada dia mais fazer com que fosse um bom lugar seguro de se viver
. Este
foi o mesmo ano que se marcou o aniversário de 50 anos da revolta de
Stonewall
em Nova Iorque e o começo do movimento do orgulho interna-
cional
LGBTQ.
O
grupo
classica
este
período
como
a
época
da
“cultura
do orgulho”.
Em 2019, o prefeito Pete Buttigieg foi perseguido no Estado do Iowa
por religiosos anti-gays, quando ele admitiu ser homossexual.
As pessoas
que
protestavam
contra
ele
armaram
que
ele
foi
contra
seu
batismo
e
contra
Deus
quando
declarou
sua
identidade
sexual
e
sua
posição
sobre
o
aborto. A
irmã
Roma
arma
que
depois
deste
incidente,
elas
perceberam
que o drama religioso e sexual impactava fora da comunidade LGBTQ.
Desta
forma,
percebeu
o
quão
deveria
ser
debatido
o
estilo
performativo
de
vida das pessoas fora da própria comunidade.
As
irmãs
sempre
deram
atenção
às
ondas
conservadoras
na
cidade
de São Francisco.
Uma de suas missões
era promulgar a felicidade
univer
-
sal e expur
gar a culpa estigmatizada. Dito isso, elas sempre performavam
exorcismos públicos;
um deles
aconteceu
quando uma
das irmãs
se vestiu
63 -
Festa
de tradição judaica
que também cou
conhecida como
“Festa de Libertação”,
esta celebração seria
a Páscoa
judaica, na qual eles comemoram a fuga do povo judeu que vivia como escravos do Egito.
A
palavra Pesach vem do
hebraico
e
signica:
“passar
além”.
Disponível
em:
https://www
.thejc.com/judaism/features/what-is-pesach-1.435631.
Acesso em: 28 out 2021
63
229
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
imitando a líder anti-feminista, autora, conservadora e advogada Phyllis
Schlay durante a
Convenção Democrata Nacional,
em 1984, que ocupou
a Union
Square em
São
Francisco, evento
que debate
e escolhe
os futuros
líderes
políticos
para
corrida
presidencial.
Uma
das
irmãs
subiu
ao
palan
-
que
vestida
de
Schlay
e
outra
falou
com
a
multidão,
enquanto
as
outras
irmãs tiravam
cobras de borracha da
roupa da imitadora da
Schlay
. Neste
mesmo
evento,
zeram
uma
imitação
de
Jerry
Falwell,
líder
do
Fórum
pela
Família,
o
qual
condenava a
homossexualidade, pornograa
e
aborto. Uma
das
irmãs,
vestida
de
Falwell,
foi
tirando
sua
roupa,
revelando
um
corsete
e
meia-calça, e devagar foi revelando uma mulher embaixo da roupa do líder
conservador em frente a uma multidão de 2.000 mil pessoas.
Quanto mais ativo
e combativo o coletivo
cava, mais atenção elas
chamavam.
Até o momento que a Igreja Católica se pronunciou contra elas
dizendo
que
sua
manifestação
era
ofensiva
aos
membros
da
Igreja,
prin
-
cipalmente, as mulheres católicas frequentadoras assíduas. Membros da
Igreja também armaram
que os hábitos
que as
Sisters
usavam, a maneira
que
falavam,
a
organização
e
seus
nomes
eram
tudo
uma
grande
afronta
contra a Igreja.
Em
1995,
as
irmãs
organizaram
uma
espécie
de
passeata,
certa
intervenção
no
domingo
de
páscoa
para
celebrar
o
aniversário
delas.
O
evento contou com paradas em 13
pub crawls
, que parodiavam o caminho
percorrido
por
Jesus
em
Jerusalém,
incluindo
onde
aconteceu
sua
cruci
-
cação.
Durante
o
evento,
existiam
atores
que
encenavam
Maria
Madalena
e
a V
irgem Maria, e elas continuavam durante todo evento a ensinar e enfati-
zar sobre
a
educação sexual
e também
distribuíam camisinhas;
ao
nal da
marcha, elas brindavam com pequenos copos de
Jagermeister
e pequenos
waes
de baunilha, representando o vinho e a hóstia.
Ao longo dos anos, elas conseguiram arrecadar milhares de dólares
em prol da causa LGBTQ e ao combate da
AIDS. Por exemplo, no even-
to de 1999 que celebrou os 20 anos do coletivo, foi arrecadado cerca de
13.000 mil dólares para grupos LGBTQ e centros de pesquisa em
AIDS
por São Francisco.
Em 2008, elas lançaram um livro que se chama “
Queer and Ca-
tholic
”,
em
que
elas
contam
que
se
vestem
e
como
se
vestem,
não
para
parodiar
ou ofender
as
instituições católicas,
mas sim
para
fazer alusão
aos
cuidados que elas pretendiam ter diante da sua própria comunidade; além
de
terem
a
intenção
de
honrar
a
memória
e
trabalho
das
freiras
católicas
230
Corpo, políticas e territorialidades
romanas que cuidavam de seus vizinhos. O coletivo, ao longo destes anos,
utilizou da arte
drag
para
levantar
atenção
não
só
para
gêneros
e
sexua
-
lidades
uídas,
mas
também
para
identidades
em
constante
construção
e
assuntos de saúde pública, que dizem respeito a todos.
Suas intervenções ocuparam espaços públicos e apontaram para mo-
dicações
nas
formas
binárias
de
pensamento
dos habitantes
e
governantes
em
São
Francisco.
Desta forma,
V
erónica
Gago
(2020) explica
que
o corpo
é
o
território
de
batalhas,
e
quando
se
sente
ameaçado,
entra
em
conito
de forma a solucionar os problemas que o cercam. O corpo possibilita o
desacato, que viabiliza dentro das lutas, outros modos de vida, e a partir
desses saberes encontrar o seu “
devir território
” e assim, mesmo que inde-
terminado, o corpo-território é capaz de atingir uma ideia-força que sur
ge
justamente de lutas apontando para potência de migrar
, ressoar e compor a
outras lutas e batalhas que somam a outros corpos-território (p. 1
10).
A
autora nos elucida que o
corpo-território
nos
dá
outra
noção
de
posse, fora da total individualidade; o corpo é como território extenso de
afetos, memórias e trajetórias que se nutre das lutas e produzem este corpo
neste território mencionado, ou seja, deslocar o indivíduo como sujeito
privilegiado
sem
tomar
o
eu
como
ponto
de
partida,
signica
observar
a
questão
de
posse
que
pode
ser
mobilizada
pelo
conceito
de
despossessão
de Judith Butler e
Athena
Athanasiou (2017).
A
potência do feminismo vai observar as diversas formas de possuir
o território,
e não
somente a carência
de um.
Para as autoras,
a desposses
-
são
é
o
que
designa
a
condição
fundamental
da
racionalidade
que
marca
a
emergência
da
condição
humana.
Elas
ainda
armam
que,
todos
já
es
-
tão
despossuídos
pelo
encontro
do
outro
em
alguma
instância,
e
sinaliza
a
autossuciência
de
cada
indivíduo,
o
que
signica
que
o
que
interessa
às
autoras
é
a
relação
entre
a
forma
performativa
dos
corpos
reunidos
em
protesto
e
a
força
que
eles
assumem.
Desta
maneira,
a
despossessão
não
é
a
privação
por
ela
mesma,
mas
sim
a
exposição
à
alteridade,
e
então
a
forma
ccional
fantasiosa
do
sujeito
se
dilui
e
constrói-se
a
racionalidade
e relação nos processos de subjetivação.
O conceito é explorado por outros autores como Edward Said em
“
The politics of dispossession
” (1994), no qual ele observa a resistência
palestina e a documenta de forma a explorar a perda de território e a vio-
lência
israelense.
Butler
e
Athanasiou
(2017)
vão
somar
a
essa
discussão
ao observar as formas de agência crítica pelas quais se manifestam a partir
231
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
da
política
performativa
da
qual
emergem
os
corpos.
As
autoras
não
negam
que
a despossessão,
em
um
primeiro
momento,
está ligada
ao
sofrimento,
a
total vulnerabilidade
e
a privação
de direitos
e
formas de
controle
psíqui
-
co.
Logo
após
esta
reexão,
elas
partem
para
uma
segunda
denição,
que
marcará
a
relacionalidade
humana
e
sua
condição.
E
assim,
o
indivíduo
expõe suas próprias ruínas e adquire poder de apropriar
-se do mundo que
o cerca, a partir do deslocamento do “
eu
” de maneira que promove o viver
em conjunto.
Outro ponto importante a ser destacado é se somos em alguma ins-
tância
já
despossuídos
do
outro,
o
que
signica
abandonar
de
forma
gra
-
dativa a lógica individual neoliberal, nos tornamos cada vez mais abertos
a
agenciamentos
coletivos.
E
então,
a
lógica
feminista
do
“meu
corpo
é
meu”
deveria ser
questionada, não
no sentido
de desmoralizar
o movimen
-
to feminista - nem as autoras fazem isto -, mas sim nos atentar a retórica
que subscreve este discurso.
O
que
torna
esta
investigação
cada
vez
mais
intrigante
é
como
po
-
demos romper a lógica individual de si mesmo, fundada no século XVII,
do qual somos todos donos dos nossos corpos e capacidades. Por isso,
torna-se cada vez mais essencial expandir a alteridade para o coletivo e se
despossuir
de
nós
mesmos
em
certas
instâncias.
Neste
caso,
a
despossessão
torna-se um conceito fundamental para manifestações públicas, ativismos
políticos
e
artísticos.
Isto
posto,
a
despossessão
também
caminha
lado
a
lado com a performatividade, de forma que o rompimento da lógica com-
pulsória
binária
acontece
pelo
gênero
e
sexualidade,
que
desaam
a
nor
-
matividade de corpos regulados pelo gênero, raça e sexualidade.
Primeiramente,
os
corpos
que
são
vistos
como
não
passíveis
de
vida,
se
deslocam
da
regulação
normativa
e
armam
seu
direito
à
vida. Ainda
assim, corpos
em
agenciamento e
assembleia pública
podem
não articular
um conjunto preciso de mudanças, mas, podem performar demandas pelo
m
da
precariedade
da
vida
e
condições
insuportáveis
de
vida.
Ou
seja,
o
ponto que devemos nos atentar
, de acordo com as autoras, é a condição de
desigualdade estrutural e as formas que apontam para possíveis mudanças.
Butler (2016) aponta que, somente pelas manifestações feministas e
de gênero, a partir da performatividade, estas mudanças podem acontecer
.
A
performatividade
pode
rearmar
as
formas
iniciais reguladoras
de
polí
-
ticas e reconhecimento das formas institucionalizadas de vida, mas apon-
tam também para a mudança do pensamento que ultrapasse estas formas
232
Corpo, políticas e territorialidades
Esses atos, gestos e atuações, entendidos em termos
gerais,
são
performativos,
no
sentido
de
que
a
essência
ou identidade que por outro lado pretendem expressar
são
fabricações
manufaturadas
e
sustentadas
por
signos
corpóreos e outros meios discursivos. O fato de o corpo
gênero
ser
marcado
pelo
performativo
sugere
que
ele
não
tem status ontológico separado (BUTLER, 2016, p. 194).
reguladoras, de maneira a subverter a lógica binária
compulsória. Então, a
repetição
da
performatividade
de
gênero
seria
uma
das
formas
para
rom
-
per com a norma. Para Butler (2016), a performatividade constitui-se pela
constituição do gênero em atos; representações e gestos que se constituem
de
maneira
ordinária.
Os
atos,
gestos
e
desejos
são
produzidos
na
super
-
fície do corpo, e seu efeito é de substância interna, mesmo que algumas
ausências
sejam
signicantes,
elas
sugerem, sem
revelar
que
a identidade
é
o princípio organizador e, portanto, a causa.
E
assim,
a
noção
de
gênero
deve
ter
uma
ação
performativa
repetida,
como
se
fosse
um
ritual.
Esta
repetição
é
uma
reencenação
e
experiência
de
um
conjunto
de
signicados
que
foram
estabelecidos
previamente
como
uma
forma
ritualizada
de
legitimação
pelo
caráter
social.
Desta
forma,
os
corpos
individuais
encenam
estas
ações,
e
estiliza
seus
signicados
por
meio
do
gênero,
o
que
torna
cada
vez
mais
esta
ação
pública.
Ações
que
possuem
dimensões coletivas
e também
temporais são
atos
consolidadores
e
fundadores
do indivíduo
(BUTLER, 2016,
p.
200).
E assim,
a autora
ar
-
ma
que
o
gênero
não
pode
ser
considerado
como
uma
identidade
xa
ou
até
mesmo um locus de
ação que decorre de vários
atos.
Ao contrário disso,
o
gênero é uma identidade construída ao longo dos anos, que é instituído de
maneira externa por uma sequência estilizada e repetida de atos.
O
efeito
do
gênero
se
produz
pela
estilização
do
corpo
e
deve ser entendido, consequentemente, como a forma
corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos
corporais
dew
vários
tipos
constituem
a
ilusão
de
um
eu
permanente marcado pelo gênero (BUTLER, 2016, p. 200).
Ou seja,
a autora arma
que o
gênero desloca-se da
concepção car
-
tesiana de um modelo moldado e substancial de identidade e desloca-se
para outro lugar que requer uma “temporalidade social constituída” (
idem
),
que ao
longo do
tempo corporica-se
ao longo
de repetições
e assim
mar
-
233
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
ca-se o
gênero. Então,
parte-se do
ponto de
que a singularidade
do gênero
acontece a partir de atos performativos, e assim, constitui-se a identidade
que se pretende revelar
. Desta forma, o gênero é constituído mediante
per-
formances,
atos performativos que evidenciam e produzem sua cultura,
portanto,
não
há
identidade
preexistente
que
não
seja
constituída
nestes
atos
que são
impossíveis
de
serem
medidos,
não existem
atos
verdadeiros
ou falsos, mas, mediante a estas
performances
pode-se dizer que a própria
noção
de
sexo
essencial,
seja
masculino
ou
feminino,
também
são
consti
-
tuídas, o
que faz
parte das estratégias
de ocultação
do caráter performativo
e suas possibilidades, bem como o caráter performativo do gênero que pro-
liferam em direção às congurações genericadas, fora da estrutura restri
-
tiva
de
dominação
masculinista,
binária
e
também
de
heterossexualidade
compulsória (
ibidem
).
É importante ressaltar a presença desses atos performativos na es-
fera pública, pois
quando estes atos unicam-se,
o indivíduo deixa de lado
sua própria
individualidade e assume
a posição
coletiva para
agir em con
-
junto com outros corpos, que têm as mesmas reivindicações, de forma que
a mudança seja coletiva.
Precisamos
pensar na
ação plural,
ou seja:
“
[...] uma pluralidade de
corpos que r
epr
esentam os seus pr
opósitos conver
gentes e diver
gentes de
formas que não obedecem a um único tipo de ação ou se r
eduzem a um úni-
co tipo de armação
” (BUTLER,
2018, p. 174).
A
questão que
se instaura
é como a política muda quando a ideia dos direitos que é reivindicada pelo
indivíduo dá
lugar
a uma
ação da
assembleia corporicada
que representa
o conjunto de reivindicações, principalmente pela linguagem.
Claro
que
não
existe
ação
que
seja
feita
em
totalidade
com
o
con
-
ceito de
“povo”, Butler
(2018) elucida
isso ao
armar que nenhuma
ação é
feita pelo povo como um todo, mesmo que todas as ações a assembleia se
auto
denomina
“somos
o
povo”.
Desta
forma,
não
se
pode
dizer
que
uma
parte
da
assembleia
representa
o
todo,
mas
sim
os
esforços para
construção
de
um
levante
de
mobilização
o
qual
gera
articulações
e
negociações
a
partir
da
reunião
de
corpos no
espaço
público.
Isto posto,
o
território-corpo
torna-se
o
lugar
onde
a
ação
acontece,
quando
se
unem
em
assembleia,
mesmo
que
uma
parte
do
povo,
ali
rma-se
uma
aliança
que
aponta
para
formas de subverter a lógica patriarcal. Neste caso, a comunidade drag
queen vem transformando espaços públicos com seus corpos
queer
.
Ações como do coletivo
Sisters of Perpetual Indulgence
traz à tona
234
Corpo, políticas e territorialidades
a potência
de corpos que não
estão inseridos na lógica
binária e subvertem
essas lógicas apontando para novas formas de olhar o corpo, principalmen-
te o corpo queer
.
A
teoria
queer
,
além dos estudos que Judith Butler fez
sobre gênero e sexualidade, que foram citados aqui anteriormente, a auto-
ra
foi
fortemente
inuenciada
por
Michel
Foucault
(1976)
que
iniciou
os
estudos sobre
os impulsos
sexuais,
liberdade de
gênero e
opressão sexual,
exercidos nas civilizações avançadas. Desta forma, a teoria queer sur
ge a
partir de uma aliança de teorias feministas, psicanalíticas e pós-estrutura-
listas, que faziam investigações sobre a categoria datada do sujeito; assim
a consequente desestabilização das categorias binárias de
gênero. E então,
para possibilitar o agenciamento dos corpos, tendo em mente a identidade
intrinsecamente
política, a
subversão acontece
desde o
interior do
discurso
preexistente, já que é isso tudo que existe (BUTLER, 2003).
A
subversão apontada pela autora mostra que todo gênero é paródi
-
co,
mas
a
paródia
por
ela
mesma
não
é
subversiva
(SALIH,
apud
BUTLER;
A
THANASIOU, 2017,
p.
95). Portanto,
o que
seria
então, essa
desestabili
-
zação que
a autora
pontua ao
longo de
sua obra
até hoje,
se não
uma série
de agenciamentos coletivos que culminam em ações como a das
Sisters of
Perpetual Indulgence
?
Ações
como
as
do
coletivo
citado,
não
reforçam
as
bases
hetero
-
normativas
de
gênero,
mas
sim
a
repetição
de
uma
fórmula
original
que
também já é parodiada em uma primeira instância. Seria legítimo dizer que
o gênero, em geral, é uma forma de paródia, mas que algumas performan-
ces de gênero são mais paródicas do que outras. Na
verdade, ao destacar a
disjunção
entre o
corpo
do
performer
e o
gênero
que
está sendo
encenado
[
performed
], algumas performances paródicas tais como o
drag
, revelam
efetivamente a natureza imitativa de todas as identidades de gênero; “
[...]
ao imitar o gêner
o, o drag r
evela, implicitamente, a estrutura imitativa do
próprio gêner
o - bem como a sua contingência
” (SALIH, apud BUTLER;
A
THANASIOU,
2017, p.
93).
Em virtude
disso, quando
as bases
são
ques
-
tionadas, as ações tornam-se subversivas, justamente no momento no qual
os corpos em assembleia reúnem-se com o objetivo de subverter a ordem
binária.
Assim, o coletivo
Sisters of Perpetual Indulgence
seria essa “par
-
cela do povo”, que utiliza do espaço público como fonte primordial de
discussão.
Quando
se
ocupa
o
território,
as
bases
de
pensamento
mudam,
de forma que os corpos se tornam visíveis em um espaço que tentamos ani-
235
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
quilar todo tempo.
Então, “[...] o
corpo-território é uma
imagem-conceito,
surgida a partir de lutas” (GAGO, 2020, p. 109), é o campo de batalha que
se forma quando o corpo se sente agredido, e se refaz diante destes enfren-
tamentos ao mesmo tempo em que tece alianças que culminam em ações
coletivas.
A
reivindicação
corporicada
leva
o
sujeito
a
criar
coligações
que
são
necessárias
para
ocupação
do
espaço
público.
Claro
que
este
espaço
não é
somente
as praças,
ruas
e centros
das
cidades, mas
também
o domí
-
nio virtual torna-se importante quando os indivíduos unem-se, pois exis-
te
solidariedade
nos
atos.
O
que
signica
que
hoje,
celulares
e
redes
de
comunicação
expõem
brutalidade
policial
e
documentam
instituições
que
mantêm estes corpos vulneráveis cada vez mais passíveis de uma vida que
não
deve ser
vivida.
É como
um
ciclo de
corpos-territórios
que se
apoiam
para valer o direito de que toda vida é passível de ser vivida, mesmo que
algumas instâncias governamentais as façam acreditar no contrário.
Por conseguinte, a
composição do som falado
na esfera pública de
-
nomina
uma
autoconstituição
como
condição
de
aparecimento;
ou
seja,
a
assembleia é uma grande amálgama de interações de performance, sons,
imagens
e diversas
tecnologias
que
denem quem
é
este
o
povo e
ajudam
em
sua
autoconstituição
(BUTLER,
2018,
p.
26).
Esta
condição
de
apa
-
recimento é uma forma de lutar contra as formas precárias de vida, sendo
a
performatividade
como
a
forma
primeira
de
subversão.
Em
vista
disso,
quando
corpos
não
binários
que
transgridem
a
norma
reúnem-se
em
as
-
sembleia,
pode-se
enxer
gar
uma
nova
potência
sendo
rmada
a
partir
de
atos performativos, que tem característica de enunciados linguísticos, que
no momento da ação enunciativa carregam consigo um fenômeno de exis
-
tência, algo acontece a partir deste ato (BUTLER, 2018).
E então,
se
o objetivo
é
questionar as
bases
heteronormativas com
-
pulsórias
a
partir
da
ocupação
da
esfera
pública,
o
corpo
dotado
de
seu
discurso,
ina
esta
esfera
com
ações
performativas
que reor
ganizam,
a
par
-
tir da linguagem enunciada, situações que acionam um conjunto de novos
efeitos. Com isso, uma das primeiras formas de questionar estas bases é a
negação
do
gênero
que
nos
foi
dado
no
momento
do
nascimento.
A
rejeição
dessa binariedade culmina com o momento que confronta-se com a norma
atribuída desde quando um indivíduo nasce.
Aqui parece
que somente pela
subversão da norma
que se consegue
modicar
a
esfera
pública,
claro,
como
foi
explicado
anteriormente,
este
236
Corpo, políticas e territorialidades
é
um
ponto
de
partida
para
ramicações
extensas
na
esfera
pública,
mas,
neste
caso
especíco,
precisamos
nos
atentar
também
a
política
de
apareci
-
mento que o coletivo emprega, neste caso, a indumentária
drag
que revela
um sinal
de pertencimento
e
ação.
A
exposição do
“existimos,
resistimos”
faz deste coletivo uma parcela de “povo”, que atinge outras micro parcelas
de “povo” e assim gera reconhecimento, apontando cada vez mais para zo-
nas de fortalecimento de grupos dentro da esfera pública. E assim busca-se
“
[...] instalar em posições permanentes de poder para r
epr
esentar os des-
pr
ovidos de poder
”
(BUTLER,
2018,
p.
158).
Não
é
o
mais
forte
falando
pelo mais fraco, mas sim o menos vulnerável utilizando de outras formas
psíquicas de poder para agenciar os mais vulneráveis, e assim gerar força
conjunta e fazer valer a categoria social do corpo.
Em suma, o coletivo
drag queen Sisters of Perpetual Indulgence
,
vestidas de freira, utilizam de seus corpos de duas formas: tanto para ques-
tionar as bases da heteronormatividade compulsória e assim, chamar aten-
ção para
casos como
a
AIDS
que atingia
grande parte
da população
LGB
-
TQIA+,
tanto
como
forma
de
protesto
e
ocupação
da
esfera
pública
para
visibilizar corpos que estão vulneráveis.
É importante observar que a assembleia formada por um coletivo
drag queen teve grande relevância, tanto para a visibilidade do corpo queer
,
quanto para as formas performativas de gênero, que culminaram com uma
série de lutas, assembleias e reivindicações para toda comunidade LGBT
-
QIA+, principalmente,
para a causa
transexual. Ou
seja, é a
expansão cada
vez mais necessária do corpo-território, da imagem, que revela as batalhas
que
estão
acontecendo
aqui
agora;
“[
...] além de assinalar um campo de
forças
e
torná-lo
sensível
e
legível
a
partir
da
conituosidade
” (GAGO,
2020, p. 107). Então, se o corpo-território é
o lugar onde as batalhas acon
-
tecem,
é por
meio dele
que os
conitos de
gênero são
explorados; por
isso,
a
performatividade
torna-se
a
forma
primeira
de
expor
estes
conitos,
questionar as lógicas compulsórias e criar novos modelos de pensamento.
T
ambém se precisa pontuar
, brevemente, o que Foucault (2019)
aponta quando fala da moral que a Igreja emprega ao longo dos anos, que
prescrevia relações a partir dos
status
dos indivíduos, suas próprias apari-
ções e suas sexualidades normativas. Por esse motivo, também a vestimen-
ta empregada
pelo coletivo
torna-se um ponto
essencial na
construção per
-
formativa da assembleia na esfera pública. Conectar todas estas questões:
a performatividade que contraria as bases de gênero, o c
orpo-território
237
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
que transgride e busca novos agenciamentos e assim subverter a norma na
esfera
pública,
o
questionamento
das
formas
violentas
que
os
corpos
são
colocados pela estrutura estatal. O modo enraizado de violência faz com
que corpos feminizados não
vejam o fenômeno violento que os cerca,
mas
a diversidade dos corpos e a territorialidade que se forma, cria uma expan-
são
e
nutre
a
assembleia,
a
partir
de
uma
linguagem
comum
(GAGO,
2020,
p. 74).
Não
menos
importante,
a
assembleia
não
será
contida,
o
corpo-ter
-
ritório
assume
uma
composição
de
afetos
e
possibilidades
que
já
vem
ao
longo do tempo despossuídas de uma lógica compulsória.
Assim, “[
...] a
assembleia já está falando antes mesmo de qualquer palavra ser pr
onun-
ciada
”
(BUTLER,
2018,
p.
173),
os
corpos
já
estão
falando,
as
pessoas
queer também tem falado, o território por sua vez só exprime a voz perfor-
mativa de pessoas que não podem mais ser vulnerabilizadas.
Referências
BUTLER, J.
Gender T
rouble
: Feminism and the Subversion of Identi
-
ty
. Nova Iorque: Routledge, 1990.
BUTLER, J.
Problemas de Gêner
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239
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Cláudia Madruga Cunha
Leomar Peruzzo
C
Corpo-pesquisador:
Duas elaborações metodológicas
em arte educação
241
Proposta aqui como epígrafe, esta imagem marca a presença de
um corpo, que traz a representação, dele reunida ou desdobrada, da multi-
plicidade de sentidos que o habitam. Por isso corpo laminado, esfacelado,
corpo
do
sentido.
A
gura
ousa
explorar
certa
tonalidade
que
envolve
os
corpos ativados por um
processo de experimentação sensível em arte
edu
-
cação.
Resulta
de
uma
vivência
de
pesquisa
que
será
descrita
posterior
-
mente.
O
vermelho
intenso
que
se
apresenta
entre
signos
fragmentados,
corrompidos, dispersos
sonoriza a textualidade dos
conceitos que sugerem
possíveis
devires,
o
tom
aberto
diz
da
capacidade
da
cor
de
corporicar
e
capturar intensidades, múltiplos arranjos que se estabelecem quando se dá
atenção ao corpo-pesquisador
, corpo dos professores de arte, do
performer
professor
, aquilo que ativa à docência e ao ensino da arte.
Corpo [pesquisador], performer professor [de arte] e o ensino de
arte formam, aqui, uma tríade ou um ponto de partida para se relatar duas
experiências
de pesquisa,
uma concluída
e outra
em andamento,
que
se de
-
têm a buscar
propostas conceituais e
metodológicas que sejam insensíveis
à
atuação
do
corpo
do
artista
na
construção
de
sua
pesquisa,
na
constitui
-
ção
de sua
docência
e
na composição
de
suas
práticas
de ensino
enquanto
performer
professor
.
Entendemos
aqui
que
o
corpo
é
ltro,
registro
e
ex
-
Imagem 1 -
Por cor no corpo.
Fonte -
Acervo dos autores, 2019.
64 -
Essa fotograa
é parte
do acervo
que agrupa
dos achados
de uma
pesquisa de
mestrado, realizada
no ano
de 2018,
no
Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Regional de Blumenau/FURB, intitulada: Mediação Cultural
no Museu: ressonâncias da experiência estética no corpo [em performance] de professores de arte.
64
242
Corpo, políticas e territorialidades
plorador
de
sensibilidades,
é
verbo
e
extra-verbo;
é
linguagem
e
afasia,
é
visual
e é
capaz de
se
invisibilizar
,
tanto na
construção
de sua
arte como
na
criação de linguagens corpóreas e extracorpóreas, com as quais estabelece
os
modos
de
realização
de
suas
experimentações
didáticas
no
ensino
da
arte.
Ao pinçarmos essa imagem retirada de processo do qual retomamos
provocações
estéticas
já
experimentadas,
que
produziram
dados
em
per
-
curso de formação docente, envolvido com as
Artes V
isuais.
Este
artigo
traz
duas
experiências
de
pesquisa
em
arte
educação
que
buscaram
metodologias
alternativas,
para
ns
de
construir
processos
investigativos
que
considerassem
a
subjetividade
e
o
corpo
do
professor
artista e pesquisador
, como elementos que participam desse processo. O
corpo
do
professor
de
arte
é
instância
sensível,
corpo
pesquisador
,
que
participa ativamente e atualiza constantemente seu modo de compreender
,
sensibilizar
, manifestar e ensinar em arte educação.
As intencionalidades
de
um
corpo
expressam
sensibilidades,
expõem
sentidos
que
tatuam
sua
pele,
inscrevem
nela
a
materialidade
do
extra
sentido,
forma
e
performance
capazes de expressar e criar linguagens.
Sim, o corpo fala! E o que
ele diz
não
se
quer
ver
codicado
ou
escrito
e
reunido,
por
meio
de
categorias
e
registros analíticos.
A
imagem acima resulta de um processo de pesquisa que quis pro-
vocar
múltiplos sentidos,
explorar
a sobreposição
de
intensidades, criadas
a partir da mutação da captura de um corpo intenso em performance arte. O
movimento da
imagem quer
comunicar ao/à
leitor/a à indeterminação
com
a qual nos defrontamos, quando se pensa a relação corpo e pesquisa da e na
docência em performance arte.
T
razemos abaixo
duas
concepções metodológicas
que não
ignoram
a
interferência
do
corpo
do
professor
como
produtor
de
arte
e
de
sentido,
que opera
transversalmente na
forma de
sua docência
entendendo-o como
parte
de
uma
subjetividade
doadora
de
sentidos.
São
dois
modos
de
fazer
pesquisa,
a
A/R/T
ograa
e
a
cartograa, que
atuam
permitindo que
o
corpo
do
performer
professor
seja
produto e
produção
de
sentido
nos
movimen
-
tos
propostos
como
atos
de
pesquisa.
E
sendo
o
corpo
em
sua
expressivi
-
dade elemento
que
compõe a
pesquisa,
convocá-lo para
atuar
no processo
da investigação,
convida simultaneamente a
uma superação dos dualismos
das tradições
metodológicas que
vem
desde Descartes
e separam
sujeito e
objeto, alma e corpo, espírito e matéria.
Nosso objetivo com tais metodologias
é apontar caminhos para que
243
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
a pesquisa
em arte educação
vá além
da codicação dos
gestos, da descri
-
ção
reducionista
que
se
costuma
fazer
de
muitos
dos
fenômenos
vividos
em
arte
educação.
São
mutações
que
vão
se
apresentando
de
modo
ex
-
perimental tateando processos menos rígidos para falar da presença, dos
cenários, das linguagens entre os quais um corpo pesquisador fala, pensa
e
se
expressa,
manifestando
suas
sensibilidades
e
inquietações.
T
razemos
abaixo
duas
experiências
investigativas
que
permitem
em
sua
concepção
teórica
e
prático-metodológica
a
criação
de
modos
de
ação
de
pesquisa
criativa capazes
de expressar
e envolver o
corpo do
professor no processo
de criação
da pesquisa
em arte educação.
Uma das
experiências de pesqui
-
sa, já concluída (cf.
PERUZZO, 2018), fez uso da
A/R/T
ograa (CAR
V
A
-
LHO; IMIANOVSKY
,
2017), colada
à Pesquisa
Educacional Baseada
em
Arte
/
PEBA;
e
a
outra,
em
andamento,
vem
se
utilizando
da
cartograa
ou
da
pesquisa
rizomática.
Ambas
as
metodologias
envolvem
processos
de análises
experimentais capazes
de exibilizar modos
investigativos que
não ignorem as manobras intuitivas e criativas de um corpo-pesquisador
.
A
Experiência com
A
A/R/T
ograa
O
procedimento
de
pesquisa
intitulado
A/R/T
ograa
compõe
um
tipo
de
análise
em
Educação
Baseada
em
Arte/PEBA,
que
no
entender
de
Carvalho
e
Imianovsky
(2017),
pode
se
apresentar
como
abordagem
me
-
todológica
que
permite
a
adoção
de
processos
criativos
e
artísticos,
pro
-
vocações
estéticas,
para
pesquisar
e
compreender
as
questões
ligadas
à
educação
e
arte. A
A/R/T
ograa
surge
da
oportunidade
de
abordagem
do
corpo
do
próprio
pesquisador
,
uma
vez
que
o
corpo
do
pesquisador
não
é
esquecido,
ignorado
ou
somatizado
durante
a
vivência
da
pesquisa,
visto
que
esta
metodologia
compreende
que
investigar
é
uma
prática
viva
(cf.
DIAS;
IR
WIN,
2013).
Logo,
através
de
compreensões,
experiências
e
re
-
presentações artísticas e textuais, o sujeito e a forma da investigação estão
em
constante
troca. As
questões
vividas
pelo
professor
performer
quando
experimenta
práticas e
poéticas artísticas,
tornam-se
nesses atos,
modos de
aperfeiçoar e
até mesmo criar
novos formatos pedagógicos. O
corpo, ativo
na
experiência
educativa,
se
faz
componente
extra-material,
permeado
de
sentido,
acompanhado
do
que é
de outras
dimensões
do fazer
artístico, per
-
meia a pesquisa educacional, dá retornos de sensibilização ou de bloco de
sensações
e
orienta
a
escrita
que
expressa
o
vivido
(CAR
V
ALHO;
IMIA
-
244
Corpo, políticas e territorialidades
NOVSKY
, 2017).
Podemos dizer que a
A/R/T
ograa é uma metáfora para estabelecer
o entrelaçamento dos planos de artista (
artist
),
pesquisador
(
r
esear
cher
),
professor (
teacher
)
e
“graa”
de
grasmo,
visualidade
ou
modo
de
re
-
presentar
conhecimento
em
arte
(CAR
V
ALHO;
IMMIANOVSKY
,
2017;
DIAS;
IR
WIN,
2013;
HERNANDÉZ,
2013;
OLIVEIRA,
2013).
T
razemos
abaixo uma imagem
que resulta da experiência
que fez uso dessa
metodo
-
logia.
Imagem 2 -
Por cor no corpo.
Fonte -
Acervo dos autores, 2019.
A
imagem
apresenta,
ainda
que
parcialmente,
o
território
de
expe
-
rimentação
no
Museu
de
Arte
de
Blumenau.
Traz
além
de
um
fragmento
de
uma
obra
de
uma
artista
local
que
foi
exposta
a
oito
professores
de
arte pertencentes a rede municipal da cidade na qual se localiza o museu.
A
imagem
reproduz
um
momento
sensível
de
conexão
entre
o
corpo
dos
professores e
o corpo
como objeto
de arte, que
é recortado
e ressignicado
por Elke
Hering .
A
obra
desta artista foi
elemento escolhido
para sensibi
-
lizar
participantes
de
um
estudo,
que
através
de
um
conjunto
de
práticas
descritas
abaixo,
quis
sensibilizar
a
relação
do
corpo
do
professor
com
o
ensino de arte.
65
-
A
obra
possui
título
de
Memória
Arqueológica
e
foi
criada
em
1990.
Elke
Hering
nasceu
em
1940
na
cidade
de
Blumenau
e,
tendo
oportunidade
de
conhecer
e
praticar
arte,
buscou
formação
no
exterior
para
então
consolidar
uma
trajetória
artística
versátil,
modernista,
marcada
pela
experimentação
de
diversos
materiais
e
técnicas.
Seu
falecimento
precoce,
em
1994,
deixou
um
extenso
legado
na
escultura
contemporânea
e
na
pintura
que
dialoga
com
o
movimento
modernista brasileiro.
65
245
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
A
imagem
serve
para
mostrar
um
corpo
que
visualiza
outro
cor
-
po, tendo por mediação o resultado de um processo artístico que elaborou
sensações,
fragmentando
e
recortando
o
próprio
corpo
em
obra
de
arte.
T
raz
uma
obra
de
arte,
em
seu
modo
de
presença,
fazendo
convívio
com
os corpos e afetos dos professores que participaram de uma proposta de
formação experimental.
A
obra que
aparece na imagem é
uma composição
em
gesso,
presa
em
caixa
retangular
de
metal,
em
que
a
artista
fez
uso
de
diversas
partes
de
seu
corpo
tornando
objetos
que
marcam
as
presenças
das
formas vistas.
O encontro
com a
arte de
Hering (cf. PERUZZO,
2018), se
realizou
como
uma
das
atividades
organizadas
para
ns
de
produção
de
dados
em
uma pesquisa
que fez
uso da
A/R/T
ograa, para tratar
de uma proposta
de
atualização
docente. A
abordagem
pressupôs
a
captura
de
novos
sentidos
na
produção
de
conhecimento
em
arte
educação
e
se
desenvolveu
vincu
-
lada
a
Pesquisa
Educacional
Baseada
em
Arte
(PEBA).
Próxima
à
pers
-
pectiva de
poesia
visual, buscou
provocar
afetos sensíveis
entre
os corpos
(professores
e
pesquisadores)
que
vivenciam,
criam
e
apreciam
a
obra
de
arte para fazer desta o conteúdo que permeia sua didática.
Ambas,
A/R/T
ograa
e
a
Pesquisa
Educacional
Baseada
em
Arte
(PEBA),
adotam
a
arte
como
principal
território
para
a
produção
de
co
-
nhecimento
em
arte
educação.
Por
esse
motivo,
o
envolvimento
do
corpo
do pesquisador com a criação artística marca presença nesse percurso de
investigação.
As
oscilações
do
sensível
que
atuam
na
esfera
corporal
do
professor e
atravessam o que
ele tem
para ofertar como
educação em
arte,
em
sua
espontaneidade,
denem
os
rumos
sempre
exíveis
da
geração
de
dados, da discussão conceitual, que reunidas dão forma a dimensão criati-
va do ato pesquisar em/com a arte.
A
experiência
aqui
retomada
se
fez
em
2018,
com
o
auxílio
da
Se
-
cretaria
Municipal
de
Educação
de
Blumenau.
Por
meio
de
um
aplicativo
eletrônico,
disponível
na
página
da
SMED/Blumenau,
se
selecionou
oito
professores
de Arte
que
atuavam
nas
escolas
públicas
da
cidade
e
região.
O processo de
seleção começou como um
convite disponível em grupo de
trabalho
administrado
pela
coordenação
do
componente
curricular
de
Arte;
ou
seja,
a SMED
facilitou
a
divulgação
desta
ação e
os
professores
foram
convidados
a discutir
as ressonâncias
entre
a experiência
estética
e o
corpo
do
prossional
que
atua
na
educação
com
o
componente
arte.
T
ais
rever
-
berações
implicavam
em
um
processo
de
mediação
cultural
que
se
daria
246
Corpo, políticas e territorialidades
no
museu
local.
Em
resumo,
a
proposta
teve
como
objetivo
sensibilizar
o
corpo
desses
professores,
através
de
uma
experiência
estética
organizada
em
três
momentos:
i)
o
primeiro
consistia
em
aproximá-los
do
Material
Educativo
Elke
Hering;
ii)
o
segundo,
em
provocá-los
a
escrever
cartas
para
esses
corpos
visuais
e;
iii)
o
terceiro
e
último
momento,
em
discutir
e
descrever
como
essa
obra
que
expõe
partes
do
corpo
da
artista
convoca
a
uma
performance
que
desdobra
essa
obra/corpo
em
outras
criações
per
-
formáticas.
A
ideia
de fazer
da arte
Elke Hering
um material
educativo que en
-
volve o corpo dos docentes no processo investigativo, surgiu da prática de
estágio
em
Artes V
isuais
no
Ensino
Médio,
realizada
durante
a
graduação
em
Artes
V
isuais
e
tornou-se
efetivamente
projeto
de
pesquisa
durante
o
Mestrado em Educação (PERUZZO,
2018). Os professores foram
instiga
-
dos
a estabelecer
relações
com
o
material e
a
selecionar
uma das
imagens
para realizar uma aproximação descritiva e ao mesmo
sensível. Neste mo
-
mento,
as
percepções
dos
docentes
foram
registradas
em
fotograa
e
em
escritas.
As
imagens
geradas
durante
a
ação
compuseram
o
relatório
da
pesquisa
.
Entre
essas
imagens,
Peruzzo
(2018)
registrou
o
próprio
corpo
por meio
de
fotograa e
as
guras geradas
foram editadas
para
criar visu
-
alidades
que
compõem
a
poesia
visual
do
relatório.
Nesse
sentido,
anali
-
samos esta experiência
de pesquisa como uma
análise vinda de um corpo
-
-pesquisador
.
Foi
uma
experiência
singular
,
na
qual
oito
professores
da
rede
muni
-
cipal de educação participaram. Esse grupo era formado por sete mulheres
e
um homem,
cujas
idades
variavam entre
29
e
59 anos.
Possuíam
forma
-
ção
acadêmica
diferenciada,
compondo,
quando
reunidos,
uma
diversida
-
de
artística
interessante.
Um
deles
era
graduando
do
curso
de
licenciatu
-
ra
em Artes
V
isuais,
outras
duas
possuíam
graduação
em
música
e
cinco
em Artes V
isuais.
Um
dos
docentes
atuava
como
professor
em
projeto
de
musicalização
e
outros
sete
professores
atuavam
na
rede
de
educação
de
Blumenau.
O
objetivo
dessa
ação
de
formação
cultural
foi
o
de
provocar
deslocamentos
sensíveis
no
corpo dos
professores docentes,
para
que esses
corpos atuassem com
as dimensões e sensações
que, em contato com arte,
mobilizavam-se
constantemente,
embora
muitas
vezes
passassem
desper
-
cebidas.
66
- Aqui,
nesta
iniciativa,
apresentaremos
algumas
das
imagens
que
compõem
a
pesquisa
e
parte
dos
registros
das
in
-
tensidades encontradas.
66
247
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
O
começo,
meio
e
m
dessa
atividade
com
os
professores
de
arte
envolvia
o
corpo
e
os
dados
colhidos
dessa
experiência
resultaram
em
performances
visuais
e
narrativas
corporais.
Os
performers
professores
desenvolveram
as
seguintes
ações:
tomaram
conhecimento
do
Material
Educativo; descreveram
a obra de
arte visualizando uma
imagem da obra;
escreverem uma carta
para o seu corpo;
apresentaram a mesma obra
posta
em
exposição;
criaram
performances
com
as
cartas;
expuseram
e
discuti
-
ram o percurso.
Cada
professor
escreveu
uma
carta
direcionada
à
concepção
de
corpo
que
o
perpassava
e
após
a
divisão
do
grupo
em
dois,
se
realizou
a
socialização
ou
a
partilha
do
conteúdo
das
cartas.
Após
o
contato
com
essas
impressões
sobre
o
corpo,
ainda
foram
desaados
a
criar
duas
per
-
formances
em
sequência.
T
oda
essa
produção
performática
foi
registrada
em vídeo. Do início ao
m do percurso, os professores eram convidados
a
expressar
impressões
sobre
a
experiência
do
próprio
corpo
em
contato
com
outra arte
corpo,
a performance,
e suas
conexões
vinham e
retornavam ou
reverberavam em corpo-pesquisador
, corpo
que não se separa
de certa do
-
cência
que
estabelece
com
arte,
sendo
ao
mesmo
tempo
artista,
professor
e pesquisador
.
T
razemos
dois
registros
de
fala
vindos
de
duas
das
cinco
parceiras
dessa experiência que movimentou a tríade
antes exposta: o corpo-pesqui
-
sador
,
o
performer
professor
e
a
docência
em
arte.
Uma
das
professoras
de arte
disse:
“[...] a
gente
teve uma
vivência
e a
gente
experimentou, nos
colocamos
a
fazer”;
outra
expressou
“E
essa
parte
de
a
gente
olhar
,
de
ter
olhar é... [pausa] para si mesmo, para o corpo porque até no nosso corpo
ali
nós
questionamos
um
pouquinho
[...]”
(PERUZZO,
2018).
Estas
ex
-
pressões
nos
conduzem
a
pensar
que a
arte
assumiu
a
perspectiva
de
poe
-
sia
visual,
provocando
afetos
sensíveis
em
linhas
de
intensidade
entre
os
corpos (professores
de arte) e
a obra de
arte. O contato
com uma obra que
envolvia o corpo como instância de tensão permitiu sensibilidades e cone
-
xões extracorporais que desencadearam matérias
visuais e de pensamento,
permeadas de vibrações e percepções singulares.
T
odo
esse
processo
se
realizou
orientado
pela A/R/T
ograa
e
pela
e
Pesquisa
Educacional Baseada
em
Arte
(PEBA)
que,
em
seus
modos de
compreender
e
incentivar
outras
formas
de
pesquisa
em
arte,
pressupõe
uma
abordagem conceitual
que
se relaciona
com
uma
estética pedagógica
em
arte
tal
que
possibilite
a
exploração
de
efeitos
de
uma
pesquisa
viva,
248
Corpo, políticas e territorialidades
produtora
de
sentidos
e
criadora
de
novos
conhecimentos
em
arte
educa
-
ção. No contato com a obra de arte,
as conexões desencadearam experiên
-
cias
de
pensamento,
vibrações
e
percepções
singulares,
que
se
expressam
no
corpo do
pesquisador e
reverberam
com maior
ou
menor intensidade
na
forma como
esse
or
ganiza
e
dispõe de
conteúdos
e práticas
que,
vibráteis,
compõem sua arte educação.
Da
A/R/T
ograa à Cartograa –
Reverberações em um Corpo-Pesquisador
A
experiência
de
pesquisa
or
ganizada
em
2018
através
da
meto
-
dologia
da
A/R/T
ograa
deixou
abertas
lacunas
que
buscam
agora
ser
preenchidas
por
novo
processo
de
pesquisa,
que
ousa
se
aproximar
das
análises
deleuzianas-guattarianas
para
ns
de
sustentar
novos
modos
de
apropriação do corpo do pesquisador e outras possibilidades de percurso
epistêmico
e
metodológico
para
criação
de
uma
pesquisa
em
arte
educa
-
ção.
Entendendo
que
esse
corpo, envolve
e
movimenta
intensidades
artís
-
ticas e participa dos procedimentos nos quais uma didática artística produz
reverberações,
explora
na
investigação
nuances
éticas
e
estéticas
e
outros
modos
de
produção
de
sentidos.
Esta
segunda
investigação
em
processo,
vem
se
desenvolvendo
como
parte
de
um
percurso
de
doutoramento,
que
entre
outras
atividades
de
teor
empírico
e
experimental,
propôs
até
este
momento,
a
escrita
de
cartas
ao
corpo,
entendendo
que
tal
graa
aciona
uma zona de produção de sentido capaz de manifestar
, por meio da escri-
ta,
as
intensidades
de
um
corpo
pesquisador
outras
atividades
de
cunho
experimental,
vem
sendo
organizadas,
ocinas
estão
sendo
propostas
e
tensionarão
um
corpo
pesquisador
intensivo,
um
corpo
CSO
pesquisador
,
serão desenvolvidas em 2022.
Contudo,
a
necessidade
de
isolamento
social
provocada
pela
pan
-
demia
2020
e
2021,
nos
obrigou
a
quase
total
paralisação
das
atividades
de
ensino,
pesquisa
e
extensão. A
dinâmica
do
distanciamento
trouxe
ins
-
tabilidade
aos
modos
de
viver
e
sobreviver
.
Esse
movimento
de
pausa
se
associa
ao
descaso
com
a
educação
e
com
a
cultura,
exercido
pela
gestão
67 - O
projeto de extensão EXPERIMENT
AÇÕES COM
O RIZOMA: cartografar
, pensar e criar
um corpo intensivo, or
-
ganizado e proposto
pelo Grupo Rizoma/UFPR, colaboradores
e convidados está em desenvolvimento
desde 2020, nesse
ano, segundo semestre já realizou cinco ocinas
67
249
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
do Estado brasileiro que acua o meio social e o fragmenta no desamparo
econômico
e
sanitário,
trazendo
desmobilização
à
formação
prossional
em
todos
os
níveis.
V
imos-nos
temporariamente
impedidos
de
ativar
uma
experimentação docente que
permitisse, no ambiente
institucional no qual
se
desenvolve
a
pesquisa,
a
troca
de
novas
sensibilidades,
assim
como
o
contato
com
novas
linguagens
e
percepções
do
corpo
pesquisador
,
tradu
-
ções
que
podem
surgir
quando
um
professor
performer
movimenta
sua
arte
educação.
Logo,
essa
pesquisa
pelos
motivos
acima
expostos,
vem
sendo
te
-
cida através de estudos
que atravessam o campo da arte educação,
quando
tenciona a tríade corpo [pesquisador], performer professor [de arte] e o
ensino
de arte,
nos arranjos
de uma
composição teórica
e
postura losóca
que
vem
de
Deleuze
e
Guattari
(1995).
Estes
autores
no
desenvolvimento
de um pensamento rupturante ousam rachar com as bases da racionalidade
moderna alicerçadas
na raiz
iluminista;
ao mesmo
tempo em
que rompem
com
as
concepções
metodológicas
subjacentes
à
virada
linguística,
espe
-
cialmente as propostas pelo estruturalismo,
desenvolvidas na segunda me
-
tade do século XX.
Ao
se
aproximar
deste
pensamento
plural
e
intenso,
desenvolvido
por estes
pensadores, a proposta
de um corpo-pesquisador
revela-se próxi
-
ma
ou em
diálogo
com
uma lógica
do
sentido
(DELEUZE, 1974).
Lógica
que começa uma desconstrução dos contornos
operativos, com os quais se
costuma
representar
um
corpo
ético-estético
e
político,
heteronormativo,
branco
e
cristão,
corpo
or
ganizado
pelas
representações
do
capital,
que
já
não
funcionam
mais,
enquanto
e
nas
instituições
de
connamento.
Es
-
tamos
vivendo
em
uma
sociedade
de
controle,
dizem
Deleuze
e
Guattari
(1997),
cujos modos
de
or
ganização
social
não funcionam
mais
em con
-
namento,
mas
através
de
um
controle
contínuo
das
formas
de
expressão
e
comunicação (NEGRI, 2019).
A
pandemia da Covid-19 intensicou
este controle. Professores, ar
-
tistas, performers tiveram que se reinventar
, criar
novas formas de expres
-
sar seu ser
, sua arte, sua pesquisa, sua sala de aula – ao passo que se encon-
travam restritos
às limitações
das plataformas
digitais, dos eletrônicos,
das
câmeras e das redes de internet.
Segundo Deleuze e
Guattari (1997) as formas
de controle social, na
sociedade atual, funcionam em espaço aberto, espaço ocupado por agen-
ciamentos
coletivos e
por
máquinas,
que nada
mais
são
que formas
de
or
-
250
Corpo, políticas e territorialidades
ganização da comunicação, as quais controlam os modos de pensar e do
agir das pessoas e o fazem em conjunto com outras formas que se oferecem
a este
contexto, ora
de resistência ora
de delinquência.
Deslocando a
A/R/
T
ograa
para
uma
concepção
de
corpo
artauniana
(cf
AR
T
AUD,
1993),
Deleuze e Guattari trazem
a noção de Corpo
Sem Ór
gãos/CSO,
corpo que
não se
permite, divide-se
em partes, corpo
que não se
rotula por
categorias
analíticas ou psicanalíticas, corpo esquizo que atualizado em corpo-pes-
quisador
refere-se
mais
a
processo
do
que
a
projeto
de
pesquisa;
diz
mais
respeito
às singularidades
do
que ao
sujeito, quando
traduz
a composição
e
a
or
ganização
das
atividades
artísticas
- com
as
quais
propõe
estratégias e
modos de participação - que não o enclausuram no sistema aberto, sistema
em que funciona e opera a máquina abstrata do capitalismo, a qual o estru-
turalismo conseguiu apenas revelar as formas de enunciação, os conjuntos
discursivos
e
a
encarnação
de
territórios
existenciais,
adequando
o
que
é
vivo as ordens do abstrato.
Nesse atravessamento
sem imitações,
sem receita, o
devir losóco
mapeia, pinça, amplia passagens, denuncia agenciamentos, perpassa de um
ponto
a
outro
em
movimentos
innitos,
que
agora
atuam
em
um
corpo-pes
-
quisador
.
Corpo
que
é
ato
de
criar
,
marca
presença,
provoca
velocidades
es
-
téticas
e
pode
ter
a
potência
de
transmutar
movimentos
de
isolamento
em
possibilidade
de
vida.
As
imagens
sobrepostas
substituem
a
presença
do
corpo e as forças, afetos e o calor de outro corpo que foi substituído por
telas.
A
imagem substituiu a presença, as forças, os afetos e o calor do ou-
tro
corpo.
Cor
pó,
por
cor
no
corpo.
Corpo
tela,
corpo
texto
que
pode
ser
visto,
mas
permanecer
atroado.
Corpo
cor
denida
pelos
pixels
e
pelos
enquadramentos
das
câmeras.
Corpo
sons,
palavras
e
gestos
compartilha
-
dos,
roubartilhados.
Corpo
que
se
desfaz
da
própria
presença,
a
extirpa,
engole,
planica,
a
traz
através
de
dispositivos
eletrônicos
e
de
outros
la
-
birintos
do
capitalismo.
Corpo
submetido
ao
isolamento
ânsia,
desfoca,
borra,
tenta
movimentar
-se
pelos
espaços
vazios
da
casa
e
retornar
a
ser
corpo do sentido!
Na primeira pesquisa narrada, o corpo-pesquisador
, enquanto ele-
mento partic
ipativo da
análise investigativa,
traçou um
percurso que
partia
de
uma
obra
artística
que
sensibilizava
algo
sobre
um
corpo
fragmentado
e objetivava
movimentar as estéticas e
sensibilidades que se apresentavam
inoperantes
ao
performer
professor
.
T
rouxe
para
tanto
o
movimento
das
251
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
guras
e
imagens,
percorreu
a
arte
escultórica
de
uma
artista
local,
or
ga
-
nizou encontros
que resultaram em
performance arte no
objetivo de ativar
um corpo do sentido desdobrado do performer professor
.
Na pesquisa atual em processo, o corpo como elemento e plano de
composição e de produção de saberes, faz de si um mapa, composto por
linhas
que
o
explodem
como
linguagem. Ainda
parte
desdobrada
do
pro
-
fessor performer
, esse corpo-pesquisador pretende reformar trajetos, des
-
montar
normatividades,
remover
estagnações,
xidezes
de
sentidos
que
enrijecem
as
expressões
e
experimentações,
que
vindas
do
sentido,
povo
-
am
esse
corpo
e
sua
produção
pré-pessoal.
Libertar
as expressões
e
escapar
dos procedimentos
lineares que
enquadram uma
arte educação
envolve li
-
bertar
um
corpo
artesão,
criador
de
processos
mutantes,
que
o
revelam
para
além
de
uma
matéria
objetiva
e
uma
forma
subjetiva
e
o
lança
para
fora
das
linhas que reconhece limítrofes.
O corpo pesquisador se faz mapa ou rizoma, no qual o pensamento
e a materialidade do corpo são dados que se deslocam, mer
gulhado em
sensações,
em
percursos
que
podem
ser
sempre
reabertos
desmontáveis,
conectáveis,
reversíveis,
construindo
e
desconstruindo
relações
que
podem
ser
modicadas,
ter
múltiplas
entradas
e
saídas
para
inúmeras
linhas
de
fuga,
de
sobrevoo
ou
de
composição
(DELEUZE;
GUA
TT
ARI,
1995b).
T
razemos,
no
primeiro
plano
de
sobreposições
desse
rizoma,
resultados
inacabados ou
dados não xos, que
não pressupõem revisitar
os efeitos re
-
gistrados, como produto de uma sensibilização artística, colhidos em uma
pesquisa acadêmica em movimento.
A
cartograa
explora
para
além
da A/R/T
ograa
um
corpo
pesqui
-
sador
, que
revira
a
postura do
professor-performer
,
do
artista pesquisador
,
quando
busca
um
mapeamento
dos
modos
de
existência
e
de
resistência
que
envolve planos
de
composição
dos afetos
e
de
outros elementos
hete
-
rogêneos
ou de
uma heterogenética,
política do
pensar
. “Um
plano de
dife
-
renças e plano do diferir frente ao qual o pensamento é chamado menos a
representar do que a
acompanhar o engendramento daquilo que ele
pensa”
(P
ASSOS; KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015, p. 10).
É
preciso
revelar
que
a
cartograa
é,
antes
de
qualquer
coisa,
uma
postura estética de produção de conhecimento, que atua, conforme propu-
seram
Deleuze e
Guattari (1995),
buscando desvelar
os regimes
de poder
e
saber
, que
compõe e
decompõe a
subjetividade,
com o
intuito de
entender
as maneiras
com as
quais hoje reinventamos
as formas de
inteligência e
da
252
Corpo, políticas e territorialidades
sensibilidade, que
estruturam o
mundo contemporâneo. Como
a subjetivi
-
dade
capitalista
que
nos
ronda
“é
a
mais
vertiginosa
devido
a
seu
vazio,
sua
banalidade, sua vulgaridade, seu
estado de coisas demasiadamente
prosai
-
co”
(NEGRI,
2019,
p.
133),
é
preciso
romper
com
certa
imobilização
do
pensar
-sentir
.
A
cartograa
permite um
corpo-pesquisador
intensivo,
que se
esta
-
belece tal um bulbo ou um rizoma, que aciona uma proposição conceitual-
-metodológica com a
qual forma um
plano de linhas
intensas e intensivas,
que
se
desdobra
em
identicar
territórios
subjetivos
maquinados
por
uma
estética
do
capital
e,
na
busca
de
subverter
uma
arte
serviçal,
pretende
ousar práticas desterritorrializantes, que alcancem um corpo-pesquisador
,
corpo de um pesquisador performer professor
, que se reterritorializa para
criar novas
congurações, dinâmicas
e
experimentais do
ensino da
arte.
A
cartograa
opera
metodologia
desejante,
com
a
qual
um
corpo-pesquisa
-
dor experimenta
percursos,
processos de
criação
e recriação
das conexões
entre
redes,
e
é
identicado
como
um
rizoma
(CUNHA,
2019;
P
ASSOS;
KASTRUP; ESCÓSSIA, 2015).
O
rizoma
permite
criar
um campo
de
interconectividade
entre
con
-
ceitos que operam na medida em que os corpos interagem com as proposi-
ções
de
criação
de Arte.
A
principal
base
teórica
do
plano
rizomático
está
na
losoa
da
diferença,
a
partir
da
obra
de
Gilles
Deleuze
na
parceria
com
Félix
Guattari.
Estas
vozes
de
uma
losoa
prática
baseada
na
vida
pro
-
vocam
rasgos
nas
tradições,
oferecem
reverberações
intensas
e
instigam
um
pensamento
que
explora
as
éticas
e
estéticas
para
a
criação
de
corpos
sensíveis
e
vivíveis.
Com
essas
superfícies
provocadoras
das
velocidades
de
pensamento,
a
losoa
de
Deleuze
e
Guattari
busca
explodir
com
os
padrões
da
tradição
para
que
as
linhas
de
composição
desencadeiem
di
-
álogos,
conexões
e
innitas
potências
com
as
áreas
da
Arte
(DELEUZE;
GUA
TT
ARI, 1996).
Esse
corpo-pesquisador
se
envolve
com
a
Performance
Arte
para
traçar
um
plano
de
conexões
e
linhas,
que
forma
um
território
do
qual
pode
emergir
encontros
com
outros
corpos
que
investigam
e
experimentam
novos
sentidos
em
traçados
colaborativos.
Corpos
em
movimento
disso
-
nantes
e
ressonantes,
que
escrevem
cartas,
deslocam
as
estruturas
da
lin
-
guagem
em
rasgos
performativos
que
quebram
noções
espaço-temporais,
que condicionam
o
corpo à
determinada normatividade.
Como
uma tríade
criadora, que se distinguem e ao mesmo tempo que se assemelham, com-
253
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
põem,
transcriam,
rizomatizam-se
para
provocar
as
congurações
de
um
corpo contemporâneo que grita por expressividade da vida.
Um
corpo,
meu
corpo,
corpo
estético
desta
segunda
pesquisa,
no
de
-
sejo
de
conectar-se
com
a
losoa
deleuziana-guattariana,
caminha
rumo
ao
desconhecido.
Corpo
que
vem
sendo
ativado
pela
performance
arte
e
com
ela,
com
essa
estética
e
prática
reorientadas
losocamente,
tenta
romper com os modos de pensar autoritários que interceptam sua subjeti-
vidade docente.
Busca uma
expressão corporal
nômade e
rizomática, com
a qual a Performance
Arte possa surgir pressupondo o corpo como ator
,
que autônomo na construção
de sua presença, não se restringe à
materiali
-
dade
física
nem
às estruturas
subjetivas socialmente
propostas.
As criações
artísticas e os
estudos que abarcam a Performance
Arte, suas noções
e lin
-
guagem artística, a consideram um aporte de saberes que se estabelece em
três campos distintos,
a saber: as
Artes, a
Antropologia e a Filosoa. Essas
áreas
de
conhecimento
(ICLE,
2010)
podem
se
apresentar
como
planos
sobrepostas em uma
abordagem metodológica cartográca, compondo
um
caráter interdisciplinar e indisciplinado ao percurso de pesquisa.
A
carto-
graa
permite
que
o
percurso
de
pesquisa
se
construa
e
se
reconstrua,
na
medida
em
que o
caminho
é trilhado,
assim as
diversas abordagens
concei
-
tuais exigidas
pelos estudos
da performance
podem convocar novo
arranjo
ao corpo-pesquisador
.
A
cartograa
dá forma ao
conteúdo dessa segunda
pesquisa e
dese
-
nha
um
plano
de
imanência
no
qual
se
organiza
a sobreposição
de
multipli
-
cidades
que
se
fazem
entre
losoa
(deleuziana-guattariana),
performan
-
ce
arte
e
a
educação.
Esse
plano
de
conexões
próximo
a
uma
artistagem,
conceito
proposto
por
Corazza
(2006),
busca
reunir
as
dimensões
de
uma
estética-ética, que junto a uma política acionam um pensar a ação docente
como uma produção de arte e processo de criação de sensibilidades em de-
vir
.
O
agir
docente
como
ação
inventiva
persegue
o
invisível,
o
impensável,
o
indissociável
em
experimentação
artística
e
corporal,
ousamos
que
seja
o vivido em experiência em sua produção de sentido (CORAZZA, 2006).
Outros
conceitos
que
demarcam
a
vizinhança
que
se
arranja
nessa
pesquisa
cartográca
são
o
devir
,
o
corpo
sem
órgãos
e
a
Performance
Arte.
Deleuze, junto
a
Guattari, ao
criar conceitos
para
compor uma
loso
-
a experimental, buscou
nomenclaturas em outras áreas do
conhecimento.
Ambos
rompem com
as
margens do
pensamento
losóco
na intenção
de
atualizar
esse
pensar
e
povoá-los
de
novos
sentidos,
Deleuze
(1992),
es
-
254
Corpo, políticas e territorialidades
pecialmente,
faz uso
de
muitas
das
criações
vindas
de várias
especicida
-
des artísticas, chama de intercessores esses elementos que pinça em outros
campos
e
passam
a
operar
como
disparadores
de
intensas
experiências
de
pensamento.
A
intenção
é
aproximar
a
Performance Arte de
certa
irregularidade
e
espontaneidade
do
devir
,
entendendo
que
o
devir
e
o
ato
de
performar
estão
em processo
constante
de imanência,
são
o que
está
sempre em
vias
de
ser
,
vivido
ou
percebido,
que
supõe
ultrapassar
a própria
realidade
que
de algum modo condiciona sua efêmera existência.
Conclusões de uma pesquisa em pr
ocesso
Apresentamos
neste
artigo
dois
movimentos
de
pesquisa,
duas
abor
-
dagens
metodológicas,
que
podem
dar
suporte
à
criação
de
investigações
que
se
debrucem
em
processos
e
produtos
artísticos
com
a
nalidade
de
organizar
a produção
de conhecimento
em
arte e
educação.
A
A/R/T
ograa
busca ter como estratégia acompanhar a produção de processos e produtos
artísticos,
ações
de
natureza
estética,
que
associadas
a
experiências
que
envolvem o
ensino da
arte, exigem
que sejam
investigados, problematiza
-
dos
e
compreendidos
como
experiências
educacionais
sensíveis. (CAR
V
A
-
LHO; IMMIANOVSKY
, 2017, p. 226). Enquanto a
cartograa opera com
o
“entre”,
áreas,
campos,
estados
de
ser
e
suas
conexões,
a
A/R/T
ograa
na esfera dos procedimentos de pesquisa atua na e pela arte, delimita seu
território
investigativo
às
pesquisas
que
traduzem
questões
entre
a
arte,
docência
e
experiências
artísticas.
Ambas
oportunizam
a
experimentação
de
linguagens
artísticas,
mais
espontâneas,
ações
de
um
corpo
pesquisador
.
A
A/R/T
ograa,
porém,
não
se
preocupa
em
romper
com
os
dualismos
da
modernidade
e com
outros elementos
que
compõem a
tradição da
pesquisa
cientíca, partilhados na pesquisa-ação.
O
desao
de
pesquisa
atual
que
faz
uso
da
abordagem
cartográca
é fazer funcionar um corpo pesquisador que foi deslocado de si no ato de
olhar
para
a
composição
das
subjetividades
que
atuam
no
performer
pro
-
fessor
.
Corpo
que
se
observou
em
devir
,
em
um
estado
geográco
inde
-
nido,
uma vez
que
os devires
são
geograas, orientações,
direções;
há um
devir
losóco que
atravessa um
corpo pesquisador
e sua
pesquisa
em arte
e educação.
255
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Referências
AR
T
AUD,
A.
O teatro e seu dupl
o.
Tradução:
T
eixeira Coelho. São
Paulo: Martins Fontes, 1993.
CAR
V
ALHO, C.; IMMIANOVSKY
, C. PEBA:
A
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Revista Reexão e
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221-236, set./dez. 2017. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/in
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CORAZZA, S. M.
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DELEUZE, G.
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DELEUZE, G.; GUA
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DELEUZE, G.; GUA
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Capitalismo e esquizofre-
nia. São Paulo: Editora 34, 1996. v
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DELEUZE, G.; GUA
TT
ARI, F
.
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V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Evanildo F
. V
asco V
iana
Débora dos Reis Silva Backes
Dinamara Garcia Feldens
D
Devir-Orixá:
Processos de
transformação do corpo
259
Um dos traços que caracterizam a pós-modernidade é a subjetivação
dos corpos, que por sua vez denotam uma concepção de realidade que se
relaciona com a dissolução das fronteiras entre o que pode ser chamado de
alta cultura - o que pode ser associado com os valores vigentes e aceitos
como adequados pelos grupos hegemônicos e cultura popular - o resultado
das ações dos grupos menores, inferiorizados ou dominados (BHABHA,
2007). Nesse sentido, nossas buscas acadêmicas tendem a um retorno às
práticas singulares enquanto portadoras de uma importância peculiar
, fu-
gindo do referencial
iluminista modernista que desqualicava as
potencia
-
lidades singulares, regionais e locais como possibilidades.
O Candomblé tem uma forma muito particular de narrar o mundo.
Músicas, rituais e uma forte tradição compõem e caracterizam as vivên-
cias, as relações e o entrelaçamento entre arte, crença e realidade que, so-
madas nesse jogo de forças acabam por caracterizar essa religião afro-bra-
sileira. Para o candomblé, o desenvolvimento pleno de seus iniciados se dá
a partir das vivências das experiências apreendidas a partir da perspectiva
religiosa, cuja ideia central seria a de conhecer
, explicar
, valorar e criar
uma perspectiva do mundo através dos seus conceitos, dos seus mitos, da
sua cosmogonia e de sua ritualística especíca.
Partindo dessas considerações, as interlocuções mobilizadas nesse
texto discutem universos de seus ritos, encobertos através dos segredos e
sabedorias, nomes e cantigas toadas em línguas desconhecidas e misterio-
sas , passos de danças que se transformam em louvação à divindades, num
jogo relacional que envolve aspectos ligados à cultura de vários povos,
suas raízes culturais e processos de educação não-formal expressos num
mundo novo de ritos e gestos que expressam uma maneira diferenciada de
se ver e fazer religião.
Araújo (2008) nos remete às articulações do corpo
que estabelecem consonâncias com as múltiplas conexões da sua realidade
religiosa.
68 - Os iniciados referem-se às línguas Banto como fomentadoras do mistério que ajudou a preservar o candomblé quando
da necessária sincretização.
68
Constituído e plasmado de modo biocultural, como
constitutivo ontológico que une o bio-psico-químico e
os repertórios culturais/simbólicos, como amálgama de
signicados
e
sentidos
existenciais
polifônicos,
o
corpo,
em
nosso processo civilizatório, é concebido e compreendido
mediante
cosmovisões
bastante
diversicadas
em
consonância
com
os
uxos
de
cada
contexto
cultural
(ARAÚJO, 2008, p. 63).
260
Corpo, políticas e territorialidades
Entre os diversos momentos ritualísticos e os múltiplos signos que
constituem e caracterizam a religião dos santos, buscamos, através da es-
crita deste trabalho, compreender as transformações do corpo a partir dos
processos de iniciação no Candomblé de nação
Angola, já que são consi-
derados
como
nascimentos
ou
renascimentos,
do
lho
de
santo
iniciático,
na condição agora de membro iniciado e em constante evolução, ou seja,
na qualidade imanente de ser em transformação, de um devir
-orixá, onde o
iniciando, conhecido após esse primeiro processo como iaô, passa a inte-
ragir
, através das manifestações em seu próprio corpo, com o orixá, perso-
nicando-o. T
odos
os
ensinamentos
são
feitos
e referenciados
através
dos
mitos e ritos que embasam suas práticas, através dos ensinamentos de um
líder
, do pai de santo.
Os pr
ocessos de iniciação
Compreendidos como uma cadeia composta de diversos rituais es-
pecícos,
independentes
e
inter-atuantes,
tais
processos
são
referendados
como marcos determinantes da entrada, cooptação e aceitação dos novos
membros à sua nova comunidade (família) religiosa.
Os processos iniciáticos ressaltados em nosso trabalho são destaca-
dos pelos entrevistados como formados de dois principais processos de ini-
ciação: O
bori e
o feitorio.
T
ais percursos
determinam em
nossas tessituras
o
processo
de
construção
de
uma
subjetividade
especíca,
denotada
pela
relação entre iniciado-orixá, criando o devir
-orixá, marco teórico que cita-
mos como responsável pelo desenvolvimento da subjetividade inerente ao
lho de
santo imbricado ao
seu deus orixá.
Em relação ao
devir
, Deleuze e
Guattari (2008c) nos remetem:
O que é real é o próprio devir
, o bloco de devir
, e não os
termos
supostamente
xos
pelos
quais
passaria
aquele
que
se
torna.
O
devir
pode
e
deve
ser
qualicado
como
devir-animal sem ter
um termo que seria o animal que se
tornou. O devir-animal do homem é real, sem que seja
real
o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir
-
outro do animal é real sem que esse outro seja real. É este
ponto que será necessário explicar: como um devir não tem
sujeito distinto de si mesmo; mas também como ele não
tem termo, porque seu termo por sua vez só existe tomado
261
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
num outro devir do qual ele é o sujeito, e que coexiste, que
faz bloco com o primeiro. É o princípio de uma realidade
própria ao devir (DELEUZE; GUA
TT
ARI, 2008c, p. 18).
O
conceito
de
devir
não
naliza
nem
termina
o
que
quer
que
seja
relacionado
a
ele.
No
caso
dos
lhos
de
santo
e
sua
relação
com
os
ori
-
xás, o
devir
-orixá
não constitui
um m em
si mesmo,
mas uma
passagem,
uma transformação que se dá na relação do iniciado com as características,
peculiaridades, sutilezas, próprias do orixá, sem que o mesmo tenha que
efetivamente incorporar em seu corpo .
A
noção que damos à incorporação
revalida o conceito de devir
-orixá quando nos remete a um estado passa-
geiro,
não
nalizado,
de
interação
entre
iniciado
e
orixá.
Os
membros
da
casa, os iniciados rodantes ou não, são determinados pelas relações entre
seus próprios orixás e o orixá do pai de santo.
Encontramos algumas referências sobre a relação que se cria na es-
pritação dos santos e sua relação com o devir presente em suas possibilida-
des. Nas palavras de Deleuze e Parnet (2004, p. 12):
Devir nunca é imitar
, nem fazer como, nem uma sujeição
a um modelo, seja de justiça ou de verdade. Não há um
termo de que se parte, nem um ao qual se chegue ou ao qual
se
deva
chegar
.
T
ambém
não
há
dois
termos
imutáveis.
A
questão “o que é que tu devéns” é particularmente
estúpida. Porque à medida que alguém devêm, aquilo que
devêm muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são
fenômenos de imitação nem de assimilação, mas de dupla
captura, de evolução não paralela, de núpcias entre dois
reinos.
A
relação que se estabelece entre o iniciado e o orixá constitui-se em
uma multiplicidade, um rizoma. É criação de um novo signo, o devir
-orixá,
representante da união, do novo lugar de saber do iniciado. Uma possibili-
dade que se dá na espritação, que formas novas e únicas vivências, que cria
aprendências novas e exclusivas. “O corpo aprende aos poucos através do
aprendizado do santo, de abiã a iaô” conforme cita o babalorixá em nos-
sa primeira entrevista.
A
espritação gera um elemento novo formado pela
69
-
Existem
na
casa
pessoas
(lhos
de
santo)
que
não
incorporam,
não
espritam.
Geralmente
eles
recebem
um
cargo,
ekédis, e cam responsáveis pelos lhos incorporados ou espritados (rodantes).
70 - Os rodantes são os lhos de santo que incorporam.
69
70
262
Corpo, políticas e territorialidades
apropriação dos signos mundanos e sagrados, dos signos do homem e do
orixá.
A
resistência dos grupos religiosos afro-brasileiros, especialmente
no
Candomblé de
Angola,
dá-se
através da
possibilidade
de se
manter
el
às suas tradições, mesmo que estas sejam instáveis, que estejam em cons-
tante transformação, dada a instabilidade derivada do próprio ambiente de
cultura em que estão relacionadas.
As culturas vivas absorvem e são absor-
vidas pelos diversos ambientes em que estão inseridos.
A
manutenção das
tradições religiosas afro-descendentes em modelos apócrifos possibilita
uma postura complexa e ambivalente em relação às suas tradições: em pri-
meiro lugar
, uma busca de manutenção dessas mesmas tradições e depois
uma possibilidade de mudança de seus próprios conceitos e afetos, dadas
as transformações que se dão na transmissão dos confetos transmitidos e
dos mitos no passar dos tempos, em tradições vinculadas pela palavra, pe-
los contatos com outros ambientes culturais. Gauthier (2005) falando em
nome da sociopoética nos remete ao conceito de confeto:
Na Sociopoética, pensar é coisa onde interferem afetos e
conceitos. Os afetos não são as emoções individuais, e sim
intensidades que percorrem corpos, potencializando-os,
separando ou compondo-os. Quando o grupo pesquisador
está exercendo-se no pensamento, ele trabalha segundo
um estilo próprio, ele cria uma personagem original [...]
Com a noção de confeto, instalamo-nos no ‘entre-dois’,
no espaço-tempo diferenciador
, ou seja, criador de cultura,
como esses ‘gênios híbridos’, poetas, pintores, músicos
que
[...]
modicam
de
maneira
decisiva
o
que
pensar
signica,
apresentando
uma
nova
imagem
do
pensamento
povoando-o
de
entidades
artísticas
(GAUTHIER,
2005,
p.
258-259).
Dado que o grupo em que realizamos a nossa pesquisa é de nação de
angola, ele segue algumas indicações rituais próprias às suas origens: utili-
za os ritos de angola em suas manifestações religiosas, usa a língua iorubá
nesses rituais e segue os ensinamentos incorporados e desenvolvidos pela
sua mitologia. Entretanto, esse grupo eventualmente utiliza a língua banto
71 -
Alguns
autores, especialmente
Prandi (2001),
nos remetem
às diversas
línguas que
compõem o
repertório dos
bantos,
sendo o yorubá, o suahili, apenas duas delas.
71
263
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
em determinados momentos do ritual, conforme nos reporta um dos entre-
vistados num dos trechos descritos, assim como efetua diversos rituais de
acordo com os procedimentos de outras nações. Como a religião se tornou
semi-independente em regiões diferentes do país, entre grupos étnicos di-
ferentes evoluíram diversas “divisões” ou nações, que se distinguem entre
si principalmente pelo conjunto de divindades veneradas, o atabaque e a
língua sagrada usada nos rituais. O que descrevemos como semi-indepen-
dência,
na
verdade
deve
ser
entendido
como
uma
exibilidade
existente
entre os diversos seguidores de uma dada nação de Candomblé quando
alocado nas diferentes áreas e concentrações de outras populações e grupos
culturais. Nesse processo de construção cultural, as línguas de diferentes
nações foram amalgamadas, desterritorializadas e incorporadas em uma
nova forma de traduzir os diferentes conceitos e passos ritualísticos absor
-
vidos de outras manifestações que compuseram a religião dos santos.
Entretanto, como qualquer manifestação cultural, mecanismos di-
versos de absorção e transmutação criaram subdivisões das formas primá-
rias originais. O Candomblé atualmente é conhecido como uma religião
derivada principalmente dos ritos religiosos tribais africanos, aprimorada
no Brasil como forma de resistência cultural contra a escravidão, contra a
dominação e a imposição de uma outra cultura dita superior em relação a
sua.
Ainda assim, temos no território brasileiro diversas manifestações do
Candomblé com algumas variações nos rituais, conceitos, ritos, nomes e
nomenclaturas diferentes. Prandi (1997, p. 06) relata que:
Basicamente, as culturas africanas que foram as principais
fontes culturais para as atuais “nações” de Candomblé
vieram da área cultural banto (onde hoje estão os países da
Angola, Congo, Gabão, Zaire e Moçambique) e da região
sudanesa do Golfo da Guiné, que contribuiu com os iorubas
e os ewê-fons, circunscritos aos atuais território da Nigéria
e Benin.
Pensando
a
respeito
de
uma
denição
sobre
religião,
encontramos
em Silva (2004) tratar
-se de um sistema comum de crenças e práticas re-
lativas a seres sobre-humanos inseridos em universos históricos e cultu-
rais
especícos.
Considerações
importantes
acerca
de
tal
sistema
podem
ser
observadas
através
dos
estudos
de
Moraes
(201
1),
ao
ressaltar
que
a
religião,
assim
como
a
cultura,
é
capaz
de
expressar
sentimentos,
denir
mundos e orientar um determinado grupo, através de dimensões simbóli-
264
Corpo, políticas e territorialidades
cas, modelando dessa forma a ordem social, já que através dos símbolos,
mitos
e ritos,
a religião
formula e
reforça disposições
capazes de
modicar
o homem com o respaldo de valores sociais e orientação de condutas indi-
viduais.
Por conseguinte, devemos fazer uma pequena digressão e esclarecer
um detalhe na conceituação das religiões: uma religião precisa ter
, segun-
do as nossas referências, um clero, um credo e uma litur
gia, o que efeti-
vamente nos reporta que o Candomblé, assim como diversas outras ma-
nifestações religiosas afro-brasileiras, pode ser considerado efetivamente
uma
religião.
No
candomblé,
entretanto,
podemos
vericar
um
clero
que
se apresenta com uma gama enorme de diversidade em relação às fun-
ções existentes em sua hierarquia; vemos um credo fortemente arraigado
na crença dos orixás, antepassados que guardam uma semelhança com os
santos católicos (dado que os mesmos foram vivos e conviveram entre os
humanos em um dado tempo histórico); e a litur
gia do Candomblé que se
apresenta de uma pluralidade de mitos e ritos que sustentam simbólica e
conceitualmente os aspectos representados pelos iniciados quando das ma-
nifestações especícas.
Em consonância com os preceitos estabelecidos pela pós-moder
-
nidade,
cultura,
processos
culturais,
vêm
signicar
uma
relação
entre
di
-
versos elementos que se transformam, relacionam-se de forma constante,
interativa
e modicam-se
à
medida
que
se
entrelaçam padrões,
comporta
-
mentos, signos, sentidos, elementos, corpos. Percebemos que os processos
religiosos que estiveram se desenvolvendo no Brasil foram fermentados
com particularidades presentes em nosso território, uma mescla de singu-
laridades que se misturaram, como africanidades, europeizações ocidentais
e indianidades nacionais, que resultaram num amálgama de criações e cria-
turas representadas e constituídas como uma das formas de manifestação
religiosa presente em nosso contexto e cada vez mais considerado em nos-
so meio sócio cultural.
Com a incorporação da divindade, chamado por alguns de “santo”
no corpo iniciado, desterritorialização dos elementos que agora são par
-
tes
que
compõem
o
deus,
o
corpo
que
se
modica,
demonstrado
também
através da postura corporal, assume gestos e movimentos que imitam as
atividades
primárias
que
seriam mais
destacadas
pelos
lhos
de
santo
dos
seus orixás: imitam um caçador
, um pescador
, o vento, as águas, o tempo.
As voltas e giros, os passos de dança, os olhos cerrados, a posição dos
265
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
corpos; os gritos também fazem parte, dependendo de quem está incorpo-
rando. Esses traços são incorporados pelos iniciados e repetidos em suas
incorporações
quando da
espritação
lho-pai, ou
seja,
eles
são absorvidos
como traços pertencentes a um deus pai que deve ser demonstrado pelo
lho quando for por aquele assimilado.
Os deuses ou divindades do Candomblé não são simbolizados e
nem entendidos como seguidores ou indicadores dos ideais de perfeição
que acompanham outras divindades judaico-cristãs, nem do ponto de vista
comportamental, nem moral, nem eticamente: são representados e tradu-
zidos em seus mitos com um grau de humanidade, com uma humanização
que associam sobremaneira homens e deuses com características comuns
que os aproximam mais à medida que aqueles conhecem e são incorpo-
rados por estes. Eventualmente felizes e tristes, bondosos e rancorosos,
malécos ou
vingativos e benevolentes
ou condescendentes, os
deuses são
entendidos no Candomblé como se as emoções, sentimentos e aspectos
caracteriológicos fossem iguais aos dos homens. Sendo assim, os orixás
modicam
seus
comportamentos
e
suas
emoções
de
acordo
com
as
situa
-
ções e circunstâncias mundanas, cotidianas e ou relacionais, especialmente
em decorrência dos pedidos dos lhos de santo.
Nos registros encontrados na fala dos sujeitos da nossa pesquisa, os
orixás representavam os valores encontrados nas terras africanas, sendo
caracterizados como seres divinos que foram alçados ao orum, o mundo
espiritual, por conta das ações efetivadas na terra, no aiye.
Antigos reis,
rainhas, líderes espirituais, chefes de aldeias, guerreiros e líderes de na-
ções complexas em sua terra natal, os orixás formavam na religião africana
original, um grupo de entidades que eram adoradas como antepassados
mortos, termo hoje chamado de egunguns.
O processo de aprendizagem dentro do candomblé começa a acon-
tecer quando começa a haver alguma curiosidade sobre o tema. Sabemos,
por exemplo, que o lugar em que acontecem os rituais do Candomblé pode
ser chamado de roça, se perto dos centros urbanos e terreiros, se for loca-
lizado longe dos centros urbanos. Há uma mudança sutil, mas perceptível
com clareza pelos iniciados em relação à estrutura, à forma, à apresen-
tação, à conceituação, às passagens, à movimentação corporal, cinestési-
ca, ao tempo na linearidade, na lógica, nos rituais, nos ensinamentos, nas
aprendizagens, que compõe cada um dos chamados Candomblés. Segundo
um dos entrevistados:
266
Corpo, políticas e territorialidades
Se você vai falar pelo lado da religião, pelo lado da fé
que move o homem aí, ao Candomblé, primeiro lugar ele
é chamado através do próprio ou seja, nós normalmente
tem
pessoas
que
procuram
ser
lho
de
santo
porque
está
passando por problemas, isso, vai pro jogo pra ver se é
cobrança do orixá, outros procura a casa de santo porquê
está doente, é uma cobrança, uma manifestação do orixá, lhe
chamando pra você ir
, outras, procura o Candomblé porque
acha
lindo,
porque
se
encanta
e
vai
ser
lho,
primeiros
passos que normalmente na vida cotidiana, cotidianamente
acontece isso, eles procuram por esse motivo, quando ele
dá esse primeiro passo, o pai de santo ou babalorixá vai
colocar ele no quarto da consulta e vai jogar búzios pra ele
pra ver quem é o orixá, que é tomar conta do ori dele, da
cabeça dele, quem é o orixá de frente dele, pra daí começar
a ver quem é esse orixá dele e começar a tratar
, e o primeiro
tratamento dele é como falei é dar o obi de iniciação dele,
mas o primeiro passo que ele vai dar quando ele descobre
que nasceu ‘pra’
estar ali dentro do Candomblé, ele vai
procurar um pai de santo, ‘pra’
tratar
, pra começar
, vai
começar a dizer
ao lho o que
tá acontecendo na vida
dele
e o pai de santo como é que ele vai acreditar ou ter um
direcionamento. É o jogo de búzios, então, os ifás que vai
dizer qual
é o
caminho que
ele deve
seguir com esse
lho.
Se
ele
deve
dar
uma
obrigação
dele
pra
esse
lho,
se
ele
deve dar uma obrigação só pra cuidar dele espiritualmente
só pra ele ir pra casa dele, aí, quem vai determinar é os ifás.
É o pai de santo que vai jogar ‘pra’
determinar qual é o
Caminho dele. Se for
pra ser lho ele vai ter
esse processo
de iniciação como eu lhe falei, mas isso pode fugir a regra.
Existem cobranças maiores que você pode e iniciar de obi,
você pode iniciar o processo de feitura mesmo, então isso
vai depender de como vai estar a sua situação espiritual.
E
quem
vai
ver
isso
é
o
babalorixá
mesmo
no
ifá.
T
udo
no Candomblé parte dos ifás, o pai de santo sempre vai
consultar os ifás, ele, tudo que ele for fazer
, ele vai lá nos
ifás. Se ele vai lhe dar uma obrigação, ele vai ‘pra’
ver se o
orixá está aceitando, pra ver se o orixá dele, que é o zelador
da casa está aceitando também. Se ele aceita você na casa.
Então tudo ele vai nos ifás. É o caminho do Candomblé,
tudo parte dos ifás (BABALORIXÁ, 201
1).
267
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Os passos a serem seguidos na religião dos santos são suscetíveis
a mudanças de acordo com as determinações dos orixás, mediadas pelos
ifás, uma espécie de transmissor de suas vontades. Os rituais de iniciação
devem ser efetuados sempre de acordo com as prescrições estabelecidas
pelos ifás e de acordo com as vontades do seu orixá.
As transformações que
se seguem aos fenômenos iniciáticos constroem a subjetividade inerente
ao grupo em questão e reforçam os aspectos que caracterizam os diversos
grupos em suas sutis diferenças.
Nesse momento da articulação devemos falar das múltiplas pedago-
gias
do
corpo,
que
trazem
um
signicado
sobre
elaborações
historicamente
construídas no interior das múltiplas sociedades africanas para explicar as
diferentes formas de lidar e cuidar do corpo. É complicado falar em um
processo de iniciação no Candomblé, já que os iniciados passam por diver
-
sos processos que são considerados movimentos de iniciação. Cada novo
evento a que se submetem, cada novo ritual apreendido, cada vez que ao
mesmo são demandados um aprimoramento constante de suas habilidades
em desenvolvimento, todos esses momentos são considerados pelos mem-
bros do Candomblé como momentos de iniciação, já que um novo início se
dá a partir das novas aprendizagens que se efetivam no corpo do iniciado.
O percurso do membro quando da sua pré-iniciação no Candomblé
passa por algumas ações distintas que denotam a interação que se inicia
entre a pessoa, o iniciando e o seu orixá, através de mediadores primeiros
como os ifás ou búzios. Quando de algum tipo de orientação para se buscar
o Candomblé, o iniciado busca o pai de santo para que este lhe jogue os bú-
zios e lhe responda as perguntas que se achem necessárias, estabelecendo
uma primeira relação entre os membros, numa construção hierárquica que
se inicia e se estabelece entre o novo membro e o pai de santo, os media-
dores dos orixás. Segundo nossos entrevistados:
72 - É importante salientar que não há uma formalização aguda do processo de pré-iniciação. Geralmente, os membros
passam por 3 rituais outros antes da iniciação em iaô, chamado feitorio, que seriam o obi, o bori e o bossé.
Alguns não
passam por todos os rituais, dependendo da vontade do orixá expresso através dos ifás.
72
T
odo
o
lho
de
santo
ele
passa
pelo
processo
que
lhe
falei de aprendizagem. Então dentro do quarto de santo
quando você vai pra camarinha, a gente fala camarinha,
você passa pelo processo de ensino, por exemplo, você
começa a pedir
, a falar tudo dentro do Candomblé na
língua ioruba, tudo, tudo. Se você quer água, se você tá
268
Corpo, políticas e territorialidades
pedindo um prato, se quer uma faca, se você quer comer
.
Então, esse processo que você é, vai passar
, você tem que
se iniciar pra poder você ter uma orientação, um processo
educacional realmente, por que vai ter o zelador da casa ,
o pai de santo ou babalorixá, ou outro cargo dentro da casa
que vai sentar com o iniciado e vai explicar pra ele o que
é, por exemplo, se você quer água você vai pedir omi, não
vai pedir mais água, se você quer um prato vai pedir itibirí,
se vc quer a delunga, que é a caneca pra vc tomar água,
pede a delunga, se você quer pedir o fogo você vai pedir o
isô, vc não vai , você vai aprender a trabalhar
, a utilizar as
linguagem do Candomblé. Por que se você tiver em outro
local, normalmente você pode ser testado. Fulano, me dê o
isô, se vc não sabe o que é isô, dentro do Candomblé, você
é iniciado e não sabe o que é isô, você já vai ser criticado.
Então você tem que entender
.
A
linguagem que é utilizada,
a linguagem banto, que vai, trabalhar com essas duas, com
linha de ketu e com a linha de angola, né, então a linguagem
banto ela vai estar sempre trabalhando junto, ai você só
passa por esse processo quando você se inicia, aí você
aprende, quando você é iniciado, enquanto pesquisador
você vai compreender o que as pessoas vão lhe dizer
, lhe
falar
, mas você não vai ter a obrigação de conhecer
, mas
os iniciados eles têm a obrigação de conhecer a linguagem
utilizada,
ocial
utilizada
dentro
do
Candomblé
(OGÂN,
06/04/201
1.
Dentro da mitologia religiosa africana, as homenagens aos ante-
passados, aos seres divinos e aos transmissores de informação (escravos
dos orixás) se dão através de diversos elementos simbólicos e naturais.
Seja uma planta, uma comida, seja um ritmo tocado, ou mesmo o tipo
de material usado nas roupas, ou uma concha de algum animal marinho,
ou até mesmo uma determinada cor
, cada um dos pequenos detalhes que
se apresentam vem representar a ligação dos orixás com os iniciados e o
uso
desses
elementos
por
parte
dos
seus
lhos
,
modo
comum
a
que
são
denominados os adeptos de um dado orixá, vem simbolizar e representar
uma
homenagem,
já
que
destaca
no
iniciado,
no
lho
do
santo,
a
liação,
o respeito e admiração deste por aquele. Destacamos o papel das danças
nos rituais, claramente ligados às homenagens que são feitas em relação
aos orixás.
73 - Cada um dos iniciados é considerado um lho do seu orixá.
73
269
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
De acordo com a mitologia dos orixás, uma ordem ritualística deve
ser seguida pelos membros iniciados do Candomblé. Em nosso grupo, con-
forme citamos quando falamos de cada um dos orixás, o orixá Exu é o
primeiro a ser homenageado, representando uma hierarquia determinada
pelos mitos associados à religião. Segundo a ritualística e baseando-se em
sua mitologia, Exu representa o elemento de ligação, de transmissão dos
saberes dos orixás aos homens, localizados em planos distintos da exis-
tência. Exu, enquanto veículo relacional entre deuses e homens, merece
um destaque especial dentro da mitologia ritualística exatamente devido a
esse papel de poder acessar os dois planos sagrados: a existência divina e
a existência mundana.
Como homenagem a essa faculdade especial de ser de acesso aos
planos, o Exu deve ter o seu toque, a sua dança, a sua comida, todos os
aspectos das devoções devem ser oferecidos primeiro a ele, para que ele
não venha a atrapalhar ou impossibilitar os trabalhos restantes dentro do
grupo. Esse mesmo orixá tem um dia festivo exclusivamente em sua ho-
menagem,
marcando
exatamente
o
seu
caráter
especíco
de
destaque
no
panteão dos orixás brasileiros. E também se faz referência ao papel de Exu
como
escravo
dos
Orixás,
sendo
diversicado,
tendo
cada
um
dos
orixás
vários Exus aos quais recorre quando na necessidade de interferência na
existência mundana.
O iniciado, o praticante do Candomblé, se não for um ekédi , pode
ser chamado de cavalo, no próprio entendimento dos seus adeptos. Se o
animal é historicamente considerado como uma ferramenta de trabalho e
de transporte, no Candomblé podemos situá-lo da mesma maneira. É ferra-
menta quando utilizamos seu corpo para transformar o ambiente e a natu-
reza, para se adaptar às necessidades dos Orixás, através da resposta a sua
demanda de alimentos e ou dos seus peculiares padrões de opção, gosto
e ou prazeres. É também ferramenta quando é utilizado para completar e
complementar a relação hierárquica necessária ao preenchimento dos di-
versos cargos existentes no Candomblé; é transporte quando serve de local
escolhido pelo orixá quando atravessa a relação espaço-tempo e incorpora,
em carne
e osso, na gura
do iniciado, vivendo, interagindo
e representan
-
do a ele mesmo no mundo real.
O processo de iniciação não tem que necessariamente passar pelos
74 - Um dos iniciados que não espritam, tendo o cargo de curador
, ou cuidador dos espritados.
74
270
Corpo, políticas e territorialidades
diversos rituais que vão contemplar
, responder e interagir com os mitos
ancestrais seguidos pelas diferentes linhas ou nações do Candomblé.
Ape-
sar de suas singularidades, o obi e o bori, assim como o bossé são eventu-
almente desconsiderados se assim é explicitado no jogo de búzios. Cada
um dos iniciados segue os preceitos que são determinados pela sua própria
relação dentro da casa de santo em íntima conexão com os babalorixás que
por sua vez são orientados pelos búzios, representantes dos orixás.
Neste sentido, o Candomblé faz uso dos mitos e dos diversos rituais
que emprega em sua prática religiosa como instrumento de pedagogização,
ou, como preferimos utilizar nesse trabalho, de educação, mesmo que so-
bre bases não-formais.
Além do aspecto apócrifo de suas tradições, os mi-
tos eram transmitidos oralmente aos novos iniciados, através das gerações
que foram introduzidas aos processos religiosos do Candomblé.
Os mitos desempenham funções complexas dentro do Candomblé,
conforme relata Prandi (2001) cujo livro sobre mitologia dos orixás
é bas
-
tante rico e esclarecedor
. Em nossa pesquisa percebemos que a principal
função dos mitos é a manutenção das características principais dos orixás
e
dos
lhos
de
santo,
ainda
que
venham
também
a
designar
formal
e
in
-
formalmente os passos rituais a serem efetivados, seguindo características
pessoais e tipológicas dos orixás enfocados pelos mesmos.
No Candomblé, após a descoberta dos orixás que compõem a “cabe-
ça” do iniciando, acontecem os primeiros rituais, determinados pelos mitos
que dão um respaldo histórico-metodológico aos próximos passos que irão
passar
.
E
os
rituais
são
tão metódicos
quanto
diversicados,
apresentando
variações
a
depender
dos
orixás
aos
quais
os
lhos
mantêm
uma
conexão
especial.
Os
ritos
derivados
dos
mitos
são
mais
signicativos
em
relação
aos acontecimentos reais para os membros da casa. Sobre os mitos, outra
pesquisadora, Segato (2005, p. 359) nos remete em seus escritos:
Os mitos são invocados de maneira espontânea no
curso das conversas, em contextos e situações variadas,
principalmente com o propósito de deixar clara alguma
característica de comportamento de algum orixá ou de
algum
dos
seus
lhos,
ou
de
explicar
e
prescrever
algum
procedimento ritual a ser seguido. Estes relatos tomam,
geralmente, a forma de citações breves, fragmentos ou
alusões, mais ou menos cifradas, a fatos da vida de um
orixá ou a suas relações com algum outro personagem do
panteão.
271
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Moraes
(201
1)
tece
importantes
considerações
a
respeito
do
olhar
das culturas afro-brasileiras em relação ao corpo, assim percebido como
um
reexo
do
cosmos.
A
autora
pontua
que
os
símbolos
estão
impressos
no corpo, sendo resgatados através dos ritos: “o corpo é o lugar
, por exce
-
lência, da explicitação pessoal e grupal da experiência religiosa e é através
dele que os participantes da religião representam a imagem que fazem do
universo” (MORAES, 201
1, p. 142).
Na ritualística do Candomblé de
Angola, efetua-se uma sequência
não formal de absorções de conhecimentos por parte dos iniciados. Os
aprendizados que se efetuam nos processos de iniciação servem para efeti-
var a entrada do novo membro em novos padrões ritualísticos, garantindo
a ele um entendimento das diversas nuances que acontecem durante os
diferentes processos. Preliminarmente, o iniciado deve aprender a reco-
nhecer os ritmos das músicas e a quem se destina, ou seja, qual o orixá que
está sendo homenageado, pra quem se está cantando e qual o momento do
processo cujo toque está anunciando, já que são vários os toques e são três
os atabaques que compõem o Candomblé .
Deve também reconhecer a própria música tocada, que são pontos
importantes para o reconhecimento dos diferentes momentos em que o pai
de santo faz os pedidos aos iniciados, já que cada uma das músicas traz em
si as palavras cantadas em uma língua diferente da sua matriz original local
. Deve construir um
vocabulário especíco de acordo com a ritualística
do
grupo,
a
m
de
compreender
os
diferentes
chamados
do
pai
de
santo
em
relação aos diferentes pedidos feitos durante os ritos, conforme citação da
entrevista descrita a seguir
.
Além das palavras cantadas e recitadas, há que
se aprender a homenagear os santos, ou melhor
, aos Orixás, com as danças
que
marcam
no
corpo
uma
ritualística
própria.
Nas
palavras
de
Coani
(2008), a investigação dos ritos deve passar necessariamente pelo estudo
do corpo.
75 - O canto no Candomblé serve de louvação, homenagem aos orixás e integração dos iniciados em relação aos diferen-
tes momentos ritualísticos.
76 - Os instrumentos são tratados com referência, já que são instrumentos de interação entre os diferentes mundos espiri-
tuais.
A
eles são ofertadas comidas e sacrifícios.
77 -
As músicas são cantadas, nesse grupo, principalmente no idioma Banto.
75
76
V
islumbra-se a necessidade de investigar-se no âmbito
histórico como, onde e porque o corpo foi objeto de
miticação.
Processo
esse
que
é
instrumentalizado
pelas
invenções de diversas concepções, no interior dos processos
77
272
Corpo, políticas e territorialidades
de pedagogização do/sobre o corpo. Em outras palavras,
desvelar o exercício do poder manifesto sob diferentes
formas de controle e que constitui uma rede heterogênea
de
poderes.
O
que
signica
reconhecer
como
foi
propício
investir sobre o corpo, transformá-lo em alvo de discussão
histórica, a partir da fabricação dos discursos sobre e do
corpo (COFF
ANI, 2008, p. 26).
O Candomblé apresenta em sua teogonia um grupo de orixás que
são
reconhecidos
pelos
iniciados
quando
de
sua
incorporação
em
seus
-
lhos de santo, principalmente, através dos gestos rituais e expressões cor
-
porais.
As danças, os movimentos físicos, o preparo dos alimentos, das
roupas e ornamentos são exemplos do uso do corpo ritualizado. O corpo
torna-se o local de absorção dos costumes, hábitos, regras e valores, intro-
duzidos e apreendidos voluntária e involuntariamente pelos seus membros
através das representações simbólicas presentes em seus rituais religiosos.
Apesar da utilização do que chamamos de complementos do pro-
cesso ritualístico, que de certa forma os referenciam, como o uso de ataba-
ques, as roupas coloridas, as comidas e as oferendas (macumbas), são os
gestos, as posturas físicas, gestuais, é o corpo que se destaca e faz saber aos
outros membros quando e se houve comunhão, qual é o orixá espritado, se
há um entendimento das relações entre os diversos momentos dos rituais,
se houve um entrelaçamento, um contato, se espritou ou não, ou seja, se
houve uma relação de pertencimento e absorção entre o iniciado e o seu
orixá. Segundo Geertz (2008, p. 83):
É no ritual [...] que se origina, de alguma forma, essa
convicção de que as concepções religiosas são verídicas
e de que as diretivas religiosas são corretas. Num ritual,
o mundo vivido e o mundo imaginado fundem-se sob a
mediação de um único conjunto de formas simbólicas,
tornando-se um mundo único e produzindo aquela
transformação idiossincrática. Qualquer que seja o papel
que a intervenção divina possa ou não exercer na criação
da fé - e não compete ao cientista manifestar
-se sobre tais
assuntos, de uma forma ou de outra - ele está, pelo menos
basicamente, fora do contexto dos atos concretos em
observância religiosa que a convicção religiosa faz emergir
no plano humano.
78 - O termo me parece uma corruptela de espritou, talvez em relação ao fato de o iniciado ter se tornado “espírito”, ou
seja, ter incorporado um orixá.
78
273
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
O mundo do Candomblé de
Angola é um lugar com processos clan-
destinos, maquínicos. Na sua ritualização, apresenta um mundo sagrado
e mítico, mágico, cheio de segredos não compartilhados e não aberto aos
não-iniciados.
Além da passagem dos seus ensinamentos terem se dado
quase exclusivamente através das transmissões pessoais, geralmente de
forma verbal, o que não nos reserva nenhum registro histórico escrito, pen-
samos que as diferentes perseguições a que foram impostos os seguidores
das religiões africanas devem ser responsáveis por essa imposição de se-
gredos e de limites entre o que pode ser exposto aos não iniciados em suas
cerimônias
públicas.
Deleuze
e
Guattari
(2008c,
p.
81-82)
nos
descrevem
a relação que pode ser seguida em relação aos segredos:
O segredo está numa relação privilegiada, mas muito
variável, com a percepção e o imperceptível. O segredo
concerne primeiro certos conteúdos. O conteúdo é grande
demais para sua forma...ou os conteúdos têm neles mesmos
uma forma, mas tal forma é recoberta, duplicada ou
substituída por um simples continente, envoltório ou caixa,
cujo papel é suprimir suas relações formais. São conteúdos
que achamos bom isolar
, ou disfarçar
, por razões, elas
próprias variáveis. Mas, justamente, fazer uma lista dessas
razões (o vergonhoso, o tesouro, o divino, etc.) não tem
muito interesse, enquanto opomos o segredo e a sua
descoberta, como numa máquina binária onde só haveria
dois termos, segredo e divulgação, segredo e profanação.
Com efeito, de um lado, o segredo como conteúdo se
ultrapassa em direção a uma percepção do segredo, que não
é
menos
secreta
do
que
ele.
Pouco
importam
os
ns
e
se
essa
percepção tem por meta uma denúncia, uma divulgação
nal,
um
desvendamento.
Do
ponto
de
vista
da
anedota,
a
percepção do segredo é o contrário dele, mas do ponto de
vista do conceito, ela faz parte dele. O que conta é que a
própria percepção do segredo só pode ser secreta: o espião,
o voyeur
, o dedo-duro, o autor de cartas anônimas não são
menos secretos do que aquilo que eles têm a descobrir
, seja
qual for sua meta ulterior
. Haverá sempre uma mulher
,
uma criança, um pássaro para perceber secretamente o
segredo.
Haverá
sempre
uma
percepção
mais
na
do
que
a sua, uma percepção de seu imperceptível, daquilo que
há em sua caixa. Prevê-se
até um segredo prossional para
aqueles que estão em situação de perceber o segredo. E
274
Corpo, políticas e territorialidades
quem protege o segredo não está necessariamente ao par
,
mas também ele remete a uma percepção, pois tem que
perceber e detectar aqueles que querem descobrir o segredo
(contra-espionagem).
Segundo os participantes da pesquisa, a atenção deve ser sobrema-
neira focada na música, nas canções que, em sua opinião, compõem toda
a ritualística do Candomblé. E uma especial parcela do tempo de aprendi-
zagem se dá em repassar aos iniciantes as canções, músicas e toques que
caracterizam cada um dos orixás referendados. Em nossa pesquisa com
teóricos,
encontramos também
em Bastide
(2001), algumas
colocações
so
-
bre os cânticos:
Os cânticos, todavia, não são apenas cantados, são também
“dançados”, pois constituem a evocação de certos períodos
da história dos deuses, são fragmentos dos mitos, e o
mito deve ser representado ao mesmo tempo que falado,
para adquirir todo o poder evocador
. O gesto juntando-
se á palavra, a força da imitação mimética auxiliando o
encantamento das palavras, os orixás não tardam a montar
seus cavalos á medida que vão sendo chamados.
As palavras cantadas, entoadas em línguas pertencentes aos ante-
passados que trouxeram consigo a religião, ecoam, durante as cerimônias,
por toda a casa, acompanhada de gestos, posturas, movimentos circulares,
mudanças bruscas no eixo do corpo, poses (mãos para trás, mão ao lado cor
corpo).
As palavras
contém uma
força (axé)
que é
intensicada pelos
ges
-
tos e
expressões do corpo
iniciado. Cada lho
de santo
em sintonia com
as
posturas consideradas originadas pelos seus pais (pelos orixás de cabeça,
ditos pais) assume um lugar de expressão dessas articulações dos passos
dos orixás em sua dança, representando-o espritado.
No
nal
de alguns
dos
diversos rituais
que
se nos
zemos presentes,
percebemos claramente as relações de tolerância, aculturação, sincretismo
e
bricolagem
que
existem
entre
as
inclinações
religiosas
atuais
e
as
inuên
-
cias
anteriores,
quando, por
exemplo,
no
nal do
ritual,
o
pai de
santo
pede
aos iniciados que “dêem as mãos e rezemos um pai nosso”, ato ecumênico
de louvação de cunho evidentemente católico. Percebemos em nossas en-
trevistas
que
os
ensinamentos
tentam
ser
éis
aos
processos
aos
quais
os
líderes (babalorixás e babaquequerês) foram submetidos. Um entrevistado
assim reporta:
275
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Filho de santo é como eu tinha dito antes, vou repetir mais
uma
vez,
pra
você
se
tornar
pai.
V
ocê
tem
que
ser
lho.
Então
você
vai
passar
pelo
mesmo
processo
de
ser
lho
para
posteriormente você
ser pai.
T
odo
pai um
dia foi
lho,
ele não entra, nenhum iniciante entra na casa e se torna pai.
Por que até que ele pode receber o adeká, que é a permissão
de
ser
pai
de
santo,
mas
ele
cumpre
um
período
de
lho,
um período de preceitos, que ele tem que cumprir como
iaô, aí vai diferenciar
, vai diferenciar que ele é pai, mas
ele
também
tá
cumprindo
princípios
de
lho,
de
iaô.
V
ocê
é
pai,
mas
eu
tô
lhe
dizendo
que
você
é
lho
com
adeká,
com liberdade de ser pai, mas você tem um período que
você cumpre dentro da lei do Candomblé, dos preceitos
do
Candomblé,
e
diz
que
você
tem
que
ser
lho
até
pelo
menos um ano, normalmente as casas dão um ano. Se você
entra na casa e você recebe uma deká e é pai de santo, você
vai ser iaô de adeká, você é conhecido como iaô de adeká.
Então você cumpre esse período de iaô de adeká. Então
aí vai diferenciar você mesmo antes de você ser pai. V
ocê
tem que passar por que o Candomblé você só pode dar o
que você tem, você tem que viver aquilo tem que ter pra
poder lhe
dar
, se
eu sou
pai eu
posso fazer
você lho
e lhe
tornar
pai,
se
eu
não
sou
pai
eu
não
posso
lhe
fazer
lho,
nem posso me tornar pai. V
ocê só dá o que você recebe
dentro do Candomblé. V
ocê não pode dar nada que você
não tenha. V
ocê tem que passar
, vivenciar, experimentar
,
pra depois você poder dar
, né? passar o seu conhecimento
por que também o Candomblé tem essas vertentes, é um
processo educacional, realmente, que você passa por isso,
você recebe a educação dentro do Candomblé, dentro
dos princípios do Candomblé e depois é que você pode
passar para o outro, mas sempre pra ser pai tem que ser
lho,
então
é
o
processo
são
idênticos,
de
ser
lho
pra
ser
pai é assim que funciona, sempre. Deve ser assim. Pode
acontecer outras coisas, mas não tá dentro da regra. Eu
tô me referindo a regra.
A
regra diz isso. Que só pode ser
pai
se for
lho.
É
claro que
existem
casas
aí que
fazem
da
maneira que elas querem, mas, a regra do Candomblé não
diz isso. Como toda religião sabe que algumas casas, outras
religiões, elas criam uma forma e faz da maneira dela, mas
a regra diz uma coisa, e a gente, eu tô tentando cumprir a
regra. Que é o que diz a regra (OGÃN, 201
1).
276
Corpo, políticas e territorialidades
No processo de incorporação, as novas manifestações revelam um
aprendizado baseado numa inscrição corporal: a postura assume uma ca-
racterística ligada à história do orixá: curvado, se representa um velho ori-
xá, alerta em retilíneo, se representa um orixá novo. Os traços representa-
tivos dos
orixás são produzidos
e incorporados
pelos iaôs e
identicam os
elementos reportados.
As incorporações marcam no iniciado um processo
de desterritorialização, que reconstroem as marcas impregnadas de cer
-
tezas e dúvidas, características da condição humana e as reformulam em
novos processos de reconstrução de um ser novo, feito de um antigo e um
novo eu, cheios de divindades assimiladas, de ensinamentos apreendidos
e incorporados, através dos pensamentos associados ao processo, e prin-
cipalmente através do corpo, instruído a pensar e agir conforme as instru-
ções
dadas
pelos
seus
orientadores,
sejam
eles
babalorixás
e
ou
lhos
de
santo, incorporados ou não.
A
característica postura física dos diversos ori-
xás, cada
um
com seus
trejeitos,
suas marcas
e posturas
especícas
e com
evidentes sinais próprios, são traços claros do aprendizado do iniciado de
como deve se portar ao assumir seu devir
-orixá.
Algumas discussões possíveis
A
educação sobre a qual tecemos considerações a partir dos elemen-
tos observados envolvidos nos processos ritualísticos de iniciação do Can-
domblé de
Angola, não vem formalizada, padronizada, mas se dá através
de linhas de intensidades e linhas de fuga, que atravessam os iniciandos
com tonalidades,
saberes e sabores
diferentes, que os
perpassa e os
signi
-
ca, experiências que educam o corpo.
A
partir das aprendizagens efetuadas inicialmente nos diferentes ri-
tuais, especialmente o obi, o bori, o bossé e o feitorio, o iniciado aprende
e apreende conceitos, regulações internas, regras apócrifas, sentidos ima-
nentes que o redirecionam a um crescimento ritualístico e conceitual den-
tro da casa de santo. Existe uma variedade de outros rituais, cada um com
suas especicidades, sutilezas, peculiaridades,
ritualística e mitologia, que
asseguram um conhecimento histórico-cultural embasado num processo
educativo.
No processo de espritação, palavra derivada da utilizada no Can-
domblé,
espritar
,
que
signica
tornar-se
orixá,
ser
possuído,
tomado
e
in
-
277
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
corporado pela divindade, o iaô, ou iniciado entra num processo de perda
da sua singularidade, de incapacidade de, gestão do seu próprio corpo e
passa a responder
, ou ser dirigido, guiado, pela divindade, pelo orixá, que
assume as funções motoras e psicológicas , assumindo assim o controle
total do seu eu, passando a responder pela integridade, ou não, do corpo
possuído. Esse movimento de passagem, de troca, ou melhor
, esse movi-
mento fronteiriço entre o ser
, o estar e o não ser/estar
, tem como processo
conceitual
a
criação
de um
corpo
sem
órgão, de
acordo
com
a
losoa
da
diferença.
T
ais
processos
começam
a
acontecer
a
partir
da
efetivação
dos
ritos completos de iniciação, derivados dos mitos apreendidos historica-
mente pelos diversos grupos.
Os processos de iniciação impõem aos corpos sacrifícios e trans-
formações:
na
cerimônia
da
feitura
do
santo
há
uma
reclusão
de
21
dias
do novo membro, que chamaremos de iniciado. Não é permitido sair do
espaço de reclusão, o terreiro ou roça, onde se dão as cerimônias do ritual.
A
reclusão é feita no quarto dos santos, lugar de destaque dentro do terreiro
onde
são
alocados
os
representantes
dos
orixás,
em
suas
guras
referen
-
ciais, que são adquiridas pelos novos iniciados e ali alocadas, onde cada
um dos membros do culto é representado nessa sala especial. E quando do
início dessa cerimônia, o iniciado deve, com o auxílio dos demais mem-
bros, representar o seu orixá de cabeça nessa sala. Nesses dias de reclu-
são, ele deve aprender a fazer os colares e pulseiras que deve usar quando
do
ritual
de
saída
de
iaô,
que
caracteriza
o
m
do
período
de
reclusão
e
consequentemente o m desse processo inicial. Outros agenciamentos
são
ensinadas diretamente pelo babalorixá: os passos de dança que são repre-
sentativos do seu orixá; as músicas que devem ser cantadas nos rituais em
louvação a ele; a postura, quando em pé, deitado ou sentado nos diversos
momentos da cerimônia religiosa.
Quando o iniciado recebe um chamado do orixá, através dos búzios,
expresso pela mediação dos babalorixás, uma das principais cerimônias
sagradas do Candomblé se inicia. O processo de fazer a cabeça, também
chamado de feitura, é considerado uma cerimônia de (re)nascimento do
lho,
com
a
sua
morte
simbólica,
simbolizada
no
recolhimento
,
através
79 - O recolhimento é um processo do ritual de feitorio que ocorre na casa de santo, no quarto de santo, onde por um
período de 21
dias sem poder se
ausentar da casa,
os abiãs aprendem as
músicas, a reconhecer os
toque e ritmos,
a fazer
os
colares
de
contas
na
cor
do
seu
orixá,
a
fazer
as
comidas
que
os
homenageiam,
e
onde
são,
ao
nal
banhados
numa
infusão de ervas sagradas e pintados, com marcas brancas pelo corpo e na cabeça.
79
278
Corpo, políticas e territorialidades
80 -
Abiã é aquele que frequenta o terreiro de santo, fez algum processo iniciático, como o obi, mas ainda não passou pelo
processo de feitura de santo.
81 -
Iaô é
o lho
de santo,
iniciado, obizado
(passou pelo
obi), borizado
(fez o
bori) e com
feitorio (fez
a feitura
do santo).
Está tudo aí: um devir-animal
que não se contenta em passar
pela semelhança, para o qual a semelhança, ao contrário,
seria um obstáculo ou uma parada; um devir-molecular
,
com a proliferação dos ratos, a matilha, que mina as grandes
potências
molares,
família,
prossão,
conjugalidade;
uma
escolha
maléca,
porque
há
um
“preferido”
na
matilha
e
uma espécie de contrato de aliança, de pacto tenebroso
com o preferido; a instauração de um agenciamento,
máquina de guerra ou máquina criminosa, podendo ir até
a autodestruição; uma circulação de afectos impessoais,
uma corrente alternativa, que tumultua os projetos
signicantes,
tanto
quanto
os
sentimentos
subjetivos,
e
279
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
das aprendências dos elementos ligados à caracterização do seu orixá. Sai
da condição de abiã , para a de iaô , lho de santo.
O processo de educação passa por uma relação complexa com os
membros iniciados, já que os mesmos não são cooptados no Candomblé
sem referências anteriores. Cada um dos membros, futuros e antigos, já
chegam com uma bagagem cultural existente, diferente das bases conceitu-
ais a serem apreendidas e que constituem e embasam sobremaneira os seus
comportamentos. O processo de aprendência leva em consideração tanto a
educação quanto a deseducação, dos novos procedimentos, comportamen-
tos e hábitos e dos antigos mecanismos adaptativos, respectivamente.
É o devir
-orixá que cria a perspectiva de uma transformação nos
comportamentos e emoções dos iniciados. Há uma busca das qualidades
inerentes ao orixá, determinantes a partir dos rituais em que o mesmo in-
corpora
em
seus
lhos.
Suas
vicissitudes,
aspirações
e
necessidades
são
estabelecidas a partir da sua relação com as divindades, tornando real a
aplicação dessas vontades na vida do lho de santo.
As possibilidades de entender demandas que aproximem espaços
mundanos e sagrados, de mundos de deuses e do mundo natural, humano,
cria uma perspectiva de entendimento do devir como próprio da vida no
candomblé.
Deleuze
e
Guattari
(2008c,
p.
12)
nos
realimentam
com
suas
palavras ao citar as íntimas relações como inerentes ao processo do devir:
80
81
constitui uma sexualidade não-humana; uma irresistível
desterritorialização, que anula de antemão as tentativas
de
reterritorialização
edipiana,
conjugai
ou
prossional
(haveria animais edipianos, com quem se pode “fazer
Édipo”, fazer família, meu cachorrinho, meu gatinho e,
depois, outros animais que nos arrastariam, ao contrário,
para um devir irresistível? Ou então, uma outra hipótese: o
mesmo animal poderia estar tomado em duas funções, dois
movimentos opostos, dependendo do caso?).
Possibilidades de alocação dos diversos signos em suas divindades,
as multiplicidades dos signos usados no candomblé nos remete ao conceito
discutido
na
losoa da
diferença,
em
especial
sobre
o conceito
de
multi
-
plicidade discutido nos Mil platôs, de Deleuze e Guattari (2009). Segundo
suas palavras:
É, antes, uma pura multiplicidade que muda de elementos
ou que devêm (p.40).
É porque estas multiplicidades não têm o princípio de
sua matéria num meio homogêneo, mas em outro lugar
,
nas forças que agem nelas, nos fenômenos físicos que
as ocupam, precisamente na libido que as constituem de
dentro
e
que
não
as
constituem
sem
se
dividir
em
uxos
variáveis e qualitativamente distintos (p.44).
Não se trata, no entanto, de opor os dois tipos de
multiplicidades, as máquinas molares e moleculares,
segundo um dualismo que não seria melhor que o do Uno
e do múltiplo. Existem unicamente multiplicidades de
multiplicidades que formam um mesmo agenciamento,
que se exercem no mesmo agenciamento: as matilhas nas
massas e inversamente (p. 48).
Um ponto de articulação entre os escritos Deleuzianos que entende-
mos embasar este trabalho, é que o Candomblé é um dos grandes exemplos
de rizoma, de devir
, de multiplicidade, de reterritorialização e desterrito-
rialização. Ele é africano em suas origens, em seus elementos, é trazido ao
Brasil e aqui sofre transformações ao mesmo tempo em que é preservado.
Ele se transforma e se preserva no Brasil a ponto de séculos depois, retor
-
nar
à
África
informações
sobre
Candomblé,
especialmente
sobre
orixás
que não são mais cultuados lá, mas que são amplamente cultuados aqui.
Exemplo de um grande processo rizomático que permeia nossa cultura e
280
Corpo, políticas e territorialidades
que compõe as entrelinhas dos processos que estudamos no Candomblé de
Angola.
As multiplicidades que encontramos presentes em seus matizes
nos revelam algo da natureza abrangente de suas formas e signos comple-
xos, ao tempo em que são simples construções de uma subjetividade que
caracteriza tal aspecto real.
Os signos do candomblé criaram uma forma de absorver
, de assimi
-
lar em seus ensinamentos as relações das forças da natureza em sintonia
com as demandas do mundo real que as transformam. Os processos de
construção de seu entendimento levaram a construção de subjetividades
claras,
com
aspectos
próprios,
especícos,
que
caracterizam
os
membros
iniciados da religião dos deuses sem deus, dos homens-deuses, em seus de-
vires-orixás.
As aprendências se destacam no substrato da matéria humana
básica, no corpo, fonte e local de ação dos diversos aspectos culturais. E o
corpo cria rizoma, faz devir e poster
ga as negações da vida.
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282
Corpo, políticas e territorialidades
Jerlane
Santos Abreu
Elder Silva Correia
Fabio Zoboli
E
Educação do corpo
na prática corporal do
crossfit
:
Pensar novas formas de trincar os
corpos pelas rupturas da resistência
283
Optamos pela oportunidade de tornar público este capítulo para par
-
tilhar resultados de uma pesquisa de mestrado realizada no Programa de
pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Ser
gipe – UFS.
Diante
disso,
este
escrito
tensiona
e
reete
interpretações
sobre
possíveis
formas de trincar os corpos pelas rupturas da resistência, enquanto fruto
dos discursos produzidos no exercício de interpelar a educação do corpo
na prática corporal do
Cr
osst.
Diante da experimentação da dissertação,
obtivemos
algumas
sessões
temáticas
que
o
campo
permitiu
tensionar
e
problematizar
. Para este capítulo, elegemos e delimitados uma delas para
ser explorada: “
Como
pensar
novas formas
de trincar
os
corpos
pelas rup
-
turas da r
esistência?
”.
T
omamos como base a interpretação da educação do corpo pelas
relações corpóreas
da prática corporal
do
Cr
osst
na expectativa de pensar
os sentidos estéticos e políticos que são acionados e se propagam segundo
os seus discursos, os quais forjam e criam subjetividades e identidades
dos sujeitos/corpos. Nesse processo, tomamos como alicerce investigativo
alguns referenciais que permitem compreender o universo epistemológico/
ontológico da educação do corpo enquanto construção social. Corroboran-
do, assim, com Le Breton (2007, p. 32) ao armar que:
O corpo não existe em seu estado natural, sempre está
compreendido na trama social de sentidos”. Para este autor
,
por meio
do corpo “nascem
e se propagam
as signicações
que fundamentam a existência individual e coletiva; ele é o
eixo da relação com o mundo, o lugar e o tempo nos quais
a existência toma forma (LE BRETON, 2007, p. 07).
Assim, compreender o conceito de educação do corpo neste estudo
é central, considerando que:
Educar los cuerpos implica transmitir discursos políticos y
sentidos estéticos, incluso cuando no sean explícitos o sus
implicaciones difusas. [...] por “educación del cuerpo” se
entienden las técnicas y prácticas corporales transmitidas
culturalmente cuya razón se explica por las signicaciones
sociales que representan sus incorporaciones (GALAK,
2017, p. 8).
Neste sentido, sinalizamos para a existência de corpos que são pro-
duzidos e transformados por meio dos discursos inerentes às suas práticas.
Com a tentativa de interpelar a educação do corpo por meio da prática
284
Corpo, políticas e territorialidades
corporal
do
Crosst,
reconhecemos
primordialmente
que
implica
estudá-lo
sob a mirada da política e da estética nas quais estão circunscritas. Para Ga-
lak (2014, p. 356): “Investigar o corpo signica refazer os
caminhos pelos
quais a incorporação dos sentidos analisados transitou”.
Por
essas
considerações,
defendemos
que,
nos
innitos
contextos
da educação não se investigam corpos, mas o corpo em suas mais variadas
formas de práticas sociais (GALAK, 2014). Deste modo, a expressão “prá-
ticas corporais” é empregada neste estudo para fundamentar um corpo que
nunca pode ser separado de sua prática. Segundo Crisório (2015), o corpo
não pode ser isolado como um substrato natural, físico ou biológico, cuja
essência tem um princípio substancial. Por isso, não se estuda “corpo”,
mas
o
concebemos
segundos
suas
manifestações
das
práticas
corporais,
seus diversos usos e sentidos atribuídos, sendo culturalmente construídos
e desconstruídos.
Buscando contrapor os métodos de treinamento físicos convencio-
nais, em torno de 2000, foi fundado o
Cr
ossFit
, como um produto da cul-
tura
tness
e de
marca
registrada.
O
Cr
ossFit
foi fundado em Santa Cruz,
na Califórnia, Estados Unidos, pelo ex-ginasta e técnico Greg Glassman, o
qual patenteou como
Cr
ossFit,
Inc.
, cuja sede é na cidade de
W
ashington,
EUA. No Brasil, o CrossFit foi apresentado pelo instrutor Joel Fridman,
em 2009, na Lapa, São Paulo. Desse modo, ele se propaga como um fe-
nômeno de empreendimento do corpo, onde seus objetivos se disseminam
na perspectiva do “dever ser” que também circunscreve a propagação da
cultura do corpo
tness
.
Esta prática corporal é propagada como inovação diante dos pro-
gramas
de
treinamentos,
por
ser
,
diversicado,
inclusivo
e
coletivo.
De
acordo com Fisher
et
al.
(2016), os exercícios são realizados em grupo
e compartilhados, seja por indivíduos saudáveis, atletas, idosos, obesos
ou grupos militares. Por essa valorização do ambiente coletivo, há uma
grande propagação da motivação da prática do
Cr
ossFit,
o que vem sendo
resultado em seu crescimento como um fenômeno social. Sua prática está
organizada
com
sessões
de
treinamento
de
alta
intensidade,
em
que
sua
execução tenha o menor tempo possível, diante do conjunto maior de repe-
tições,
buscando
preparar
o
indivíduo
para
“qualquer
contingência
física”
(FISHER
et al.
, 2016).
A
prática corporal do
Cr
ossFit
tem
ampliado
e
modicado
discur
-
sos políticos, estéticos e éticos conformando novas subjetividades nos/
285
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
dos corpos. O grupo se propaga por uma espécie de formatação de “ser
crossteiro”,
pelos
discursos
que
os
justicam,
modelando
a
ótica
dessa
prática corporal, bem como, da educação dos corpos. Para Nóbrega (2010,
p.
36),
o
exercício
de
pensar
sobre
o
corpo
e
suas
relações
corporais
com
o mundo “[...] é uma contingência que marca tudo o que tem lugar fora
do
corpo,
inclusive
nas investigações
cientícas
ou
losócas,
bem
como
nas
intervenções
educativas”, e,
portanto,
refere-se também
a um
exercício
de pensar como determinados discursos se normalizam e se materializam
diante dessas práticas.
Percebemos que a prática corporal do
Cr
ossFit
tem uma forte ape-
lação
à
cultura
tness.
O
termo
t
(de origem inglesa), para Silva (2012)
tem
signicado
de
encaixe e
ajuste,
ou seja,
condiz
com a
busca
pelo corpo
que
se
encaixe
nos
padrões
de
beleza
e
se
ajuste
às
necessidades
que
são
inventadas
e
atribuídas
pela
ideia
de
defeito
e
das
imperfeições
do
corpo.
Assim, a cultura
tness
anuncia elementos de propagação do culto ao cor-
po, na medida em que sur
gem mecanismos de gerenciamento dos modos
de vida, de normatização e na busca pela sensação de bem-estar
.
A
chave
para
esses
ajustes
depende
diretamente
de
um
corpo
que
seja
modicado,
nesse sentido, Bastos
et al.
(2013, p. 486) armam que:
O conceito de
tness
evoca a adaptação a um modelo
estético/moral, que se manifesta no compromisso com os
exercícios
físicos,
as
dietas
alimentares,
as
alterações
de
corpos
por
meio
de
intervenções,
o
consumo
de
produtos
que prometem otimizar o metabolismo humano e o
biologicismo da existência.
Desse modo, compreendemos que as técnicas de “educação de cor
-
pos” do
Cr
osst
não se desprendem de inúmeros elementos que os consti-
tuem como prática corporal que permeia pelas tramas sociais, por isso, não
se baseiam apenas em respostas meramente biológicas. Em consequência
disso, tornam-se produtoras de sentidos estéticos e políticos, atribuídos
desde
a
escolha
musical,
as
frases
que
os
justicam
e
motiva,
as
roupas
que
os
caracterizam,
o
vocabulário
especíco,
os
materiais
utilizados
e
seus
signicados,
ou
até
mesmo
os
seus
discursos
de
fundamentação
e
perten
-
cimento.
Além
disso,
vericamos
que
o
Cr
ossFit
se apresenta como uma prá-
tica
corporal
rica
em
detalhes
as
quais
provocam
inquietações,
tais
como:
a organização do ambien
te de prática diferenciado das academias, a orga-
286
Corpo, políticas e territorialidades
nização dos modos de divulgação como fator fundante de motivação as
quais estão também intrínsecas na arquitetura do ambiente. Sobre essas
considerações,
tal
como
se
apresenta
no
site
do
Cr
ossFit
Brasil, o corpo
torna-se “veículo para treinar e aplicar seu condicionamento físico”, além
de apresentar discursos de transformação para sociedade, uma vez que os
exercícios
tendem
a
propor
reexões
nas
ações
da
vida
cotidiana,
prepa
-
rando o indivíduo, para além de suas contingências físicas.
Assim sendo,
os seus
benefícios são incorporados
a uma aptidão
para melhores relações
na vida em sociedade, segundo o site da
Cr
osst
Brasil (2014).
O
Cr
ossFit
também
se
insere
em
uma
rede
de
signicados
que
se
apoia em um contexto de disciplina. Para Foucault (2001, p. 133): “são
chamadas de “disciplinas”, os métodos que permitem o controle minucioso
das operações
do corpo, que
realizam a sujeição
constante de suas forças
e
lhes impõem
uma relação
de docilidade-utilidade”.
Deste modo, existe
um
poder que se exerce mediante os discursos que produzem e são produzidos
no contexto desta prática corporal. Portanto, nesse exercício de poder
, as
condutas são estrategicamente projetadas com a propagação de suas regras
próprias de convivência interna no grupo, pela cultura
tness
e midiática.
Ressaltamos que, embora a marca
Cr
ossFit
seja precursora em sua
propagação
em
diversos
sites
ociais,
o
que,
por
sua
vez,
homogeneíza
como uma prática corporal
tness
, reconhecemos que cada contexto cultu-
ral é produtor de suas próprias subjetividades, mediante seus discursos ; e,
portanto, tendem a emergir diferentes sentidos e relações que possam
fun
-
damentar discursos outros e formas de educação do corpo, criando, assim,
diferentes
relações
de
poder/resistências
.
Para
Michel
Foucault
(1999),
o
discurso não só produz verdades, saberes, mas também se apresenta como
uma
força
que
dene
por
relações
de
poder
o
que
pode
ser
dito
e
o
que
pode
não ser
, por isso, apresenta que os discursos nomeiam o ser sujeito de cada
momento, lugar e tempo histórico.
Consideramos também esta prática corporal como parte de um dis-
positivo,
por
encontrar
-se
inserido
numa
rede
de
intervenções
corpóreas
que é a cultura
tness
.
Assim, atua respondendo a urgentes formas de regu-
82
82 - “O discurso pode ser
, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e obstáculo, escora, ponto de resistência
e
ponto de partida de uma estratégia oposta” (FOUCAUL
T
, 1999, p. 95).
83
-
Usa-se
poder/resistência
para
exemplicar
a
defesa
de
que
onde
há
relações
de
poder,
há
resistência.
Assim,
para
Foucault há sempre uma possibilidade de resistência, uma vez que agem como um paradoxo, um não antecede o outro,
ambos
podem
modicar
dominações
e
condições
e,
assim,
ser
só
mais
outra
forma
de
exercer
o
poder
e
a
resistência
(FOUCAUL
T
, 1999).
83
287
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
lações
e
disciplinamentos,
bem
como,
sutis
formas
de
controle,
ao
tempo
que aciona tecnologias de subjetivações.
Ao tratar
, à sua maneira, sobre a noção de dispositivo em Foucault,
Deleuze (1996)
identica que
é necessário
saber distinguir
em um
disposi
-
tivo o que somos, isto é, aquilo que aos poucos não seremos mais, e aquilo
que somos em devir (o que vamos nos tornando). Isso se dá na medida em
que aquilo que é novo é o atual, pois o atual não é o que somos, mas aquilo
em que vamos nos tornando – nosso devir (DELEUZE, 1996). Destarte,
consideramos que é necessário questionar não somente acerca do discipli-
namento operado pelo
Cr
osst
, mas também, a partir da consideração de
Deleuze (1996) sobre dispositivo, questionar outras maneiras pelas quais
através do
Cr
osst
os sujeitos se reinventam e “tornam-se outros”, isto é,
no contato com essa prática corporal produzem outros modos de existência.
Para lograr o já anunciado objetivo deste escrito, organizamos o
mesmo
a partir
de mais
outras duas
sessões para
além
desta introdução
que
recorta o objeto e apresenta alguns conceitos chaves de nosso estudo. Na
segunda parte apresentamos e teorizamos o percurso metodológico utiliza-
do no estudo. Na terceira e última seção discutimos novas formas de trincar
os corpos pelas rupturas da resistência, tendo como base a possibilidade de
uma ética da existência.
Per
curso metodológico
O
presente
estudo
foi
realizado
numa
academia/box
de
Crosst
da
cidade de
Aracaju-SE, trata-se do box
CROSSFIT
AJU (pioneiro dessa
prática
corporal
no
estado
de
Ser
gipe
e
aliada
à
Cr
ossFit.
Inc.
). Apre-
sentamos a proposta da pesquisa aos gestores da academia e com parecer
favorável à execução e solicitamos a autorização com o
T
ermo de Livre
Consentimento.
Após este consentimento a autora do escrito se matriculou
para participar das aulas de
Cr
ossFit
enquanto
praticante
a
m
de
encontrar
nessa experiência direcionamentos para os próximos passos da pesquisa.
Por isso, neste primeiro momento de observação participante não foi apli-
cado nenhum instrumento de coleta de dados, foi tão somente um momen-
to de observação numa relação de cliente/participante/praticante.
Esse primeiro contato de experimentação se deu em torno de um
mês, estando inserida ao campo empírico com os demais sujeitos da pes-
288
Corpo, políticas e territorialidades
quisa numa frequência de três vezes por semana (segundas, quartas e sex-
tas-feiras).
Após ter passado um mês como praticante, em torno da segunda
semana de dezembro (de 2019), a pesquisadora foi apresentada ao grupo
dando início as entrevistas. Portanto, esse foi o segundo momento da pes-
quisa organizado como um momento exploratório, como um novo modo
de experimentação do campo com auxílio das ferramentas para produção
dos dados. Salientamos também que esta investigação passou pelo crivo do
Comitê de Ética da Universidade Federal de Ser
gipe (UFS).
T
ratou-se de uma pesquisa qualitativa abordada sob o viés de um
estudo de campo.
A
pesquisa qualitativa busca pela análise dos elementos
discursivos do contexto pesquisado, como os diálogos, os locais, os com-
portamentos e os sujeitos, valorizando as subjetividades de investigador
e investigados. O estudo de campo, para Bogdan e Biklen (1994), con-
vém uma atuação menos passageira e mais naturalista com envolvimento,
considerando que, a qualidade desse tipo de pesquisa também se constitui
pelas boas relações.
Para
a coleta
de
dados zemos
uso
dos
seguintes instrumentos:
en
-
trevistas com questionários abertos e perguntas semiestruturadas,
anota-
ções
do
diário
de
campo
e
observação
direta
participante
(tanto
no
mo
-
mento inicial – novembro/dezembro 2019 – como nos meses subsequentes
– dezembro de 2019 a fevereiro de 2020). Os dados foram produzidos com
o auxílio de
registros fotográcos, bem
como a transcrição
dos áudios das
entrevistas.
Participaram da pesquisa, 23 praticantes distribuídos entre profes-
sores/
coaches
/praticantes/atletas da prática corporal do
Cr
osst
Aju.
Com
as
entrevistas
traçamos
um
perl
do
grupo
segundo
a
faixa
etária,
sexo,
prossão e
tempo de
prática. Foram entrevistados
onze indivíduos
do sexo
feminino e doze do sexo masculino. O grupo se constitui por advogados,
professores universitários, jornalistas, magistrados, empreendedores, pro-
ssionais
de
Educação
Física,
bem
como,
estudantes
de
diferentes
áreas.
A
faixa etária do grupo varia entre 26 e 47 anos. Dois dos entrevistados
participam há cinco anos, sendo pioneiros no box. No entanto, a maioria
dos entrevistados tem pelo menos 2 anos de prática do
Cr
osst.
84 - V
isando uma organização dos dados para posterior análise, cada entrevistado foi nomeado com uma letra do alfabeto,
nomeando-os de “A
a W”, conforme a sequência que equivale aos vinte e três entrevistados.
84
289
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Após
uma
construção
e
produção
signicativa
dos
dados,
nos
ins
-
piramos e tomamos como base, ferramentas foucaultianas para operacio-
nalizar a análise dos dados. Baseamos-nos na análise do discurso, sobre
perspectiva foucaultiana, considerando que discursos forjam, criam sub-
jetividades e que se torna ao mesmo tempo instrumento e efeito de poder
diante de verdades que se transformam, moldam, persuadem, modos de
pensar
, agir e sentir
.
Percebemos a proliferação de práticas discursivas e não discursivas
como uma categoria máxima de análise, logo com o primeiro contato na
qualidade de participante do
Cr
osst
AJU. O campo nos permitiu compre-
ender que os discursos são tanto um instrumento de análise, quanto um
recurso fundamental que produz comportamentos. Sendo assim, diante de
determinados discursos de ser “
cr
ossteir
o
”, que outros tantos se incluem
e excluem, construindo assim a política e estética do box
Cr
osst
AJU.
Para Foucault (2015, p. 09), o discurso está entre um jogo de ação e
reação, e que por muito tempo se constituiu por um “um conjunto de fatos
linguísticos ligados entre si por regras sintáticas de construção”. No entan-
to, neste estudo não veremos os discursos sob uma perspectiva de regulari-
dades linguísticas, mas de regularidades outras que se envolvem no campo
de lutas, de dominação ou mesmo de esquiva. Por isso, em nosso campo
de análise, buscamos relacionar tanto as falas quanto a materialidade do
conjunto de enunciados que se proferem desde as entrevistas, no dito e não
dito, do ambiente do box e suas interações corpóreas.
Além disso, para Foucault (2015) estas regularidades se constituem
para além de frases, falas, escritas, textos, pois funcionam como um siste-
ma de dispersão
que formam outras
regularidades que sur
gem em relações
diversas e em acontecimentos que se transformam em discursos e discur
-
sos que conduz acontecimentos, logo, conduz modos de existências. Sendo
assim, neste estudo consideramos que as práticas discursivas são dados e
instrumentos
que
oportunizam
pensarmos
nas
condições
que
submetem
o
Cr
osst
Aju, a mecanismos que efetivamente, ampliam, afetam, restrin-
gem,
objetivam
ou
mesmo
subvertem
ou
reetem
em
práticas
de
submis
-
são, disciplinamentos e controles dos corpos
290
Corpo, políticas e territorialidades
Como pensar
novas formas de
trincar
os corpos pelas rupturas da resistência?
Damos início a esta tarefa de análise mencionando que, diante dos
dados, reetimos que
os modos de educação
do corpo no
Cr
ossFit
se inse-
rem forjando e criando identidades e constituindo sujeitos, e que, tal como
a própria elaboração da indústria da cultura
tness
, submetem o corpo ao
culto narcisista contemporâneo (RAGO, 2006); e ao que se pode nomear
como “ideal ascético” (NIETZSCHE, 1998). Esse compromisso de adap-
tação ao modelo estético/moral se encarrega de operar sobre os desejos dos
praticantes, discursos que superam o simples estímulo à adesão de exercí-
cios físicos, mas que atuam sobre um conjunto ilimitado de práticas. Sejam
por uma dietética, pelo consumo de produtos manipulados e, principal-
mente, por sutis práticas que forjam desejos de um ideal de cidadão, que
vivencia diariamente o medo e a insegurança de não ser pertencente a esse
grupo/tribo.
Portanto, esses são os modos em que a subjetividade se encontra
no próprio corpo para serem educados a transformarem-se, por isso, esses
indivíduos são estimulados a desejarem a disciplina, desejarem o controle.
E é exatamente por meio dessas inseguranças que os indivíduos usam tais
medos como a própria motivação para se submeterem ao dever de serem
transformados, adaptados e com isso, longevos, funcionais e ditos “belos”.
T
endo como base a história dos corpos que também se retratam as
histórias dos diversos modos de produção de subjetividades, sobre uma
perspectiva foucaultiana, analisa-se que o CrossFit
AJU se insere como
uma prática corporal que opera como parte de um dispositivo biopolítico
contemporâneo. Desse modo, emer
ge em meio a uma continuação histó-
rica, a produção de novas subjetividades, que disciplinam e limitam, mas
sobretudo, controlam as forças potentes dos corpos, principalmente, sobre
a exaltação do cuidado de si contemporâneo.
Para Foucault (1985, p. 58), “[...] o cuidado de si na antiguidade [...]
aparece como
uma intensicação
das relações
sociais”. E, em
consonância
com Rago (2019), isso quer dizer que se trata de “modular diferentemente
a relação com os outros pelo cuidado de si” (p. 262). Isso explica uma rela-
ção contrária ao cuidado de si que encontramos nos discursos contemporâ-
neos, tal
como o
do Crosst.
Uma vez que
há uma
grande intenção
sobre o
voltar
-se
para si, e a preocupação
demasiada com o eu
sempre ecaz, pois
291
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
ele é fruto justamente desse processo que incita buscar
, o dito “eu verda-
deiro e mais natural” possível.
Assim, tendo como base as análises que Foucault (2001) realizou
da
Antiguidade
à
Modernidade,
ele
compreende
que
há
uma
total
falta
de
neutralidade
nas
incitações
ao
cuidado
de
si
moderno.
Ou
seja,
está
mais
atrelado a uma oposição às tentativas libertárias das práticas gregas, visto
que se volta ao individualismo egocêntrico. Desse modo, percebe-se não
uma ação neutra, mas intencionalmente projetada para atender aos inte-
resses
de
submissão
do
outro
que
se
reverbera
como
um
novo
signicado
político, numa espécie de conversão, entre
cuidado de si
para
renúncia de
si
, segundo Rago (2006).
Desse
modo,
vê-se
a
“renúncia
de
si”
a
partir
de
atos
pouco
ree
-
xivos, por uma busca ao essencialismo, ou por não interrogar como sua
conduta individualista pode provocar a negação de outras. Nesse sentido,
a renúncia de si também emer
ge por meio de vários dispositivos que inci-
tam o projeto de um sujeito que só é realizado à medida que o condiciona
sobre o limite em si mesmo, sem relação exterior
, ou até mesmo, quando
essa relação exterior só é introspectiva para se apoiar na submissão sobre
o
olhar
do
outro.
Aderindo
a
essas
considerações
V
ernant
(1981,
p.
224)
arma que:
O sujeito não constitui um mundo interior fechado, no
qual ele deve penetrar para se reencontrar ou antes para
se descobrir
. O sujeito é extrovertido [...]
A
consciência
de
si
do
indivíduo
não
é
reexiva,
voltada
para
si
mesmo,
fechamento interior
, face a face com sua própria pessoa:
ela é existencial.
A
existência é anterior à consciência de
existir
.
É
por
essas
razões
que
Foucault
também
contribui
para
pensar
que
não existimos por meio de uma projeção meramente para dentro de si,
mas
para
fora.
Portanto,
isso
se
rearma
fundamentado
na
mais
potente
de
todas
as armações
epistemológicas
sobre
o
corpo,
a qual
se
reverbera
sobre a história da humanidade, na qualidade de animais pensantes, corpos,
sujeitos: “O corpo não existe em seu estado natural, sempre está compreen-
dido na trama social de sentidos” (LE BRET
ON, 2007, p. 32).
Partindo desses pressupostos, e diante desses modelos de assujeita-
mento sobre o modo de educação do corpo no
Cr
osst,
reetiremos sobre
uma ética da existência como outro modo de ser
, para pensar em um possí
-
292
Corpo, políticas e territorialidades
vel
e
necessário
modo
outro de
existir
e
resistir
.
Sobre
essas
considerações,
arma Martins (2019, p. 59):
Uma ética do desprendimento e não da conversão. Uma
ética da singularidade e não uma lei universal invariante.
Uma ética do acontecimento e não transcendental. T
al é a
difícil
e
arriscada
atitude
ética
que
Foucault
nos
desaa
a
adotar diante dos perigos que nos fazem face.
É válido esclarecer que, tal como apresenta Foucault em seu método
genealógico
de
analisar
a
constituição
do
sujeito
na
história,
ele
propõe
a
reetir
como
uma
força
de
produção,
toda
essa
capacidade
de
criação
e
transformação do indivíduo ao longo do seu processo de constituição como
sujeito. Nesse contexto, é ponto crucial reconhecer
, inicialmente, que todo
processo de construção da subjetividade é histórico e não natural, ou seja,
não é uma determinação biológica é, sobretudo, cultural inventiva, e não
nos cabe evitar
, mas reinventar-se problematizar a si mesmos. Nesse senti-
do, Foucault (2010, p. 325-326) apresenta:
Os homens jamais deixaram de construir a si mesmos,
quer dizer
, de deslocar
, continuamente, sua subjetividade,
de
se
constituírem
em
uma
série
innita
e
múltipla
de
subjetividades
diferentes,
que
jamais
terão
m
e
que
jamais
nos colocarão em face de alguma coisa que seria o homem.
Os homens engajam-se perpetuamente em um processo
que, construindo objetos, os desloca, ao mesmo tempo que
os deforma, os transforma e os transgura como sujeitos.
É justamente por essa capacidade do sujeito em criação constante de
si, que ele contribui para pensarmos em possibilidades outras de subjetivi-
dades e subversões, e isso implica reconhecer que o indivíduo não deveria
ser produzido sobre uma ótica, “tal como teria desenhado a natureza, ou
tal como sua essência o prescreve; temos que produzir algumas coisas que
ainda não existem e que não sabemos o que será” (FOUCAUL
T
, 2010, p.
75).
Diante do exposto, acredita-se que essa capacidade de construção é
o que, teoricamente, pode possibilitar a (des)naturalização de identidades
que forjam e limitam os corpos identidades, fruto dessa prática corporal
Cr
ossFit.
Considerando que, enquanto são produzidas por técnicas de as-
sujeitamento, são também, ao mesmo tempo, produtos de discursos que
preexistem a estes e inserem o discurso em diversos outros usos. Portanto,
293
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
sobre
essa
lógica
de
força
de
produção,
Michel
Foucault
(1979)
arma
que onde há poder há resistência, por isso, reconhecemos que o mesmo
contexto que assujeita é o que também tem o poder de gerar resistência.
Entretanto, pensar
a resistência
implica reetir sobre
atitudes renovadoras,
práticas de desprendimentos, contra-condutas.
Portanto,
aqui
tentaremos
propor
uma
reexão
de
que
é
possível
resistir à sujeição que cria corpos únicos, ou mesmo que criam relação de
rejeição daqueles que operam uma relação de exclusão com o diferente, no
contexto da prática corporal CrossFit. E isso se faz, desde o simples uso da
escrita
analítica
e
reexiva
acerca
dos
limites
e
imposições
normatizadas
e estereotipadas. E, assim, é possível até mesmo com a força prática da
recusa dos ideais, estes que conduzem condutas, ou seja, com a subver
-
são de atitudes outras, que possa nos reconstituir diante do poder que nos
limita.
Para
essa
reexão,
baseamo-nos
também
nessas
formações
discur
-
sivas apresentadas na T
abela 1.
Acredita-se que elas expressam pequenas
brechas para pensarmos que, de certo modo, desprendem-se dos discursos
hegemônicos, unicantes e dominantes das práticas da cultura
tness
.
T
abela 1 -
Formações discursivas dos participantes da pesquisa.
Sujeitos
Anotações do diário de campo
“Não tenho a pretensão de um corpo robotizado, pelo acúmulo de
músculo, ou mesmo de fazer parte dessa doença que é ter um corpo
deformado de tanto músculo”
M
Fonte -
Dados da pesquisa.
“Quero estar bem com meu corpo dentro dos próprios limites dele,
porque
eu
prero
ser
uma
crossteira
com
marcas
naturais
do
que
exagerar nos pesos e sentir dor mais do que deveria. [...]
Até exagero
na intensidade, mas não gosto de pegar peso demais não.”
O
“Eu costumo fazer uma autoavaliação sobre o tipo de prazer que
mais me satisfaz […] tipo, sinceramente comer um brigadeiro des-
perta uma sensação tão boa, o problema é que eu não sei parar
(risos), mas depois daqui, que consegui me alimentar de forma sau-
dável, sem exageros na dieta, meu corpo se acostumou com o que
antes achava ruim. Sei que o prazer de se sentir leve, hoje, provoca
em mim ainda mais prazer que comer um prato de doce.
Assim, eu
coloquei
na
balança
e
medir
que
prero
permitir
fazer
o
cross
e
ter
uma vida mais regrada, porém dentro dos meus limites sem me privar
de nada. Quando eu quero beber eu bebo, quando quero comer eu
como, bem mais tranquila […] porque quero sim um corpo bonito,
mas também quero acima de tudo isso, estar bem onde eu estiver
.”
R
294
Corpo, políticas e territorialidades
Pensar a resistência como possibilidade, é também reconhecer que
sempre
há
outros
modos
de
reetir
sobre
as
condições
pelas
quais
os
in
-
divíduos são assujeitados. Reconhecendo, assim, que é possível encontrar
saídas positivas para potentes modos de educação do corpo no exercício
de sutis práticas de desprendimentos. Por isso, Foucault indica que essa
possibilidade se perfaz a partir da constituição de uma ética da existência,
ou seja, pela recriação de modos de vida, pelo potencial inventivo que há
nas próprias relações sociais.
A
partir desse movimento produtivo dos corpos ainda se considera
que somos a todos os instantes assujeitados, por regimes discursivos que
nos submete ao saber
, poder
, as ditas verdades, a norma, reconhecendo,
portanto, que todo esse processo é o que conduz as teorias e práticas ca-
nônicas, universalizantes e, sem dúvida, excludentes. Logo, não podemos
ser
sujeitos
“livres”,
porém
tanto
Rago
(2019),
Ortega
(2002)
e
Miskolci
(2006) corroboram que sobre a perspectiva de Foucault, a possibilidade
inicia com a aceitação de sutis práticas de liberdades, para a construção de
novas subjetividades menos alienantes. Desse modo, esse autor convida a
reconhecer que há um potencial libertário em meio às forças de controle
sobre os
corpos. E isso
é possível
pela constituição de
novas relações,
pela
rejeição das culturas aprisionantes e das formas mais sutis que nos permi-
tem desejar
o controle
sem limites. É
sobre essas
justicações que
referen
-
ciamos as seguintes falas da
T
abela 2.
T
abela 2 -
Formações discursivas dos participantes da pesquisa.
Sujeitos
Anotações das falas dos entrevistados
Olhe, eu sei que sou gordinha e não sou triste por isso, ao contrário
me amo sendo assim, ainda que eu tenha vários contatos com co-
legas, que parecem de mentira de tão treinadas que são, e se elas
escolhem ter aquele corpo, tá tudo bem, isso não diminui quem eu
sou e quem escolhi ser
.
M
Acho que pelo meu corpo, acho que dá para ver que não estou aqui
por estética. Pois, já tenho três anos que frequento. Estou porque me
faz em movimento e por isso estou bem.
O
Fonte -
Dados da pesquisa.
Rago
(2006)
arma,
portanto, que
para
chegarmos
a
uma
condição
fundamental para exercitar as práticas de liberdade se faz por meio da pro-
blematização desse processo relacional, entre nós mesmos, com o outro e
295
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
com o mundo.
Assim, é possível abrir novas saídas mais positivas e mais
saudáveis. Portanto, é possível com base nessas falas, encontrar um ponto
de vista fora da normalidade até então estabelecida. Por isso, interpreta-se
que
a
partir
dessas
enunciações
descritas
na
T
abela
(2),
há
a
presença
de
outras possibilidades que se diferem do padrão que foi encontrado em una-
nimidade nos discursos anteriores. É válido esclarecer que muitas falas,
e até mesmo a missão do referido
box
, embora esclareça que a estrutura
corporal não é o elo primordial de quem adere e permanece no
Cr
ossFit,
ainda assim está em evidência que os discursos fazem funcionar comporta-
mentos de “endeusamento” e melhoria da aparência da estrutura corporal.
Porém,
foi
possível
identicar
apenas
na
fala
dessas
duas
entrevistadas
uma preocupação que não se restringe à estética corporal.
Diante de tais falas, se torna possível desnaturalizar determinados
atributos do
Cr
ossFit,
nos levando a atentar
-se para a produção de sentido
desta prática corporal na vida dos sujeitos. Em outros termos, pensar uma
perspectiva de resistência frente à lógica disciplinar do
Cr
ossFit
é consi-
derar que este deve ser problematizado/vivenciado não em função daquilo
para que (supostamente) ele serve (saúde, estética etc.), mas, sim, a partir
daquilo que ele signica
e produz de sentido na
vida daqueles que o prati
-
cam.
Seguindo essa lógica, produzir sujeitos autônomos é exatamente
possibilitar que estes tenham a percepção de que eles são determinados a
agir segundo sua própria capacidade de produzir sentido no contexto do
Cr
ossFit
, sendo o modo como ele experiencia esta prática corporal não
uma submissão acrítica a códigos e preceitos, mas a expressão de modos
de vida de seus corpos, pois dizem de sua maneira de viver
.
T
al
como
Margareth
Rago
(2006),
Miskolci
(2006)
também
incita
algumas
reexões,
mostrando
a
recusa
aos
modelos
normativos
e
como
um contraponto e resistência à cultura narcisista contemporânea que, como
apresentamos, faz-se presente em meio à cultura
tness
em suas promessas
e técnicas de melhoramento corporal.
A
emergência de uma nova cultura de si pode originar novas
relações
críticas
aos
modelos
de
identidade
socialmente
propostos, recusando o aparato disciplinar que nos torna
algozes de nós mesmos.
Associada a essa reinvenção de
si mesmo, uma nova cultura de si também pode permitir
novas
relações
com
o
outro,
relações
de
companheirismo
296
Corpo, políticas e territorialidades
e amizade.
Assim, percebe-se que outras formas de
produção da subjetividade podem se dar de maneira não-
individualista, sem valorizar a vida privada em detrimento
da pública (MISKOLCI, 2006, p. 689).
Assim,
pode-se
identicar
nessas
falas, uma
prática
de
recusa
e
re
-
direcionamento, pela tentativa de representar mediante o entrevistado que
não se preocupa, ou se interessa se está fora do padrão que é de costume
desejar em meio à prática do
Cr
ossFit.
Numa relação consigo que se dis-
tancia, de certo modo, dos modelos que universaliza os objetivos dessa
prática corporal.
T
alvez não por acaso, mas o discurso do entrevistado con-
vidou a perceber que não seria ao nível de normalidade estética que busca-
va, pois nitidamente subjugava que estava aderindo à prática saudável sem
pretensões
da
eliminação
de
gordura,
mas
necessariamente
de
pertencer
a
um costume que a possibilitava estar no movimento da vida, que para esta
é promovido
por uma vida
sicamente ativa.
Além disso, esclarece
em sua
fala, uma relação potente com o olhar de si acolhedor em comparação com
o outro. Reconhece nessa fala, uma certa relação de companheirismo que
contrapõe
à
vontade
demasiada
que
costuma
ser
alimentada
pela
cultura
narcisista, em sua ação egocêntrica.
Nessa
análise,
reetimos
sobre
as
considerações
de
Sant’Anna
(2019), ao questionar acerca dos regimes contemporâneos, se “teriam os
regimes hoje a potência de ajudar cada um a pensar sobre si e sobre o
mundo, ou eles serviriam unicamente para eliminar uma certa quantidade
de gordura?” (p. 92). Portanto, é nessa mesma linha de pensamento que ela
problematiza: “[…] E para que um regime voltado a atingir a alma se hoje
não cessa de ser dito que o que vale é o corpo?” (p. 92).
Nesse entendimento, compreende-se que a intenção dessa autora,
não é reforçar o referencial cartesiano entre corpo/alma, mas ao contrário
disso, reforçar que é o corpo belo e estrutura muscular que ainda se encon-
tra estrategicamente exercendo o poder sobre o ser sujeito. Portanto, diante
desses questionamentos,
baseado em
Sant’Anna (2019), é
possível reetir
que o entrevistado apresenta um sutil modo de tentar não se entregar ao
fascismo
que
costuma
nos
conduzir
e
desejar
o
poder
que
nos
objetica.
Esse que nos assujeita e limita o olhar sobre nós mesmos.
Por
essas
considerações,
tendo
como
base
a
ética
da
existência
ree
-
tida por Foucault, registra-se que sua proposta se fundamenta para pensar
na transgressão da heteronormatividade, ou seja, para contrapor as inten-
297
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
sas
relações
que
defendem
a
afetividade
apenas
pelos
seus
iguais.
Como
referenciado anteriormente, compreendemos que um fator preponderante
da exclusão e negação de alguns modos de ser são respostas não apenas
da
construção
de
estereótipos
de
corpos
padrões,
mas
também
são
essen
-
cialmente pela
dinâmica dos
contrários, a
qual se
ampara em
relações que
produzem e elevam essa tradição ancorada na ordem normativa, que poten-
cializa e nega o outrem. Portanto, ao pensarmos sobre os tantos discursos
de pertencimento da prática corporal
Cr
ossFit,
deparamo-nos com uma
construção que exclui e nega o não pertencente às regras identitárias.
É justamente diante dessas sutis formas de controle que se cria uma
espécie de desvio que se reverbera em estereótipos negativos, como uma
prática do mal, do excluído, e do inútil. Desse modo, e reconhecendo que a
história se baseia em princípios binários e identitários, ela apenas nos ritu-
aliza a pensar como tal, ampliando-se hoje, uma sociedade cada vez mais
com necessidades
de construções
identitárias, e cada
vez mais
a criação de
necessidades e vontades de sermos pertencente a um grupo.
Portanto,
sobre
as
perspectivas
foucaultiana,
em
suas
reexões
da biopolítica de controle de medidas e desempenhos corporais, tanto
Sant’Anna
(2019)
quanto
César
(2019),
também
propõem
que
é
possível
desmoronar os muros do nosso fascismo contemporâneo a partir do con-
traponto às
pedagogias do
tness, que também
são responsáveis pelas
pro
-
duções de bioascese, que agem sobre essas verdades identitárias do corpo.
Desse
modo,
César
(2019)
apresenta
as
obras
de
Fernanda
Maga
-
lhães
sobre
A
classicação
cientíca
da
obesidade
e
o
conto
A
mulher
ilustrada de Ray Bradbury
.
Ambos são outros modos de apresentar o corpo
contemporâneo,
utilizando
a força
potente
da arte
para expressar
guras de
resistência ao discurso médico, por construir uma forma de “obra-instala-
85
- O
projeto
artístico
de Fernanda
Magalhães
apresenta
uma forma
criativa
de
crítica aos
padrões
estéticos
femininos
impostos principalmente pela mídia, cultura e sociedade. “Inconformada com a frequente associação do obeso com algo
que incomoda, que é deslocado, utiliza o corpo como protesto, posicionamento político contra a hegemonia da magreza
[...] os
embates foram se
desenvolvendo para a defesa
do fora de
forma em detrimento
da boa forma
[…]” (MELO, 2014,
p.
13-16)
Desse
modo,
suas
obras
conduziram
a
lutas
contra
saberes
hegemônicos
e
oportunizando
a
reetir
o
outro,
partindo de uma reexão sobre si.
86
-
Em
A
mulher
ilustrada
de
Ray
Bradbury
,
o
corpo
de
Emma
Fleet
se
apresenta
como
uma
gura
extensiva
de
sua
superfície. Com duzentos e um quilos pretende aumentá-lo. O desejo de não emagrecer de Emma é referenciado na obra
como
um
modo
de
seu
marido
continuar
a
tatuar
toda
a
extensão
do
corpo
de
sua
esposa.
No
entanto,
suas
pretensões
de engordar era justamente porque necessitavam de mais superfície para continuação da obra.
Ao buscar o médico para
ajudar nesse projeto, o médico sugeriu apagar a obra e reiniciá-la à medida que for concluída. Portanto, para Emma e seu
esposo, esta
ideia era um
milagre. Para César
(2019, p. 278),
a interpretação
desta narração pode
ter vários signicados,
no entanto, serviu como base para visualizar a enorme superfície do corpo de Emma diante de suas “possibilidades abertas
para
uma obra
em construção”.
Portanto, essa
narração zomba
do peso
das verdades
médicas e
permitem utuar
na leveza
da criação (CÉSAR, 2019).
85
86
298
Corpo, políticas e territorialidades
ção
com
corpos gordos”.
Enquanto
o segundo
exemplo da
“Mulher
ilustra
-
da” expressa o corpo de Emma Fleet, apresentando a experiência de uma
superfície corporal extensiva, contrapondo, assim, os discursos e verdades
médicas: “[...]
pois são
leves, podem
utuar no
espaço, são rápidos
ao mo
-
verem para além dos muros que cercam nossas parcas possibilidades, con-
temporâneas de resistência e criação” (SOARES, 2019, p. 278).
Sobre
essas
considerações,
é
possível
e
necessária
a
abertura
para
novas formas de (re) existir e resistir
, como contraponto a essas forças que
aprisionam a busca exacerbada pelo melhoramento corporal, e dos discur
-
sos que fazem emer
gir uma educação do corpo que limita nossas potências
de criação. T
ratamos aqui apenas de algumas possibilidades, em que o pri-
meiro passo é desprender
-se dos pensamentos universalizantes, egocên-
tricos e excludentes. Esses que não excluem apenas a si mesmos, mas as
outras formas de ser e de viver
.
Acolher
outros
modos,
não
signica
ser
,
ou
necessariamente
expe
-
rimentar
, ainda que a oportunidade de experimentação venha carregada de
aprendizagens
outras.
Mas
acolher
implica
acionar
desde
micros
relações
que
oportunizem
singularidade,
mediante
mínimas
ações
que
se
posicio
-
nem
fora
da
norma.
Desse
modo,
também
se
pode
reetir
que
foi
justamen
-
te nos mais sutis detalhes, que a anatomia política dos corpos encontrou
seus modos de disciplinarização dos sujeitos. Com essa mesma referência
foucaultiana e na valorização do próprio detalhe, acredita-se que também
seja possível subverter esses
sentidos para oportunizar a reexão por
meio
de ações mínimas, porém potentes de resistência da norma.
De certo modo, parece utópico desejar o desprendimento da norma,
em meio a tantas estratégias micropolíticas e macropolíticas que governam
desde sempre a produção do saber
, da verdade e limita os discursos da área
da saúde e da educação do corpo, sempre tão disposta a uma hegemonia e
higienização do mundo.
Ainda mais na própria Educação Física produtora
dos principais saberes produzidos sobre a relação entre o movimento na
educação do corpo.
Isso
tem
plenas
ressonâncias
com
aquilo
que
Massumi
(2020)
nos
sinaliza sobre a capacidade do capitalismo, sob a cunha do neoliberalismo,
estar tão imbricado no tecido social, isto é, onde a vida acontece, que se
torna impossível posicionar
-se fora dele, ao ponto de que mais do que um
“biopoder”, ele é um “ontopoder”, um poder de fazer vir a ser
. No entanto,
diz Massumi (2020, p. 18):
299
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
[...]
embora
seja
impossível
pretendermos
car
fora
do
capitalismo,
também
jamais
estamos
‘totalmente
dentro’.
Existe uma dimensão intensiva da vida que é anterior em
excesso à economização capitalista.
A
resistência não é
inútil (p. 18).
Neste ponto argumentativo, não é utópico a tentativa
de reingressar
o próprio movimento da vida, que sempre conduziu para além da repressão,
disciplina e
do controle,
mas para
a própria
potência de se
recriar
. Mesmo
porque, a força produtiva que conduz esses estudos parte justamente desse
ciclo de discursos que acionam tantos outros possíveis.
T
odavia, acredita-
-se que a área da Educação Física e da saúde de modo geral, não se baseia
apenas na política de promoção de saúde/beleza pela prevenção dos males
corporais, mas também possui essencialmente a capacidade de reconstruir
e subverter os sentidos políticos e estéticos dos corpos.
Contudo,
visões
utópicas
são
essenciais
à
medida
que
a
utopia
nos
ensina que a cada passo dado, existem mais dois à nossa frente (GALE-
ANO, 2019). Desse modo, ela permite que tal como a própria ciência e
a
losoa,
nessa
constante
reconstrução,
ela
não
deve
se
limitar
a
únicas
verdades, e, portanto, permite esse constante processo que é a constituição
da educação do corpo, para ser sujeito e ser corpo.
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000
S
S
obre os autores
305
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Organizador
es
Dinamara Garcia Feldens
Universidade Federal de Sergipe- professora
do Programa de Pós Gradu-
ação
em Educação.
Pós
doutora em
losoa
da Educação
pela UCM/
ES.
Doutora
e Mestre
em
Educação pela
UNISINOS/RS.
Coordena
o Grupo
de Pesquisa Educação, Cultura e Subjetividades – GPECS/UFS/CNPq.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6471-3876.
Juliana Santos Monteiro
V
ieira
Universidade T
iradentes
(UNIT), Registro
– SE –
Brasil. Professora
Au
-
xiliar do Curso de Psicologia. Doutorado em Educação (UFS).
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3332-6640.
Lucas de Oliveira Carvalho
Universidade
Federal
de
Sergipe
(UFS),
São
Cristóvão
–
SE
–
Brasil.
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0826-4567.
Autor
es
Aldenise Cordeiro Santos
Secretaria
de
Estado
da
Educação,
do
Esporte
e
da
Cultura
(SEDUC),
Aracaju
–
SE
-
Brasil.
Pós-doutorado
em
Educação
pelo
Programa
de
Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe. Profes
-
sora do Centro de Excelência Santos Dumont.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-6321-7889.
Amanda Marques
Pontifícia
Universidade
Católica
de
São
Paulo,
PUC-SP
,
São
Paulo,
SP
- Brasil. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Comunicação e
Semiótica .
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1405-0143.
Angélica V
ier Munhoz
Universidade do V
ale do T
aquari (Univates), Lajeado
– RS –
Brasil. Do
-
cente do Centro de Ciência Humanas e Sociais e do PPGEnsino, líder do
Grupo de Pesquisa Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2644-043X.
306
Corpo, políticas e territorialidades
Carla Jeane Helfemsteller Coelho Dornelles
Universidade
Federal
de
Sergipe
(UFS),
Aracaju
–
SE
–
Brasil.
Douto
-
randa no Programa de Pós-Graduação em Filosoa.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-1240-9981.
Claudia Madruga Cunha
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, – PR - Brasil. Profes
-
sora
do
Programa
de
Pós-Graduação
em
Educação.
Linha:
Linguagem,
corpo
e
estética;
Coordenadora
do
Grupo
de
Pesquisa
Rizoma
-
Labora
-
tório de Pesquisa em Filosoa da Diferença e
Arte.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2867-5566.
Débora dos Reis Silva Backes
Universidade
Federal
de
Sergipe
-
SE
-
Brasil.
Pedagoga.
Mestranda
do
Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Sergipe
–
PPGED/UFS.
Membra
do
Grupo
de
Pesquisa
Educação, Cultu
-
ra e Subjetividades – GPECS/UFS.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-4466-2658.
Douglas Rosa
Universidade
Federal
do
Rio
Grande
do
Sul
(UFRGS),
Porto
Alegre,
RS
-
Brasil. Doutorando
do Programa de Pós-Graduação
em Letras (PPGLet).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8251-7318.
Edla Eggert
Pontifícia
Universidade
Católica
do
Rio
Grande
do
Sul
(PUCRS),
Por
-
to Alegre,
RS
-
Brasil.
Professora
dos
Programas
de
Pós-Graduação
em
Educação, e de T
eologia, da Escola de Humanidades.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-1980-7053.
Elder Silva Corr
eia
Doutor
em
Educação
pela
Universidade
Federal
de
Sergipe.
Mestre
em
Educação Física pela Universidade Federal do Espírito Santo. Graduado
em Educação Física pela Universidade Federal de Sergipe. Docente da
Faculdade do Nordeste da Bahia (F
ANEB).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8403-2226.
Evanildo Ferreira V
asco V
iana
Universidade
Nacional
de
Educação
a
Distância
(UNED),
Madrid
–
Es
-
panha.
Doutorando
em
Diversidade,
Subjetividade
e
Socialização.
Mes
-
trado em Educação (UNIT).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4990-6415.
307
V
ol I - Subjetividades & Diferenças
Fabio Zoboli
Universidade
Federal
de
Sergipe
–
(UFS),
São
Cristóvão
–
Sergipe
–
Bra
-
sil. Professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Univer
-
sidade
Federal
de
Ser
gipe
(PPGED/UFS).
Pós-doutor
em
Educação
do
Corpo pela Universidad Nacional de La Plata (UNLP/Argentina).
Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5520-5773.
Felipe Santana Criste
Graduado
em
Educação
Física
Licenciatura
pela
Universidade
Federal
do
Espírito
Santo.
Mestre
em Psicologia
Institucional
pela
Universidade
Federal
do
Espírito
Santo.
Professor
da
rede
pública
do
estado
do
Espírito
Santo. Professor da rede pública municipal da cidade de Cariacica.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-0052-1522
Franciele Caroline Pavão Gar
cia
Mestre
em
Educação
pela
Universidade
Católica
Dom
Bosco
(UCDB),
Campo
Grande
–
MS
–
Brasil.
Coordenadora
do
Centro
de
Educação
Infantil.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7994-9045.
Inauã W
eirich
Ribeir
o
Universidade
do
V
ale
do
T
aquari
(Univates),
Lajeado
–
RS
–
Brasil.
Li
-
cenciada
em
História
pela
Univates,
Mestra
em
Ensino
pela
Univates,
e
Doutoranda em Ensino na Univates com Bolsa Prosuc/Capes.
Orcid: https://orcid.org/0000-0003-0701-4555.
Jeferson Camargo
Universidade
do
V
ale
do
T
aquari
(Univates),
Lajeado –
RS
–
Brasil.
Gra
-
duando no curso de Psicologia, pela Universidade do
V
ale do
T
aquari -
UNIV
A
TES.
Bolsista
de
Iniciação
Cientíca
CNPq
do
Grupo
de
Pesquisa
Currículo, Espaço, Movimento (CEM/CNPq/Univates).
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3285-4030.
Jerlane
Santos Abreu
Secretaria
Municipal
de
Educação,
São
Cristóvão-SE-Brasil.
Mestra
e
Doutoranda em Educação pelo programa de Pós-graduação em Educação
da
Universidade
Federal
de
Sergipe.
Professora
Efetiva
da
rede
Pública
Municipal de São Cristóvão-SE, atuando como
Coordenadora Pedagógi
-
ca da EMEF Gina Franco.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5753-4263.
José Licínio Backes
Universidade
Católica
Dom
Bosco
(UCDB), Campo
Grande
–
MS
– Bra
-
sil. Professor
do Programa
de Pós-Graduação
em Educação
– Mestrado e
Doutorado. Bolsista CNPq 1D
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9013-8537.
Laila Rosa
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador – BA
– SP
. Professora
da
Escola
de
Música
e
dos
Programas
de
Pós-Graduação
em
Música
e
Es
-
tudos Interdisciplinares sobre a Mulher
. Doutorado em Música (UFBA).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9195-8027.
Leomar Peruzzo
Universidade
Federal
do
Paraná
(UFPR),
Curitiba
-
PR,
-
Brasil.
Pro
-
fessor
de
Arte
da
Secretaria
de
Educação
do
Estado
de
Santa
Catarina.
Integrante
do
Grupo
de
Pesquisa
Rizoma
-
Laboratório
de
Pesquisa
em
Filosoa da Diferença e
Arte Educação.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5322-142X.
Maria Fernanda Cestari de Oliveira Saad
Universidade
Católica
Dom
Bosco
(UCDB), Campo
Grande
–
MS
– Bra
-
sil.
Acadêmica do Curso de Psicologia.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-2818-8688.
Martha Giudice Narvaz
Universidade
Estadual
do
Rio
Grande
do
Sul
(Uergs)
Porto
Alegre/RS,
Brasil.
Professora
Adjunta de
Psicologia e
do Programa de
Pós-Gradua
-
ção em Educação da Uer
gs. Rede Escrileituras, Grupo de Pesquisa
Arte,
Corpo,
enSigno
(ARCOE/CNPq),
e
Grupo
de
Pesquisa
Gênero
e
Diver
-
sidades (CNPq).
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8430-9483.
Paola Zordan
Universidade
Federal
do
Rio
Grande
do
Sul
(UFRGS)
Porto Alegre/RS,
Brasil.
Professora
do
Departamento
de Artes
V
isuais
e
do
Programa
de
Pós-Graduação em
Educação da
UFRGS.
Rede
Escrileituras, Grupo de
Pesquisa
Arte,
Corpo,
enSigno
(ARCOE/CNPq),
Núcleo
T
ransdiscipli
-
nar de
Arte e Loucura, NuT
AL/DEDs/UFRGS.
Orcid: https://orcid.org/0000-0002-8937-7706.
308
Corpo, políticas e territorialidades
Ruth Pavan
Universidade
Católica
Dom
Bosco
(UCDB), Campo
Grande
–
MS
– Bra
-
sil. Professora do
Programa de Pós-Graduação
em Educação –
Mestrado
e Doutorado. Bolsista CNPq 2.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8979-1
125.
Ueberson
Ribeiro Almeida
Mestre
em
Educação
Física
e
Doutor
em
Educação
pela
Universidade
Fe
-
deral do
Espírito
Santo. Professor
adjunto do
Centro de
Educação Física
e
Desportos/CEFD/Ufes.
Professor
do
Programa
de
Pós-Graduação
em
Psicologia Institucional/PPGPsi/Ufes e
do Programa de Mestrado
Pros
-
sional em Educação Física em Rede Nacional-PROEF
.
Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9255-4542
309
V
ol I - Subjetividades & Diferenças